Capítulo 4 – Memórias de um passado sofrido
- Cheguei! - Gritou Gal ao chegar em casa. A nova escola era realmente incrível, ainda mais quando se estava entrando para o mundo da adolescência. Deixou a mochila ao lado da porta de qualquer jeito e descalçou o tênis antes de ir para a cozinha. O cheiro do almoço já estava dando embrulhos volumosos em seu estômago.
- Ora! Quanta animação. - Veio a voz feminina da cozinha. - Parece que tudo ocorreu bem por lá, não é, querido?
A mulher tinha não mais que trinta e cinco anos e esbanjava felicidade em cada gesto. Os cabelos negros e volumosos, sua marca mais famosa, estavam presos num coque para que a gordura não espirrasse neles. Gal surgiu na porta e sentou-se no seu lugar na mesa.
- É! Tudo é demais por lá! Sabia que eles tem até pistas de skate, mãe?
- Verdade? Ora, isso é ótimo. - Disse ela, enquanto colocava um ovo frito direto da panela para um prato na mesa. - Mas não muda o fato que não vou deixar você andar de skate, menininho.
- Mas mãe! É no colégio!
- Sim. Mas você continuaria em cima de algo que considero perigoso. Então, nem pensar!
- Eles tem supervisores de pátio!
- Depois que você cair, de nada vai adiantar. - E mesmo discutindo, ela não perdia o bom humor de sempre.
- Mas...
- Sem mas, Gal. Você não vai contrariar o pedido de uma mulher grávida, não é? - Disse, fazendo um leve bico. Com aquilo Gal desviou o olhar e travou para não segurar o riso.
- Apelar para isso é golpe baixo. - E logo depois escapou uma risada gostosa de se ouvir. Neste mesmo instante, o carro estacionou na garagem. Jeorge estava na porta da cozinha, colocando as chaves sobre o balcão. Ele sorriu ao ver o garoto e a mãe ali. Caminhou até a esposa e a beijou rapidamente, para depois ir até o menino, e enchê-lo com um belo cafuné.
- E como foi lá, Gal? Gostou?
- Claro, Amei! Mas a mamãe não está deixando eu andar de skate!
- Como é? - E fez uma cara de assustado pela metade.
- Pois é. Mas não tem perigo algum! Afinal, é dentro do colégio e tudo mais...
- Hm... Verdade. Verdade. - E Jeorge virou-se para a mãe. - Que tal, Mancy? Porque não dá uma chance para seu querido filho? Ele anda se comportando bem, afinal.
- Sim! Nunca mais atrasei em limpar meu quarto ou em cortar a grama! Por favor, mãe! - E fez uma cara de coitado para ela. Mancy se virou para encarar os dois homens da casa fazendo a mesma cara para ela. A início, enfrentou-os com uma expressão inflexível. Mas não resistiu dois segundos para apoiar a testa na mão e soltar um suspiro, seguido de um sorriso. - Tudo bem. Mas apenas se usar joelheiras e cotoveleiras!
- Claro, Mãe! Claro! - Disse Gal imediatamente.
- E também, só quando fiscais de pátio estiverem olhando!
- Sim senhorita! Obedecerei!
- E você, Senhor Jeorge, devia parar de ir contra sua esposa! - E finalmente voltou para o fogão. Jeorge levantou-se e foi até ela. A abraçou e apoiou de leve o queixo sobre o ombro dela para beijá-la em seguida.
- Não fui contra você, querida. Só fui a favor de meu filho!
- E não deu quase na mesma? Ora! - E riram.
Assim foi o almoço, como sempre. Risadas a parte, conversas sobre responsabilidade no novo ano e as histórias de como o trabalho de Jeorge eram divertidas. O tempo passou num instante, e logo, Gal já estava no seu quarto, fazendo as primeiras lições de casa, enquanto os pais se preparavam para sair. Ele ouviu leves batidas na porta para logo depois ver seu pai abri-la.
- Estamos indo ao médico. Voltamos mais tarde, sim?
- Tudo bem. E pai...
- Sim?
- Eu ainda aposto que é uma menina.
- Que nada, você terá um novo irmão. Com certeza! E esse escolherá um time bom para se torcer!
- Duvido! - E Jeorge fechou a porta com uma risada. Dali em diante, a tarde foi bem tediosa para Gal. Ele terminou as lições dele em pouco tempo, elas nunca foram problemas para ele. Notas e escola, alias, nunca foram um problema. Ele simplesmente conseguia tirar notas boas sem muito esforço. De qualquer modo, Gal revisou os exercícios e depois tirou um bom cochilo. O resto da tarde foi alternado entre jogar videogame e assistir televisão.
Já eram quase sete da noite quando Gal ouviu o barulho do carro entrando na garagem. Eles haviam demorado muito mais que o esperado. Apenas abriu um sorriso e se recostou na parede enquanto estava sentado na cama. O pai logo viria para lhe dar a notícia. As mais novas notícias, afinal de contas, não fazia muito tempo desde que Mancy tinha engravidado novamente, e desde então a barriga dela começou a crescer timidamente. Para Gal, filho único, aquilo havia sido uma enorme alegria. Tão grande que ele nem chegou a pensar em coisas como dividir bens e nos ciúmes pela atenção dos pais. Simplesmente estava feliz.
Logo, os passos soaram pelo corredor e o coração do jovem Gal palpitou mais rápido. O som deles aumentou conforme os pais se aproximavam. Até que, subitamente, os barulho começou a diminuir. Os pais haviam passado direto pelo quarto dele. Algo estava errado. Jeorge não seria assim tão frio, no mínimo estaria conversando e falando alto por aí, comemorando a vinda do segundo filho, ou filha.
Gal esperou alguns poucos minutos para ver se algo acontecia, e logo depois abriu a porta de seu quarto o mais silenciosamente possível. Se esgueirou pelo corredor, arrastando os joelhos no chão para evitar qualquer ruído. A porta do quarto dos pais estava entreaberta, de modo que apenas um pequeno filete de luz iluminava o corredor. Gal sentou-se ao lado da porta e pôs um olho sobre a abertura.
- Não! Não dá para entender, Jeorge! - Rompeu a voz de Mancy, bem abatida.
- Eu sei querida, mas temos que aceitar os fatos e seguir.
- Seguir como? Como diabos vou poder ir em frente depois de saber disso tudo? Eu não sei nem que decisão tomar ainda... - Jeorge a consolou, sentando-se ao lado dela na cama enquanto a envolvia nos braços. Mancy aceitou de bom grado.
- Tudo bem. Fique tranquila, eu estou aqui com você, amor. E nós também temos o Gal, não é?
- Sim. - Disse, quase sem notar. - Deus, o Gal! Como vamos contar isso para ele?
- Não sei. Mas precisamos ter calma. Mas eu acredito que ele vai aceitar tudo e nos dar a força dele. Afinal, você conhece seu filho. - E Jeorge tentou abrir um sorriso.
- É. Obrigada, querido. Acho... Acho que já estou melhor. Mas... Que decisão devo tomar, agora? - E ela o olhou, profundamente. - Mesmo estando numa gravidez de risco... Vale a pena continuar?
- ... - Jeorge calou-se, pensando.
- Posso por em risco a minha vida e a do bebê... Mas gostaria de tentar, Jeorge. Eu sei. Eu sei. Isso é muito egoísmo, também temos o Gal. Só que... - E as lágrimas começaram a brotar dos olhos da mãe de Gal. Ela provavelmente estava daquela forma no carro, antes de chegarem ali. - Eu não sei o que fazer, Jeorge.
- Mancy... - Por um instante, ele também pareceu não saber o que iria dizer. E, num piscar de olhos, uma determinação sem igual surgiu na face de Jeorge. Ele abriu um sorriso e segurou a esposa pelos braços, bem próxima de seu corpo. - Mancy. Vamos tentar. Você é forte, E nossa filha também é. Mesmo correndo tantos riscos. Eu.. Eu sei. Eu sinto que vamos conseguir transpor todas essas barreiras. Não aborte, querida. Por favor. Sempre ficarei ao seu lado. Vamos conseguir, eu sei.
E com aquela fala. Mancy agora parecia ter ido a outro mundo. Seu olhar estava vago enquanto ela mergulhava em pensamentos. Ficou assim por alguns minutos, até finalmente ela abrir um sorriso e mais lágrimas saíram de seus olhos. Abraçou forte o marido e se aninhou no peito dele.
- Sim. Vamos conseguir. - E Gal afastou-se lentamente depois da última fala. Mesmo sendo tão novo, ele havia entendido grande parte do que estava ocorrendo ali. E tinha certeza que daria todo seu apoio ao pai, e principalmente, a mãe.
No outro dia, logo bem cedo, Mancy e Jeorge conversaram com Gal sobre o que discutiram na noite passada. Gal fingiu-se de desentendido e aceitou tudo com um forte abraço na mãe e no pai depois de ouvir eles falaram. Tinha orgulho deles, e sabia que não iriam perder para aquela gravidez de risco. Quando explicaram para ele, disseram que era uma doença rara, e que poderia causar sérios riscos durante uma gravidez. A vida de Mancy e do bebê estavam em risco caso decidissem seguir em frente. Mas, como Gal já sabia, eles decidiram por arriscar.
E dali em diante, as coisas voltaram a correr normais. Ou quase normais. Gal continuava a ir para escola e seu pai continuava a trabalhar. Mas a mãe que antigamente ficava sozinha em casa boa parte do tempo, agora estava sempre acompanhada de alguma amiga das redondezas. Também, as consultas dela ao médico eram bem mais frequentes que antes. Os dias seguiram-se desta forma, sem mais nenhuma alteração drástica. Meses se passaram, enquanto a barriga de Mancy crescia, junto de sua preocupação. Às vezes Gal a encontrava chorando em algum canto da casa, Jeorge também parecia mais estressado em certos dias. Compreendia o que ocorria em volta dele e tentava animar a todos. Muitas vezes, ele conseguia.
O dia tão esperado aconteceu no meio de outubro, Gal já havia se habituado completamente a escola e agora não a achava mais tão incrível quanto antes. Até mesmo a pista de skate tinha ficado enjoativa para ele. Voltava para casa no meio da tarde, depois de fazer um trabalho de escola junto do grupo dele. Já estava para abrir a porta quando ouviu algo quebrando lá dentro, seguido de um grito agudo.
Se jogou para dentro da casa com uma rapidez impressionante e deixou a mochila de lado. Não estava previsto para aquela semana, era cedo demais. Caso contrário, Mancy já estaria no hospital. Assim que Gal entrou na cozinha deparou-se com sua mãe caída no chão com a mão sobre a barriga enquanto se contorcia de dor. A amiga dela, uma velha vizinha de Gal, já estava ligando para a emergência enquanto voltava a se sentar ao lado da amiga.
- Gal, querido, não se preocupe... - Dizia Mancy, mas sua face de dor o fazia pensar justamente o contrário. Ela estava deitada sobre a maca, correndo pelos corredores do Hospital de Bluesky. Gal a acompanhava como podia, afinal, ele estava ali representando o papel do pai, enquanto ele saía correndo do trabalho para ir até lá. - Mamãe vai ficar bem. - E com isso ela entrou na sala de cirurgia e impediram Gal de continuar a seguindo.
Depois de quinze minutos, Jeorge apareceu quase caindo no corredor, já vestindo uma roupa apropriada para entrar na sala de cirurgia para acompanhar a esposa. Só parou antes da sala para se ajoelhar ao lado de onde Gal estava sentado. Ele segurou a mão do filho e tentou sorrir por de baixo da máscara.
- Tudo vai ficar bem, Gal.
- ... - Ele não respondeu.
- Hei... Não me olhe assim. É sério. Mamãe é forte, vai conseguir. E logo vamos estar aqui os quatro. Eu, você, Mamãe e Sarah. Han?
- ... - Tudo que Gal consegui fazer foi um movimento positivo com a cabeça. Jeorge o abraçou logo em seguida, para entrar correndo na sala de cirurgia um instante depois.
E durante as horas seguintes, o tempo pareceu uma eternidade para Gal. Ele simplesmente não esperava nada mais que seu pai e sua mãe saindo por aquela porta, o chamando para conhecer a nova irmã. Até lá, tudo era a mesma coisa. O corredor – que também era a sala de espera da sala de parto – estava imóvel, fora o balançar das pernas de Gal. Era de se esperar, afinal, não havia mais parente algum, fora os três. E não tiveram tempo de avisar nenhum amigo, devido a rapidez com que tudo ocorreu. A luz vermelha continuava acesa acima da sala, indicando que ainda não tinham terminado.
Os olhos de Gal abriram-se lentamente. Não havia mais sol na janela, e o hospital parecia ter ficado mais silencioso que antes. Olhou de lado e notou que haviam se passado duas horas desde que ele adormecera, estava cansado, com muita coisa na mente. E foi então que lhe ocorrera sobre o parto de sua mãe. Rapidamente virou-se para o lado, a luz ainda estava acesa. Não era possível demorar tanto assim.
Levantou-se, espreguiçando-se. As pernas estavam dormentes, e ele levou alguns minutos até elas voltarem ao normal. Olhou para os lados e decidiu tomar alguma coisa, nem que fosse para espairecer um pouco. E assim, saiu daquele corredor. O hospital já estava bem vazio naquela hora, pouca gente circulava por ali, e levando em conta que a cidade era pequena, parecia um prédio abandonado não fosse a luz ainda estar funcionando.
- Argh. - Bufou Gal consigo mesmo. Mesmo tendo relaxado o corpo, a mente ainda estava em pleno movimento. Afinal, quem não estaria tenso sabendo que a vida da mãe e da irmã corria perigo? Era de se esperar.
Desceu escadas e foi até o primeiro andar, onde finalmente encontrou o bebedouro. Ele acabou tomando quatro corpos d'água de uma vez só. Não tinha tomado nada desde a manhã daquele dia. E acabou, dali, notando o por-do-sol. Parece que na verdade o dia ainda não tinha se posto completamente. Gal escorou-se na janela e ficou ali aproveitando uma leve brisa que passava enquanto via a maravilha da natureza.
De certo modo, aquilo o acalmou um pouco. Trouxe um pouco de paz ao seu espírito, e com isso pôde realmente descansar a mente. Tanto, que nem viu o tempo passar, ficou ali por mais de vinte minutos, antes de jogar o copo de plástico no lixo e voltar a subir as escadas. Assim que virou o corredor, ficou boquiaberto. A luz estava apagada.
Esqueceu-se de todo o cansaço e correu para a porta, no exato momento em que dois médicos saíram. Eles pareciam exaustos, e não era para menos, fora uma longa batalha.
- Como eles estão? Mamãe e minha irmã? - Gal perguntou. Os médicos apenas lhe indicaram a entrada sem dizer nada, o que deixou o garoto com uma ponta de medo. Um mau pressentimento. Ele abriu a porta, dando passagem para enfermeiras que bloquearam sua visão instantaneamente. Então, naquele instante, o coração de Gal parou por um segundo. Jeorge estava caído de joelhos ao lado da cama, o rosto mergulhado na maca. Ele chorava alto enquanto murmurava muitas coisas para si mesmo.
- É tudo minha culpa. Só minha. - Dizia, quase que incompreensivelmente. - Se eu não a tivesse incentivado para continuar a gravidez ela... ela... - E se perdeu num mar de palavras sem sentido. Mas Gal tinha completamente esquecido de seu pai. Sua mãe estava morta. E Sarah também.
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
Os 8 Escolhidos - Capítulo 4
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