quinta-feira, 24 de junho de 2010

A Liga dos Diamantes


ㅤㅤ A loja nem ao menos tinha nome. Estava caindo aos pedaços, e os seus produtos – sapatos e tênis empoeirados – estavam para todos os lados, em montes que pareciam cair na cabeça do primeiro cliente que entrasse. Por sorte, não caiu quando eu pisei no tablado velho. Mas, mesmo que eu fosse engolido por um mar de ácaros, nada mais importaria. Aquele era o lugar, só podia ser lá. Tinha de ser ali.
ㅤㅤ A rua Calógeras, fazia já parte da cultura de Campo Grande, sendo uma de suas primeiras ruas, lar da primeira agência dos correios e agora, detentora das lojas mais antigas e caídas do centro. Por alguns segundos me perguntei se valeria a pena todo o caminho que percorri até ali. Já estava na metade da pequena e escura loja, e ninguém tinha vindo me atender. Mas eu pude ver a figura dele, entre algumas caixas de sapatilhas velhas. O velho moreno tinha um chapéu de palha na cabeça e usava uma calça social surrada e uma camisa branca desabotoada, que mostrava a gordura que os anos acumularam nele. Justamente quem procurava.
ㅤㅤ – Pois não, rapaz? - Foi o máximo que consegui arrancar do dono da loja.
ㅤㅤ – B-Boa tarde, Senhor. E-eu... - O nervosismo me afetava demais.
ㅤㅤ – Você é gago ou tem problema de cabeça. - Ele falou bruscamente. - Quer o que?
ㅤㅤ – Não é isso, Senhor!
ㅤㅤ – Huh, falou certinho agora. Então, o que tu quer.
ㅤㅤ – O senhor é Tobias das Claras Neves, não é?
ㅤㅤ O velho estreitou os olhos na minha direção e eu pude me sentir nu ao seu olhar.
ㅤㅤ – É. Sou mesmo. Porque?
ㅤㅤ E eu, aos tropeços nas palavras, me expliquei para ele.
ㅤㅤ Vinha de Floreal, uma pequena cidade do Interior de São Paulo. E vinha até ali porque apenas uma coisa me movia a tanto: O Sobrenatural. Sempre fui fascinado por essas coisas tenebrosas, lia contos de terror e via fotos e vídeos de fantasmas na internet desde que a operadora pôde cobrir a área da minha cidade. Meu vício se superou quando eu comecei a pesquisar sobre magia e sobre caçadores de fantasmas, e coisas do tipo. Wicca, Macumba, Satanismo, Religião de Tribos. Comecei a engolir tudo e qualquer coisa que conseguia comprar ou ler na Rede. E quando menos notei; já estava magro, pálido e estranho. As pessoas me olhavam estranho e meus pais quase cancelaram a conta de internet umas trocentas vezes, por sorte eu sempre tinha algum argumento ao meu favor.
ㅤㅤ Na internet, participava de um fórum chamado Olhos Vermelhos. Que reunia um monte de caras como eu. Alguns falavam de alienígenas e contatos de quarto grau, outros falavam de fantasmas e anomalias em casas abandonadas, ou de magia e rituais. Mas de um modo geral, todos acreditavam em todos. Me aprofundei tanto no site, que, dois anos após meu primeiro login, me indicaram para moderador. Aceitei de imediato, e logo, o próprio dono, um homem de codinome Gárgula Negro, veio falar comigo sobre alguns tópicos exclusivos da moderação. Entre eles, o que mais me intrigou foi o da Liga de Diamantes.
ㅤㅤ Dizia de um antigo grupo de apreciadores de magia e paranormal, que vinham desde a época do Brasil colônia. Eram alguns negros escravos, e alguns lacaios de senhores de terras que tinham fundado o grupo. O nome vinha porque fora feito na época do ciclo do ouro e diamante, e cada um dos poucos membros da seita, possuíam para identificar-lhes, uma lasca de diamante.
ㅤㅤ Cada membro podia escolher apenas um discípulo, ao qual devia ensinar tudo o que sabia e o caminho que devia trilhar. Até o momento em que o jovem seguidor possa caminhar com seus próprios passos, levando consigo a lasca de diamante. Pesquisei à finco sobre a Liga, e meu sonho, daquele instante em diante, foi entrar para o grupo seleto.
ㅤㅤ Anos de pesquisa, e comecei a viver sozinho. E, quando estava com vinte e poucos anos, descobri finalmente a localização de um dos membros. Era Tobias Neves. Foi apenas questão de mais alguns meses para juntar dinheiro e viajar até ele.
ㅤㅤ E foi exatamente desse jeito que contei a vocês, que falei com ele. A resposta, entretanto, veio seca e grossa.
ㅤㅤ – Cai fora daqui, guri.
ㅤㅤ – Mas, Senhor Tobias...
ㅤㅤ – Sem mais, tá olhando pra mim? O que eu tenho de especial pra tu? Pesquisei sobre macumba, sobre satanismo e até sobre sacrifícios humanos realizados pelos índios Guaicuru, que foram escondidos no tempo. Sou um poço de conhecimento mágico, moleque, mas olha pra mim. Tô aqui, empoleirado e velho, no meio desse monte de merda. - E bateu distraidamente num monte de sapatos. - Some da minha vista que é melhor pra tu.
ㅤㅤ – Não vou.
ㅤㅤ E não me perguntem da onde veio minha determinação.
ㅤㅤ – Toda minha vida baseou-se no fora do padrão, Senhor. Tudo que já fui capaz de fazer foi graças a rituais Wicca e coisas do tipo. Tenho certeza que já falei com duendes e outras criaturas mágicas durante minhas sessões!
ㅤㅤ – Baboseira! Acha que esses livros de 39,90 que vendem por aí dizem alguma coisa com coisa!? Você é só mais um babaca.
ㅤㅤ – Não! Os livros foram transcritos por um fórum confiável! Já deve ter ouvido falar! O Olhos Vermelhos! Nunca ouviu?
ㅤㅤ – Nunca ouvi! Agora, suma da minha frente, antes que eu chame a polícia!
ㅤㅤ – Não moverei um pé.
ㅤㅤ – Mas que filho da... - E ele mordeu o próprio lábio se contendo para não levantar e me encarar. Mas sua feição, de alguma forma tornou-se mais passiva. Um garoto pálido e magérrimo. - Que seja! Se você passar no meu teste, deixarei fazer qualquer coisa! Te dou até o diamante.
ㅤㅤ E retirou a dentadura, mostrando que o último dos dentes dela emanava um brilho radiante, mesmo que ofuscado com o tempo e mal tratos.
ㅤㅤ – Teste? - Eu vacilei, mas logo me recompus. - Tá, eu aceito!
ㅤㅤ – Guri burro. - E ele esboçou um sorriso de escárnio sem dente algum. - Seguindo até o início da calógeras, tu vai achar a antiga estação rodoviária abandonada. Ela é assombrada por uma porrada de espíritos, que surgem por lá na hora que o trem de cargas fazia sua parada, de madrugada. Passe uma noite em claro lá e você passou no teste.
ㅤㅤ – Só isso? - Me vangloriei, afinal de contas, já havia feito coisas parecidas milhares de vezes.
ㅤㅤ – Só. Agora some daqui.
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ㅤㅤ O resto da tarde foi de visitas. Meus pais – com quem ainda mantinha um bom contato, depois que comecei a ocultar meus hábitos incomuns – me pediram para comprar algumas lembranças da minha suposta “viagem de negócios”. Passei na Feira Central, onde comprei algumas bugigangas que nem me lembro mais o que eram e comi o Sobá Okinawano, da barraca da família que começou a vendê-las na feira. Muito melhor que qualquer lamên ou macarrão que já tenha comido em São Paulo. Passei pela frente da estação abandonada e a olhei com calma, ela ficava praticamente ao lado do Armazém Cultural, o antigo depósito da ferrovia que foi reformado e agora era um centro de cultura, que por sua vez, ficava ao lado da Feira Central, praticamente a melhor atração da cidade.
ㅤㅤ Descansei o resto da tarde e início da noite no Hotel Gaspar, que também era próximo de ambos os lugares. Eram exatas onze da noite quando saí para meu teste de aceitação para a Liga dos Diamantes. A estação ferroviária, de noite, ficava um tanto mais assustadora. Era uma grande construção com uma entrada de porta dupla mal fechada, o muro branco contrastava com o relógio que ficava alguns metros acima da porta, indicando o horário em que parou, dezenas de anos antes. A única alma viva que havia por perto eram alguns drogados, jogados do outro lado da rua, e moradores curiosos que comentavam sobre mim.
ㅤㅤ Adentrei o local com calma e sem tanto problema. Estava vazio e aos pedaços, mas havia indícios de que pessoas às vezes paravam por ali. Como uma embalagem de salgadinho jogada num canto e uma latinha de cerveja em outro. Era silencioso e escuro, e ratos passavam a todo instante. Me sentei junto a bilheteria, e apoiei minha cabeça na parede. Não seria nada difícil.
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ㅤㅤ E, por incrível que pareça, não estava sendo nada difícil. As horas passavam demoradas, é óbvio, porque afinal, eu devia passar a noite toda em claro e sem fazer absolutamente nada, a não ser ver e ouvir. Os únicos sons que pareciam altos o bastante eram o de ratos fuçando coisas antigas. Ou o de baratas passando de um lado para outro. Só uma vez ou outra, eu parecia sentir ouvir um ruído, ou voz. Mas nada que já não tenha presenciado igual ou parecido. Cocei a face e bocejei. E esse bocejo, acho que foi o meu grande erro.
ㅤㅤ Ao final dele, apoiei a cabeça para trás e fechei os olhos para um leve descansar de vista. O horror começou a aí. Cochilei por cinco minutos, ou talvez por duas horas, ou eu não faço idéia de quanto tempo. Só sei que abri os olhos com uma sensação horrível passando por todo meu corpo. A temperatura em volta estava muito anormal, parecia um deserto! Olhei para fora pela janela e notei que havia uma iluminação que antes não estava ali, e então, saí. Lá, um sol gigantesco e ardente parecia quase engolir a terra, como se eu pudesse tocar seu calor terrível sobre mim. Havia ventos fortíssimos que levantavam a poeira que os paralelepípedos preservados pelo governo na frente do Armazém guardavam em seus vãos.
ㅤㅤ De modo que, até mesmo eu estava começando a ficar com medo. Eu, que sempre quis presenciar cenas como aquelas. Eu, que sempre sonhei com algo tão anormal. Parecia o fim do mundo, olhei para os lados e as construções, que antes eram recentes, agora pareciam sofrer com mais de duzentos anos de decomposição. Tremi nas bases e recuei aos poucos para dentro da estação. Mas não antes de ver meus algozes.
ㅤㅤ Ao longe, uma mancha começou a cobrir o céu. Uma mancha tão negra e assustadora que conseguia superar até mesmo ao Sol arrebatador. A única coisa que conseguia destruir a homogeneidade daquela escuridão eram os poucos pontos vermelhos que o furavam o negro. E a massa se aproximava, inteiramente para mim. Até que os distingui. Eram pequenos demônios, de escamas negras e garras assustadoramente afiadas, portando asas fortes de uma cartilagem de mesmo tom.
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ㅤㅤ Os meus gritos de nada serviram, assim como a estação. Eles destroçaram a janela e a porta e entraram furiosamente avançando sobre mim, e apenas sobre mim. Perdi o chão para me apoiar, e senti as lâminas começarem a perfurar minhas costas enquanto me levantavam para o resto dos monstros. Em menos de cinco minutos, a maior parte de minha pele havia sido comida, e eu sentia a pura e horrível dor de sentir meus ossos e carne serem bicados e arrancados. E só sentia, pois meus olhos foram um dos primeiros itens a me arrancarem. Me perdi num universo inimaginável de dor, tanto, que até me esqueci do meu sonho e de todo o resto.
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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~ㅤㅤ
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ㅤㅤ – E então? - A voz jovem soou, vinda da esquina próxima à estação.
ㅤㅤ – Gostei. Guri, até que tu não é qualquer merda. - Tobias respondeu.
ㅤㅤ – É. Será que com isso eu ganho sua confiança?
ㅤㅤ – Claro. Claro. Mas o Diamante, você só ganha depois que tu me matar. De algum jeito bem terrível.
ㅤㅤ – Pode deixar. Até lá, vou aprender mais sobre os rituais de transporte de planos. O rapaz ali, foi só um primeiro teste. Tem muitos de onde aquele veio. - O homem, de cerca de trinta anos deu risada. Acompanhado do próprio Tobias. Fazia frio naquela madrugada, o motivo pelo qual ele usava aquela jaqueta de couro com a estampa da figura horrenda nas costas, um Gárgula, do mesmo tipo que devorara o Jovem desiludido em outro mundo. Já o homem da jaqueta, o Gárgula Negro preparava seus Olhos Vermelhos para mais uma vítima.

Leia até o fim...

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Sob seus Ombros


Forrada sobre seus delicados ombros
o manto desolado engole sua vida
e da solidão etérea, vem o coro.
de frenética melodia, em si contida.

Escuridão e Silêncio ficaram unidas
vivenciaram, sorriram, evoluíram, devaneavam
E ela perdeu-se no negro, sem saídas
A própria personalidade não mais a suplantava.

Coberta, uma única lágrima derramou
diante do parado pêndulo, sofrida.
Deixou escorrer seu último resquício. Corou,
pois agora, não havia mais alma a ser corroída.
Leia até o fim...

terça-feira, 15 de junho de 2010

Convivência


Trata-se, e não desta falsa realidade,
de uma soberba e nobre incógnita.
Nivela-se o passado da vida mórbida
e os grandes sonhos do futuro, se combate
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Sem a criativa criatividade criada criativamente.
As Garras do monótono se projetam,
tal que pensamentos, indefesos, caiam
na imensidão ignorante, com uma lufada.
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Trata-se, portanto, da desgraça rotineira
da inútil tentativa de estabilização.
Tolos, não vêem? Só fazem é morrer em vão.
Como muitos outros, no padrão, da mesma maneira.
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Leia até o fim...

terça-feira, 8 de junho de 2010

Cinco Séculos

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ㅤㅤ Ludgar estava de pé no alto de sua torre negra. A chuva despencava dos céus, fazendo molhar toda a vestimenta adornada de bronze que o velho mago decidira usar na ocasião. Mas a água sempre era um bom presságio, ela sempre caía quando um Ancião pagava pelos seus anos vividos. O Mago levantou os braços acima da face anciã, deformada pelas centenas de rugas e dobraduras que o tempo criara sobre a pele. A noite parecia ser sua única companheira naquela hora tão importante.
ㅤㅤ – Aqui está Ludgar Vindemis! - Um trovão ressoou ao longe. - E hoje me posto diante a vocês, Grandiosos Deuses, ao início de meu sexto século de vida!
ㅤㅤ Os gritos de Ludgar pareciam ser mais altos que a própria tempestade. Considerando que a cada palavra que ele entoava, toda a estrutura da torre negra de ferro vibrava.
ㅤㅤ – Tanto, para mostrar-lhes o quão magnífico foram vossos atos ao me permitirem transcender à vida comum. Quanto para mais uma vez implorar pelo sopro de vida! - Mais um trovão. - Relembro, com prazer e orgulho, de cada sacrifício que eu já dei em troca de meus séculos!
ㅤㅤ
ㅤㅤ Uma chama se acendeu ao redor do topo da torre. Uma chama púrpura e esférica que flutuava majestosamente.
ㅤㅤ – A Tortura Passiva!
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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
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ㅤㅤ Naquela época, Ludgar ainda tinha alguns amontoados de fios brancos na cabeça. Mas mesmo assim, qualquer ação dele denunciava seu tempo de vida exagerado. Abaixou-se para acender a última vela vermelha. Haviam cinco, uma em cada vértice agudo do pentagrama. O mago afastou-se, deliciando-se com o ritual que montara naquele velho galpão abandonado.
ㅤㅤ Haviam dois corpos nus no centro do símbolo de magia. Um deles estava suspenso no ar, preso por ganchos que estavam acorrentados ao teto do galpão. Os ganchos não tinham piedade alguma com o garoto que prendia, estavam fincados na pele. Dois nas costas, e mais um em cada membro. Abrindo feridas que esbanjavam sangue a cada segundo. O garoto não parecia ter mais de dez anos, e estava aparentemente desacordado, indiferente a qualquer dor causada pelos ganchos.
ㅤㅤ Três metros abaixo dele, havia uma mulher deslumbrante, estando no auge de sua vida com seus cachos dourados soltos pelo chão coberto de feno. Ela estava solta, com os braços cruzados sobre os seios e as penas levemente viradas para um lado, de modo que suas partes íntimas estavam parcialmente ocultas. Ludgar gorgolejou enquanto bebeu de um líquido misterioso de uma taça, deixando derramar um pouco dele quando esboçou um sorriso de escárnio. Tinha completado, com sucesso, um século de vida. Que era o mínimo necessário para pedir aos Deuses, por mais uma vida humana. Seu ar de vitória se tornou ainda mais evidente quando pegou uma grandiosa lança, com ponta de um bronze adornado de figuras míticas.
ㅤㅤ
ㅤㅤ – É hora. - Sussurrou, e entrou um passo adentro do pentagrama.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Subitamente, toda a luz do local – criada por tochas postas nas paredes do galpão – pareceu desaparecer. Fazendo com que a única iluminação presente viesse das velas que pontuavam o símbolo de magia. Ao mesmo tempo, também, um grito grotesco de dor veio do alto. Junto de um choro agudo e um chacoalhar de correntes.
ㅤㅤ – Vejo que acordou, jovem Elric. - Riu Ludgar, postado na frente da mãe do garoto, ainda desacordada. As palavras seguintes do menino vieram tão mescladas de choro e agonia que nada se pode entender. Ele tentou se soltar de várias formas, o que só fez com que a dor aumentasse mais. Desistiu de fazer qualquer coisa após alguns poucos minutos, quando finalmente se deu por vencido e deixou apenas o corpo ser segurado pelos ganchos tenebrosos.
ㅤㅤ – Socorro.... Socorro.... - Choramingou o garoto. - Mamãe... Socorro...
ㅤㅤ – Hahahaha! - A gargalhada tenebrosa de Ludgar encheu o salão. - Jovem Tolo! Será que o manto da dor cobriu toda sua lucidez!? Olhe atentamente! Abra os olhos e encontre sua mãe! Maldito e Abençoado garoto!
ㅤㅤ E Elric, pela primeira vez tentou discernir algo naquela escuridão abaixo dele. A figura assustadora do Mago Ancião se perdeu no seu pavo ao ver sua mãe, aos pés dele.
ㅤㅤ – Mamãe! Mamãe! - Elric gritou, novamente apavorado e se mexendo freneticamente. - Mamãe! Acorde! Mãe!
ㅤㅤ – Era isto que eu queria! - E gargalhou mais alto, o mago. - Agora, não tema mais por sua vida! Mas tema, sim, pelo horror de quem mais ama! Jovem Elric, o seu desespero, eu concedo aos deuses! E em troca, peço a autorização de viver Eternamente! - As chamas das velas pareciam crescer e dançar seguindo as palavras ritmadas de Ludgar. - Dêem a este valioso seguidor do conhecimento, mais uma vida!
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ㅤㅤ Naquele instante, Iorena começava a abrir os olhos. Pôde ainda ver quando o encapuzado Ludgar furou os dois olhos de Elric, seu filho, que urrava tentando se soltar. Mas a moça não conseguiu dizer nem fazer mais nada. O Mago já montara em cima dela com um punhal em mãos. Elric ouviu, durante a noite toda, os gritos de desespero e horror de sua mãe, enquanto Ludgar a estuprava e torturava, simultaneamente.
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ㅤㅤ Outra chama surgiu nos céus, rodeando a torre. Esta, brilhava num vermelho fortíssimo.
ㅤㅤ – Os Majestosos Representantes!
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ㅤㅤ – O Centenário atravessou a muralha! - O comandante berrou para os soldados. - Recuem para dentro do castelo e protejam o Rei! A vida do Grande Brathius deve continuar!
ㅤㅤ E uma grande massa de guerreiros se amontoava para entrar para dentro dos portões de ferro do castelo da Dinastia Brathius antes que elas se fechassem. Afinal, estar lá fora, lutando contra um Mago Ancião era suicídio. Aquela era uma batalha inesperada, em tempos em que a paz tinha sido selada com muito sacrifício. Não fazia nem mesmo um mês que todo aquele terror começara.
ㅤㅤ A cada semana, um Rei havia sido decapitado em frente a toda sua guarda pretoriana. As línguas comentaram e os mensageiros correram loucos por toda a terra: Ludgar, O Mago Centenário, estava buscando uma nova vida de conhecimento. E o sacrifício eram a cabeça de Reis advindas de grandes linhagens nobres. Ninguém sabia ao certo quantos Reis ele almejava matar, mas, em menos de duas semanas, todos os castelos estavam com seus guerreiros a postos dia e noite. E naquela madrugada, o castelo do rei Brathius fora o escolhida.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Os portões do Salão Real nunca estivera tão bem guarnecido de defesas. Toras de madeira foram fincadas no portão e travadas em vãos próprios para elas no chão do Salão, correntes grossas de metal e amontoados de pedras fechavam a monstruosa porta de ferro única. A guarda pretoriana fazia um círculo em volta de Brathius. O velho rei vestia sua armadura de bronze e cobre e mantinha-se com o peito erguido frente à ameaça. Seus olhos não expressavam medo, e sim, coragem e determinação. Na sua visão, seria ali que ele derrotaria O Centenário.
ㅤㅤ O silêncio já predominava fora e dentro do auditório do Rei. Deixando cada respiração acelerada evidente, vinda de cada um dos melhores soldados de Brathius. Eram vinte homens de sua total confiança, conglomerados a sua volta. O velho Nobre tocou no ombro do guerreiro a sua frente, que era o que mais tremia.
ㅤㅤ – Teme pela sua vida, Meu Guerreiro? - Libertus, o soldado, tomou um susto.
ㅤㅤ – N-não, meu Senhor. Temo pela sua vida. - Ele respondeu, sem revelar muita confiança.
ㅤㅤ – Ora, não minta para mim. Diga o que seu coração sente.
ㅤㅤ – . . . - Libertus pareceu pensar antes de voltar a falar. - Descobri o amor de minha vida, meu Rei. E temo não voltar para seus braços depois desta noite. Temo não conseguir cumprir minha missão.
ㅤㅤ – E qual é sua missão?
ㅤㅤ – Derrotar O Centenário.
ㅤㅤ – Entendo. - Brathius retirou sua mão do ombro de seu guerreiro e levou-a para o cabo da própria espada. Sacando-a de uma única vez. Deixou o peso da lâmina bastarda cair sobre o punho por alguns segundos, antes de girá-la em alguns poucos movimentos. - Então, que derrotemos juntos este Monstro esta noite! Para assim dedicar sua vitória à sua amada! Será Libertus, o Matador de Anciões! - E virou-se para seus outros guerreiros. - Assim como todos vocês! Lutem pelo título e pela honra! Brandam a espada com toda força que vocês tem dentro de seus corações!
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ㅤㅤ Um urro de guerra se ouviu dentro do Salão Real. E por um instante, a população imaginou que Ludgar estava morto.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Mas no instante seguinte um forte baque atingiu os portões. Fazendo as correntes tilintarem bruscamente e as toras de madeira racharem. Os guerreiros se posicionaram novamente em volta do rei, agora com um brilho no olhar. Um segundo baque atingiu a porta, e desta vez as dobradiças da porta de aço se romperam.
ㅤㅤ Um silêncio agonizante engoliu os segundos seguintes. Quem o quebrou foi Brathius.
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ㅤㅤ – Perdeu a coragem!? Ludgar Vindemis!?
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ㅤㅤ E como resposta ao rei, veio o último baque, destroçando a madeira e arrebentando as correntes. A porta voou longe, e levou consigo cinco dos guerreiros do rei. O Mago ancião estava do outro lado da porta, flutuando a um metro do chão. Atrás dele, a escuridão tomava forma, se materializando em vários tentáculos negros laminados de diversos tamanhos. Quatro caixotes de ouro, acorrentados à cintura de Ludgar flutuavam em torno dele, cada um carregando a cabeça de um rei morto. A luz do local diminuiu e dez guerreiros da guarda avançaram contra o mago.
ㅤㅤ Impiedoso, Ludgar lançou seus fulminantes tentáculos contra os homens do rei. A maioria foi pega na primeira investida, sendo jogada bruscamente contra a parede. Os que conseguiram se esquivar, foram alvos da segunda leva de tentáculos, tendo o mesmo destino dos primeiros. Os guerreiros atingidos não levantaram mais, inconscientes ou mortos.
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ㅤㅤ – Brathius Terceiro! - O Mago bradou. - Esta é a face do meu último Rei! E fui sábio em resguardá-lo para o final! Fora o único dos nobres que se postou diante de mim com bravura! Os outros, insignificantes, se esconderam feito ratos atrás de seus homens! Não me é surpresa que fora você o líder da união das províncias!
ㅤㅤ – Você fala demais para um mago, Ludgar!
ㅤㅤ Os cinco restantes avançaram. Eram eles Bilo, Groth, Selvegis, Orus e Libertus. Bilo e Groth foram jogados contra a parede e caíram mortos, Selvegis fora decapitado por um tentáculo antes mesmos de levantar a lâmina, Orus foi espremido por um aglomerado de tentáculos e Libertus, o último guerreiro vivo fora atravessado por quatro tentáculos e jogado de lado.
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ㅤㅤ – Tão incompetente é sua guarda, Brathius Terceiro!
ㅤㅤ – Ainda falta a mim, Mago Maldito! - E Brathius urrou avançando.
ㅤㅤ Aquelas foram as últimas palavras do Rei.
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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
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ㅤㅤ Mais uma chama surgiu, brilhando com um azul fulgurante.
ㅤㅤ – O Guardião Destronado!
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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
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ㅤㅤ Ludgar hesitou antes de dar o primeiro passo para dentro da floresta. Já torturou meninos e já matou reis. Mas, nas vésperas de seu aniversário de Quatro Séculos, ele precisava realmente impressionar os Deuses para ter mais uma vida a seguir. Os livros de magia negra indicavam todos o mesmo caminho: Ou ressuscitar um Guardião, ou Destroná-lo. Ambas eram tarefas árduas, visto que um Guardião perde poder conforme os séculos, mas em troca, ganha uma sabedoria inigualável.
ㅤㅤ O Mago Ancião decidiu-se por destronar um guardião. Ou, em outras palavras, retirá-lo do seu ninho. As criaturas criadas pelos próprios deuses tinham a função de proteger determinado local ou pessoa, e só deixaria de viver quando alguém de poder maior o retirasse de seu ponto fixo, o ninho. Ludgar avançava sobre território de Worthetis, o Guardião da Floresta Worth.
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ㅤㅤ – Doze séculos e este guardião ainda guarda tamanho poder? - Ludgar reclamou consigo mesmo. A velhice só lhe trazia mais rancor e ódio, e quando se tratava de seu próprio bem, chegava a se tornar doentio. A cada passo, o velho sentia a presença cada vez mais forte do Guardião. Ele estava vivo, e sabia da presença e das intenções de Ludgar.
ㅤㅤ Não fora necessário mais do que vinte passos antes de Worthetis agir. Raízes saltaram do chão, prontas para agarrar as pernas fracas e velhas do Mago. Contudo, Ludgar estava preparado, alçou vôo antes de as raízes tocarem seus pés, ainda tendo tempo de disparar uma rajada de chamas contra o conglomerado de madeira que o almejava.
ㅤㅤ – Não pegará Ludgar, O Matador de Reis, assim tão facilmente! Tolo Guardião! - Ele agora acelerava em seu vôo por entre a copa das árvores. Precisando, há todo instante, disparar feitiços contra raízes e animais que eram controlados por Worthetis.
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ㅤㅤ A energia crescia conforme Ludgar avançava para o centro da floresta. Podia sentir a presença do Guardião se fortalecer. Uma clareira se mostrou a algumas centenas de metros a frente. O Mago sorriu com seus poucos dentes e acelerou seu vôo. Era ali que o Guardião se ocultava. E era ali que o Ludgar conseguiria sua próxima oferenda.
ㅤㅤ Assim que passou pela última copa de árvore para avançar sobre o espaço aberto da clareira, a luz ofuscante do sol lhe cegou por alguns segundos. E algo lhe dizia que aquilo não fora mera coincidência. Quando voltou a abrir os olhos, uma montanha de caules espinhosos estava para cair acima dele. E caiu.
ㅤㅤ Durante alguns segundos nada se ouviu ou se moveu: Ludgar estava soterrado numa armadilha do Guardião. Uma brisa leve passou pelas árvores, fazendo as folhas emitirem um leve som ao roçarem umas nas outras, como se Worthetis estivesse convencido da vitória. Fora no mesmo exato instante que o baixo murmúrio começou. Quase inaudível, as pragas e os feitiços do mago atravessavam o monte de espinhos. Os sussurros se tornaram cochichos, e os cochichos se tornaram palavras suaves. Até o momento em que Ludgar urrou uma palavra indecifrável. Uma onda de podridão se espalhou e os caules caíram mortos no chão, ao redor do Mago que levantava. Tudo a volta também fora afetado, como se séculos tivessem se apossado das coisas em menos de segundos. Ludgar caminhou por entre a terra pútrida até o carvalho que se encontrava no centro da Clareira. Ele sangrava e parecia mancar sobre uma perna, com certeza os séculos que caíam sobre suas costas começavam a incomodar. Mas seu sorriso de escárnio se encontrava o mesmo.
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ㅤㅤ – A vitória é minha, Guardião. - E enfiou a mão dentro do tronco, como se este estivesse podre. Fechou o punho ali dentro e retirou de lá um cristal esverdeado que brilhava com ardor. Segurava Worthetis com orgulho, e logo em seguida levantou-o aos céus. - Aqui, mostro minha superioridade! Deuses, ouçam meu pedido novamente! - E quebrou o cristal.
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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
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ㅤㅤ A quarta chama surgiu, espaçada entre as outras, chamando toda a atenção com sua tonalidade dourada.
ㅤㅤ – O Roubo de uma vida!
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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
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ㅤㅤ Fazia mais de uma década que Artirius tinha feito a Tortura Passiva. E, desde então, vivia quase sempre escondido em sua biblioteca, engolindo livros e livros de feitiçaria. Sua magia nunca fora muito poderosa, e o velho, como um sábio ancião, tinha ciência disto. Sabia com precisão que ele ainda tinha de aprender muito, antes de começar a realizar artimanhas pelo mundo afora. Aquela biblioteca secreta fora um grande e arriscado investimento que tinha dado certo.
ㅤㅤ A escrivaninha que o Mago Centenário usava nos estudos era pequena e de madeira velha, ficava amontoada no meio de um imenso corredor de estantes de livros. Às vezes, Artirius se desconcentrava com o barulho que vinha de cima, principalmente em dias de feira. Seu oratório de magia fora construído embaixo de uma grande cidade. E, naquele dia em especial, o barulho estava quase insuportável.
ㅤㅤ – Mas afinal, o que há de tão bom para conversar lá!? - Rugia, com seus poucos dentes que restavam. O Mago deixou os anos se apossarem dele com mais velocidade que qualquer outro Centenário. Ele estava corcunda e mal andava direito. - Não há nada de bom lá.
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ㅤㅤ Folheou algumas páginas do livro de capa negra. Estava frustrado por não encontrar a magia certa para completar um ritual que planejava já fazia alguns bons anos. E sua interminável fonte de informações, que era aquela gigantesca biblioteca, fazia com que a sua busca pela informação correta pudesse durar por mais décadas a finco. Coçou os poucos fios de cabelo que ainda tinha e chutou com raiva uma pequena banqueta com anotações velhas, quando um grito de criança o desconcentrou.
ㅤㅤ – Pelos Deuses! Será preciso um Dragão para silenciar este povoado!? - E levantou-se bruscamente, olhando para o final do corredor. Ali, perdeu o ar por um segundo e entendeu o motivo pelo qual o barulho estava tão alto. Um feixe de luz mínimo indicava que a porta da biblioteca estava aberta. E Artirius tinha certeza de tê-la fechado. E com um lacre mágico de alto nível. Levantou-se, trêmulo e olhou em volta, fechando a mão no cajado que usava para andar.
ㅤㅤ – Quem está aí!? Responda!
ㅤㅤ
ㅤㅤ Mas Ludgar apenas sorria. Agora, já quase chegando aos seus quinhentos anos, ele almejava algo superior a tudo que já fizera. Caminhava pelas estantes de Aritius, folheando os livros como se fossem seus – e seriam, depois que matasse o outro mago – , escolhendo alguns que lhe interessavam para colocar debaixo do braço. Seu poder agora era desconsertante, e seria muito difícil para qualquer pessoa derrotá-lo.
ㅤㅤ Virou para entrar em outro corredor, avançou e parou ao final dele.
ㅤㅤ – Então este é Artirius Língua Ardente.
ㅤㅤ O mago pulou, só não caindo por causa de seu cajado. Fixou o olhar em Ludgar, ganhando a distância de alguns passos, lentamente.
ㅤㅤ – E você, quem é!?
ㅤㅤ – Hah, jovem, você me conhece.
ㅤㅤ – É melhor parar de charadas. Ou lhe transformo em um rato repugnante!
ㅤㅤ – Me transformar em rato!? - E Ludgar riu alto. - Conseguirá transformar em rato o matador dos cinco reis da União de Lethos? Conseguirá transformar em rato o destruidor do Guardião Worthetis?
ㅤㅤ – . . . - Artirius recostou as costas sobre a estante de livros. - Você é...
ㅤㅤ – Eu sou Ludgar Quarto, centenário energúmeno! E Você me guiará para eu viver meu quinto século!
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ㅤㅤ Tremores ocorreram em toda a cidade. E no fim do dia, alguns soldados em patrulha disseram ter visto um dragão negro montado levando nas garras um corpo miúdo e corcundo. A quarta tarefa para os deuses, era nada mais do que matar outro que havia vivido mais de uma vida comum. Para compensar o seu tempo na terra, retirando-a de outro que também quebrara a regra.
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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
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ㅤㅤ – E aqui, estou eu! Deuses! O Destino desejou que mais cem anos se passassem e que eu continuasse vivo! O Destino me teme! - Ludgar gritou, com sua voz ribombando na escuridão. - Depois da Tortura, dos Reis, do Guardião e do Centenário. Novamente aqui me posto diante de vocês, e desta vez, minha servidão lhes concede um reino!
ㅤㅤ Uma chama negra nasceu no céu, do mesmo tamanho e intensidade que as outro quatro chamas. E desta chama, saíram dois lastros retilíneos de fogo que seguiram de esfera a esfera de fogo, ligando uma a outra. Um Pentagrama de chamas multicolores enfeitava aquele céu cinzento.
ㅤㅤ – Ouça a minha oferenda! - E suas mãos dançaram no céu. - O Reino Perdido!
ㅤㅤ
ㅤㅤ O brilho no olhar de Ludgar era tremendo, que ele não parecia mais ter sido humano algum dia. As dobras no seu rosto eram tão antigas, que até o guardião mais velho se perguntava se já existira algum mago que persistira tanto tempo. Uma tenebrosa aura negra dançante começava a cercar o corpo do velho, à medida que seu canto era entoado cada vez mais alto. Os céus pareciam se mover ao comando de Ludgar, também, abrindo espaço entre suas nuvens pesadas em vários pontos da província. Os relâmpagos se cruzavam numa sincronia impressionante, e não havia mais ave alguma voando. O céu parecia querer desabar sobre tudo.
ㅤㅤ Ao mesmo tempo, parecia que a vitalidade voltava ao corpo do Mago de quase Seis Séculos. Ele se perdia no meio de seu feitiço gigantesco, e sua voz ressoava sem hesitação por toda a terra, ao mesmo tempo que sua pele parecia retroceder alguns anos e seu vigor parecia ser restaurado. A chuva, que antes parecia tão horripilante, agora não era nada perto de Ludgar Vindemis.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Sim! Eu sinto novamente a força dentro de mim! Está transbordando e nada pode me para! Eu sou o homem mais poderoso do universo! Hahahaha! Seu pensamento alto parecia criar uma segunda voz, que ressoava junto dos cânticos macabros que pronunciava. O ritual estava quase terminando.
ㅤㅤ Um único ponto vermelho surgiu no céu, bem ao longe, caindo lentamente. Uma bola incandescente de lava se dirigia para o centro de um vilarejo. Nem um segundo depois, outro ponto surgiu, e mais outro. E mais outro. O céu inteiro parecia despejar lava contra o reino. E para cada esfera de lava que surgia, o êxtase se Ludgar aumentava mais e mais.
ㅤㅤ Se perdeu tanto em seu prazer doentio que nem mesmo sentiu quando a lâmina atravessou suas costas. Só reparando no horror dela quando ela brotou no seu peito, trespassando o seu corpo brutalmente. O desespero e o horror substituíram a felicidade e o bom-gosto. O velho Mago saltou para trás com uma velocidade e agilidade anormais para sua idade, ganhando distância de seu algoz. Arfava pesadamente, pois qualquer ferida naquela idade era quase letal. Agora, do outro lado da torre, havia um homem encapuzado da cabeça aos pés. O único detalhe que se podia notar era a mão que segurava a espada que o atacou, o inimigo tinha uma pele quase tão enrugada quanto a dele. O Céu estava negro novamente, a chuva de lava não chegou ao reino.
ㅤㅤ – Como ousa atacar a Ludgar Quinto!? - Ele rugiu, já se preparando para invocar uma magia de podridão. Mas antes de qualquer outro ato completo, três espíritos o envolveram com uma força tremenda que ele não foi capaz de se concentrar na magia para invocá-la. Ludgar ganiu de raiva e dor, cuspindo uma boa quantidade de sangue, quando se viu prensado novamente. O controle de espíritos era uma técnica que nem mesmo ele sabia ao certo como fazer. Exigia mais de séculos de treino, e Ludgar agora sabia que abaixou a guarda para outro mago centenário.
ㅤㅤ – Argh! Insolente! - Gritou com raiva, e um braço escapou do muro espectral que o cercava. Mirou contra o misterioso mago e disparou a sua magia mais poderosa. Mas, antes que esta chegasse ao alvo, uma aura verde-clara se manifestou em volta do outro, engolindo por completo a magia de Ludgar.
ㅤㅤ O misterioso abriu um sorriso que trespassou a escuridão de seu capuz, mostrando os dentes amarelados num gesto de escárnio. E, como se respondesse as dúvidas de Ludgar, ele levantou o braço esquerdo, deixando o capuz se recolher para perto do ombro. Ali, na metade de seu braço, fincada sobre a pele velha e ressecada, havia um cristal verde brilhando fulgurosamente. Worthetis.
ㅤㅤ
ㅤㅤ " O Guardião Destronado
ㅤㅤ – Observe os espíritos, Ludgar Vindemis. - Falou aquele que recriou Worthetis, como a tarefa para ganhar a terceira vida. E o mago de seis séculos obedeceu, quase descrente do que deixava passar. Seus olhos, velhos, se fixaram em cada um dos espíritos apenas o tempo exato para ele raciocinar sobre os que estavam ali.
ㅤㅤ Havia o espírito de um jovem travando a sua frente.
ㅤㅤ " A Tortura Passiva
ㅤㅤ Um velho segurava seu braço direito, deixando os poucos dentes a mostra num sorriso espectral. E Ludgar sabia quem era.
ㅤㅤ " O Roubo de uma vida
ㅤㅤ Um forte e majestoso espírito segurava o resto de seu corpo, parecendo decidido a não soltá-lo nunca mais em toda a sua vida. Aquele era o Rei Brathius.
ㅤㅤ " Os Majestosos Representantes
ㅤㅤ Ludgar olhou para o outro mago com rancor e curiosidade, enquanto as forças se esvaíam de seu corpo que já aguentara tanto tempo na terra. Ele já não mais se sentia jovem.
ㅤㅤ – Porque guarda tanto rancor de mim? - Falou, compassadamente. - Porque gastou os seus séculos, apenas almejando uma vingança contra mim? Sou mais velho que você, sei disso. E mesmo assim, perdi em questão de Poder. Porque você tem ao seu lado a magia rancorosa e pesada da vingança. Sou terrível e inescrupuloso. Mas um doente como você com certeza é mais! Diga-me, quem é você!? Maldito!?
ㅤㅤ – Hahahaha.... - O Velho riu. Deixando a vista mais de seu corpo. - Você realmente não sabe, certo? Pois esteja ciente que já tenho quatro séculos de vida, dos quais todos eles, eu passei vivendo apenas para este dia! Falta ainda algumas boas décadas pela frente, mas você será aquele que usarei para meu sacrifício para o próximo século.
ㅤㅤ – Apenas isso? Não. - E Ludgar riu. - Não é só isso... Diga realmente o que você...
ㅤㅤ – Cale-se! Você não está em posição de fazer nada ou dizer nada, Ludgar Vindemis! Você será apenas um corpo sem espírito. Nada mais que um nada! Que é o que merece...
ㅤㅤ E o velho foi caminhando lentamente na direção de Ludgar. O controlador de espíritos era assombrosamente lento, de modo que o ele se sentiu extremamente envergonhado de ser pego de guarda baixa por um homem como aquele. O velho demorou cerca de um minuto para chegar até Ludgar, mas em nenhum momento o seu sorriso – que era a única coisa que podia ser vista em sua face – se desmanchara.
ㅤㅤ O velho se postou na frente do mago frustrado e soltou um longo suspiro.
ㅤㅤ – Sabe, na época que você me fez tanto mal, eu esperava que você fosse o homem mais terrível e poderoso do mundo. Mas agora, mais lúcido, eu pude notar. O homem mais terrível e poderoso que eu conheço, sou eu mesmo!
ㅤㅤ E com uma risada maligna, o mago puxou o próprio capuz, revelando sua face deformada. Os anos fizeram com que as duas marcas sobre os olhos, cicatrizes deixadas pelo próprio Ludgar, lhe ficassem mais temíveis ainda. Elric, mesmo cego, pôde imaginar a face de terror do outro.
ㅤㅤ – Pela minha mãe, maldito!
ㅤㅤ Sendo ajudado pelos espíritos de Artirius, Brathius e Libertus, um jovem sonhador que fora morto por Ludgar, Elric usou da lâmina para arrancar os dois olhos do mago fora. Seu corpo estava tão em êxtase pelo momento que ele tremia e soltava leves gemidos a cada ato de crueldade que fazia ao homem. Ele viveu por tantos séculos apenas por aquele momento. O momento da retribuição.
ㅤㅤ – Em comemoração pelo seu Sexto Século de vida, Ludgar Vindemis, Matador de Reis, eu o condeno ao sofrimento eterno! Hahahahaha!
ㅤㅤ O último golpe com a lâmina da espada afundou no estômago de Ludgar, até o ponto em que o cabo da arma estava para entrar no corpo do mago velho. Ali, na empunhadura, o cristal negro enfeitiçado fez seu trabalho e engoliu a alma de Ludgar para dentro dele. Ele viveria quanto tempo Elric desejasse, sempre queimando nas brasas intermináveis do inferno embutido para a alma de Ludgar.
ㅤㅤ E também, daquele século em diante, até muitos e muitos milênios depois, o nome Elric Olhos da Escuridão ficou conhecido por toda a terra, como o detentor da magia dos espíritos e o líder de mais de três guardiões.
ㅤㅤ
Leia até o fim...

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