sábado, 11 de setembro de 2010

O valor de Sapatilhas de Cristal


ㅤㅤ Cinderela limpou as lágrimas novamente, elas não paravam de cair! Talvez nem fosse pelo fato de não poder ir ao baile encontrar e ver o príncipe, motivo tão fútil, mas sim por ter suas espectativas despedaçados no último momento e em frente aos seus olhos. O vestido feito de retalhos de velhas roupas e panos estava ali, alimentando a fogueira de seu sujo e pequeno quarto. Talvez aquela fosse a simbólica imagem de como sua vida se tornara um inferno, desde que seu pai casou-se novamente. O velho homem morava em outra cidade, dirigindo o comércio que tanto o enriquecia, deixando assim a madrasta e suas duas filhas para morar com sua querida menina.
ㅤㅤ Mal sabia ele que mal-tratos a moça suportava todos os dias, que sua bela e encantadora Cinderela era agora a criada inútil. A jovem ouviu a porta fechar-se no andar de baixp, indicando que as três tinham ido ao baile. Até mesmo a madrasta se caprichou para ir, como se pensasse que poderia atrair os olhares do príncipe. Mas, se analisado com calma, melhor a conquistadora de comerciantes viúvos que suas duas horrorosas filhas. Uma nova onda de lágrimas brotou dos olhos, ao tempo que via pela pequena janela a carruagem que as levava afastar-se. Tanta era a tristeza que mal notou quando as chamas começaram a expelir uma fumaça de tom púrpuro. Logo a imagem formada por tão estranha combustão começou a tomar nitidez e vida.
ㅤㅤ – Jovem menina... - A voz rouca e tenebrosa soou. Cinderela levantou-se de supetão, direcionando o olhar para a imagem do demônio sobre a lareira. - Deseja, sim, mostrar que você muito mais deveria ir à festa que aquelas bruxas, certo?
ㅤㅤ A voz de Cinderela voltou aos poucos, assim como ela tentava controlar sua surpresa. O demônio era algo conhecido, assim como as criaturas mágicas da floresta. Era dito que quase toda pessoa tinha um vínculo com a natureza primitiva através de uma criatura mágica, a própria Cinderela tinha pássaros e coelhos que correspondiam ao seu canto. Foram os pequenos que lhe ajudaram a fazer o vestido de retalhos com o qual iria ao baile, vestido que fora queimado com uma desculpa esfarrapada qualquer.
ㅤㅤ – Sim... - Ela passou as costas da mão sobre as lágrimas, limpando a face. - Eu teria muito mais chances com o príncipe que elas. Não que isso importe, apenas me entristeço por notar que minha vida afunda cada vez mais na escuridão.
ㅤㅤ – Pois, aqui, te ofereço a chance da vingança. - Disse o demônio levantando a voz. - Te levo ao baile, te deixo aos olhos do príncipe. Apenas me promete que volta antes das doze badaladas da meia-noite.
ㅤㅤ – Prometo! Vou e volto antes que a noite avance! - Ela disse com um sorriso no rosto. - Mas por que me deixa esta chance?
ㅤㅤ – Porque adoro ver a angústia na face dos outros. E nenhuma será melhor que as três ao observarem você entrando no baile.
ㅤㅤ A voz não deu chance de mais nenhuma de resposta. Sumiu, subindo pela chaminé. Ao mesmo tempo, uma aura mágica envolveu Cinderela, e no meio de estrelas próprias e pontinhos brilhosos, se viu posta num vestido branco e bordado de diamantes. Seu cabelo loiro e descuidado estava alisado e preso num coque prateado, assim como seus pés repousavam em duas sapatilhas lindas de cristal. Cheia de felicidade, Cinderela saiu da casa, sendo esperada por uma carruagem pomposa.
ㅤㅤ Chegou na festa tragando os olhares de todos para ela. Que bela dama era aquela? O baile promovido com o intuito do príncipe escolher sua noiva mostrara seu resultado no momento em que ela entrou no grande salão branco. Ninguém sabia de Cinderela, ela estava diferente demais, de modo que só as três tenebrosas que moravam com ela a identificaram. Mas não ousaram fazer nada em frente ao príncipe, que parecia encantado com ela. O jovem de olhos azuis e cabelo louro sentiu-se fisgado pela beleza, já não importava mais nada, ela era bela e hipnotizante. Pouco importava se seria chata ou pobre, queria possuí-la. Avançou no salão e convidou-a para uma dança. A madrasta dispensou o cortejo de um velho nobre para remoer-se de raiva. Suas duas filhas; gordas, cheias de sardas e de dentes amarelados pareciam querer se lançar em cima da Jovem que dançava com o Príncipe.
ㅤㅤ Uma, duas, três... Os dois perderam a noção do tempo e de todo o resto, alguns mais velhos juravam ver uma aura púrpura e mágica acobertando o casal. Dançavam e riam em pequenas e bobas conversas. Tanta era a diversão, que Cinderela esquecera-se do aviso do demônio. E, em frente as megeras irmãs de criação, madrasta e ao príncipe, mostrou sua cara de pavor quando as badaladas começaram a soar. Tinha de partir! Largou o herdeiro do trono no meio da dança e corria na direção da entrada enquanto a mágica começava a se desfazer. O vestido começou a simplesmente apodrecer e desintegrar-se, deixando sua carne pura e pálida a exposição. Abriu as portas, e desceu as escadas freneticamente, acabando por deixar para trás a sapatilha de cristal, que saiu de seus pés num tropeço. Nua, triste e abadalada; a moça embrenhou-se na mata ao lado do castelo. E dali voltou para sua casa, deixando para trás o príncipe com a sapatilha de cristal agora nas mãos. A peça não desaparecera simplesmente porque saíra dos seus pés antes que o feitiço terminasse por completo.
ㅤㅤ Houve ao menos um ponto positivo no fato de ter se esquecido da hora do término do feitiço: A madrasta e suas filhas não lhe esculacharam por ela ter roubado o príncipe, simplesmente riam e caçoavam do vergonhoso modo com o qual saiu do baile. Também, alguns moradores vizinhos espalharam o boato de Cinderela voltar para casa nua no meio da noite, deixando agora sua honra despedaçada. A menina, que deveria estar feliz pela chance que teve, agora estava ainda mais abalada, nem ao menos saindo de seu quarto nas horas em que não estava trabalhando para as outras.
ㅤㅤ E foi por causa dessa desolação toda que não estava presente quando o mensageiro do rei anunciou que em breve o príncipe ali passaria, para procurar pela sua amada do sapato brilhoso. E nem mesmo estranhou quando as duas filhas da madrasta compararam os pés gordos e feios delas com os seus delicados. O tempo continuou a passar para Cinderela, que agora desistira por completo de retomar suas esperanças de um dia ser feliz. Dias e meses, até aquele fim de tarde.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Cinderela tinha terminado de torcer as roupas da casa, e fora dispensava mais cedo de suas obrigações pela Madrasta, que dissera que ela poderia descansar porque iriam comer junto de amigos e pretendentes para as filhas. A pobre menina nem ligou para o informe, agora trabalhar ou não trabalhar só ditavam como esperaria a morte abraçar-lhe. Subiu as escadas, e já ia entrar no seu quarto – o último e menor do corredor – quando ouviu o choramingo vindo do quarto das meninas. Logo em seguida, o grito contido da outra.
ㅤㅤ Movida por uma curiosidade inesperada, Cinderela deixou seu corpo mover em direção à porta. Meteu o olhar pela fechadura e perdeu o fôlego com a imagem. Ali dentro, as gordas meninas choravam com mordaças nas bocas, sentadas sobre poças de sangue tenebrosas. Os pés esquerdos delas estavam destruídos; uma tentara arrancar os dois dedos menores, e agora tinha o mindinho caído na poça vermelha e o outro dedo pendurado, preso por um naco de pele e carne. Já a outra tinha feito ainda pior: No porte de uma navalha, tinha raspado a carne protuberante de seu pé, fazendo com que grandes maços avermelhados rodeassem o que restara de seu ex-apoio, deixando o sangue vazar aos montes.
ㅤㅤ Desnorteada, Cinderela abandonou a imagem proporcionada pela fechadura e afastou-se. Indo descansar à beira da escada. Parou ali e silenciou-se, pensando no motivo da loucura delas. Quando ouviu as batidas na porta. Segundos depois, ouviu a voz do segundo criado da casa – um garoto que ia embora poucas horas após o anoitecer – falando com alguém de timbre pomposo.
ㅤㅤ – Vim para ver se as moças dessa casa possuem o pé da noiva do Grande Príncipe! - Ele disse. - Que todas desçam para provar lealdade ao Herdeiro do trono, que veio em pessoa para acompanhar os testes!
ㅤㅤ Cinderela encaixou seus pensamentos e tudo fez sentido. Era óbvio! Queriam lhe tirar seu príncipe! Talvez o único que pudesse retirá-la daquela miserável vida que levava. A raiva e o ódio assomaram sua cabeça e ela levantou-se, pronta para fazer o que deveria.
ㅤㅤ
ㅤㅤ – Por ordens do príncipe, ordeno que as moças logo desçam! - Gritou o porta-voz. - Ainda temos três casas a visitar!
ㅤㅤ O menino subira fazia alguns bons minutos, mas não retornara. Mas então, como que obedecendo à voz grossa e poderosa do funcionário real, passos foram ouvidos no tablado de madeira da casa. Passos compassados e pesados em direção à escada. Logo foi surgindo a imagem de Cinderela. A moça tinha olhos arregalados e o vestido sujo de vermelho, de sangue. O tom doentio de sua face assustou os homens, talvez mais que o que carregava nas mãos. Levava entre os dedos os pés maltratados das duas irmãs, pés que ela mesmo decepou das desgraçadas que agora sofriam lentamente da morte por facadas que lhes arrancaram braços e pernas. O menino também não tivera sorte, tendo a garganta perfurada rapidamente, para que Cinderela pudesse descer com toda a calma que queria. Os homens do Príncipe olharam com horror à moça, que finalmente chegara à sala de entrada.
ㅤㅤ Cinderela jogou os pés no chão.
ㅤㅤ – Estes são as traidoras! Malditas que queriam me roubar meu príncipe! - Ela quase gritou, e aproximou-se do sapato de cristal repousado num travesseiro vermelho. Logo encaixando seu pé perfeitamente no calçado. Com um sorriso largo e sádico ela levantou os olhos. - Aqui estou, meu príncipe! Vamos, e me leva para teu castelo, mata as que moram nesta casa que me causaram tanta dor e tristeza, tenha a mim!
ㅤㅤ Cinderela olhou para seu amado príncipe que lhe tiraria dali, queria encontrar nele a imagem do homem salvador, de seu justiceiro. Mas não foi aquilo que encontrou nele. Também não foi horror pelos seus atos que o príncipe demonstrava, ele parecia nem ter notado a mulher com face sanguinária calçando a sapatilha. Seus olhos estavam vidrados naquela que descia a escada.
ㅤㅤ A madrasta vestira um vestido muito mais lindo do que o que usara no baile. Envolta num tom púrpuro e em bordados trabalhadíssimos, ela parecia uma moça de vinte anos, esbanjando beleza e sensualidade. Os lábios cobertos de uma cor vermelha fortíssima hipnotizavam o príncipe. Para os infernos com a moça do sapatilho de cristal! Aquela era muito mais linda, muito mais conquistadora. Seu perfume parecia ter vida, deixando até mesmo os serviçais e soldados do príncipe cativados pelo odor, era praticamente a luxúria em pessoa aquela mulher que os excitava apenas com o olhar. Era aquela a mulher que o Príncipe levaria nua para a cama. Era com ela que se casaria, aquela mulher pálida, de olhos e madeixas negras, de seios fartos e cintura arranjada.
ㅤㅤ Cinderela assistiu abismada à figura de sua Madrasta sendo envolta nos braços do príncipe. Quase sem notar a figura púrpura e endemoniada que a cercava e protegia. O demônio brincalhão e maldoso que amava gerar discórdia e mudava de lado sempre que bem lhe agradasse parecia rir da menina. Sua alma fora destruída naquele instante, tanto que nem notou quando os soldados do príncipe fincaram as lâminas em seu corpo. A louca sanguinária deveria morrer, o príncipe já escolhera sua dama. Viveriam juntos, felizes para sempre.

ㅤㅤ Leia até o fim...

Desviando de rumo


Essa é uma postagem atípica. Dando uma pequena pausa nesses vários e vários mundos que minha cabeça inventa, e na qual eu convido vocês a ingressarem. Estou aqui para cobrar. Cobrar uma coisa de vocês, meus poucos - porém muito valorosos - leitores. Eu quero apenas que vocês não parem. A vida não é só escrever, não é só cantar, não é só fazer o que a gente gosta. Estudem, cresçam, evoluam!

Um protesto bobo e mal-formado. Mas apenas cresceu dentro de mim, esses últimos dias. Espero que minhas palavras, assim como os levem para a fantasia, também os tragam para a realidade onde vivem.

Deixo aqui a letra de Outra Frequencia, do Engenheiros do Hawaii, junto do link de duas das melhores músicas deles. Também, duas das melhores músicas que já ouvi.

seria mais fácil fazer como todo mundo faz
o caminho mais curto, produto que rende mais
seria mais fácil fazer como todo mundo faz
um tiro certeiro, modelo que vende mais

mas nós dançamos no silêncio
choramos no carnaval
não vemos graça nas gracinhas da tv
morremos de rir no horário eleitoral

seria mais fácil fazer como todo mundo faz
sem sair do sofá, deixar a ferrari pra trás
seria mais fácil, como todo mundo faz
o milésimo gol sentado na mesa de um bar

mas nós vibramos em outra freqüência
sabemos que não é bem assim
se fosse fácil achar o caminho das pedras
tantas pedras no caminho não seria ruim


http://www.youtube.com/watch?v=dhZM5z3lQJw&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=T1jkm_E6TuA&feature=related

Leia até o fim...

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O Eterno Noturno dos Meus Pesadelos


ㅤㅤ Estela estava ficando realmente preocupada. Tentava afastar-se daquele som repetitivo e terrível que a atormentava, mas em nenhum momento os passos deixavam de soar atrás de si. E, sempre que virava para trás, não achava nada além da companhia do silêncio da madrugada. Ela estava próxima de casa, mais algumas quadras e aquela palpitação que crescia no seu peito iria se encerrar. Acelerou a caminhada, ouvindo as passadas atrás dela também acelerarem. Estela fechou os olhos com força, tentando conter as lágrimas de cair, todo seu corpo tremia; fato só não tão claro pelo fato de não estar parada. Mais três quadras.
ㅤㅤ Avançou a esquina, desviando o olhar para a pequena rua, apenas para constar que nenhum veículo passava. O bairro Norte-Vila ficava completamente deserto àquela hora. Assim que voltou seu olhar para frente, ela estacou no meio da faixa de pedestres, com olhos arregalados e a boca trêmula: Ali, no fim da calçada, um estranho sujeito a observava, com um sorriso medonho na face. Vestia camisa e jaqueta pretas, em conjunto de uma calça jeans da mesma cor. Os olhos verde-oliva do pálido homem estavam fincados nos dela, observando cada pequeno movimento da mulher com atenção. O Vampiro sabia que ela era sua próxima vítima.
ㅤㅤ Estela afastou dois passos, tentando encontrar apoio para se sentar. Ela não era do tipo que sabia enfrentar situações complicadas, alias, todos no trabalho a chamavam de infantil. A Bobona. Tentava com todas as forças virar-se e correr, mas as pernas não a obedeciam.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Ezequiel alargou seu sorriso, a presa estava desesperada. Aquela era a melhor expressão que ele podia achar em suas pobres vítimas. Avançou dois passos, descendo da calçada para o asfalto da rua. Acompanhava minuciosamente cada movimento de Estela – a mulher loira e de face bela desmanchava sua beleza com o descuido com o resto do corpo, estava gorda e com os cabelos desarrumados –, para apreciar com mais gosto o medo que ela exalava. Talvez a única coisa que se comparasse ao prazer de tomar o maldito líquido da imortalidade vampírica, fosse o terror que os meros mortais demonstravam perante a morte certa nas garras do Eterno.
ㅤㅤ – O medo é tanto que não se move, querida? - Indagou Ezequiel. - O que me diria caso seus olhos encarassem algo ainda pior?
ㅤㅤ E, mantendo ainda a expressão maldosa na face, o vampiro abriu a boca ao mesmo tempo que deixava os caninos pontiagudos crescerem absurdamente. Seus olhos fluíram do verde-oliva para o vermelho-brasil em segundos. Ezequiel rosnou para Estela, enquanto encarava a face da mulher.
ㅤㅤ A Loira deixou os olhos crescerem ainda mais para fora das órbitas quando o estranho revelou sua paranormalidade. Ela novamente perdeu a força nas pernas, agora bambeando-as a ponto de não conseguir nem ao menos manter-se de pé. Ficou ali, de boca aberta, definindo os traços da horrível criatura.
ㅤㅤ – Meu deus.... - Balbuciou ela.
ㅤㅤ – Agora sabe que sua vida está selada às minhas garras!
ㅤㅤ – Vampiro... - Ela continuou no quase transe. - É mesmo... um vampiro?
ㅤㅤ Ezequiel riu alto, aproximando-se mais alguns passos da loira.
ㅤㅤ – Ainda tem dúvidas!?
ㅤㅤ – Ai, meu deus.... - Ela disse novamente, para a felicidade do vampiro que adorava sem entorpecer do medo dos outros. Então, subitamente, ela formou um sorriso enorme na face. - Eu sabia! Eu sabia que vocês existiam! Que demais!
ㅤㅤ Confuso, o vampiro desfez o cenho feroz e ameaçador. Agora encarando a vítima com clara irritação, aquela não era a resposta esperada. Estela levantou-se e aproximou-se dele em passos rápidos, enquanto mexia na bolsa.
ㅤㅤ – Olha! Olha! - E puxou da bolsa um pequeno pedaço de papel plastificado: “Fã n°99, Twilight Lovers”, empurrando na face do eterno noturno. A excitação da garota era quase doentia, os olhos continuavam arregalados e os dedos tremiam, mas agora eram de uma felicidade sádica. - Eu A-M-O vampiros, sério! Nossa, sua pele é tão branca, parece que é até mais que a do Ed.
ㅤㅤ – Ed?
ㅤㅤ – Edward Cullen, nossa, o melhor de todos os vampiros. Hah! Mas que se dane o Ed, agora eu estou aqui, de frente pra um vampiro de verdade!
ㅤㅤ Um tapa foi desferido pelo furioso Ezequiel na face de Estela, jogando a mulher no chão de uma única vez. O golpe foi tão forte que abriu dois largos arranhões na face dela. Ele, Ezequiel, já obviamente procurou saber sobre aquela nova crônica vampírica que se popularizara tanto. Não gostou de nada, não eram aqueles os vampiros reais. E aquela mulher caída na sua frente, aquela Estela, ela não era para ser uma doente daquelas. Já tinha mais de trinta anos, deveria estar com um namorado e uma vida boa pela frente, não mergulhando de cabeça em febres adolescentes.
ㅤㅤ Ela demorou alguns segundos, a dor que sentia não era reprimida, e sim recebida com um sorriso alargado. Fora um tapa dado por um noturno, um imortal! Um vampiro deixara sua marca nela! Olhou para o pálido homem novamente, arranjando forças para se levantar sorridente.
ㅤㅤ – Insolência! O que tem na cabeça, Mulher!? - E empurrou-a para cair novamente. - Não vê!? Vim aqui para açoitar sua vida! Vim aqui para arrancar cada gota de seu sangue! Pouco importa os fictícios frouxos sanguinários que já viu, este, cá a sua frente, é um real. Um que deve temer!
ㅤㅤ – Temer porque!? - Ela retrucou, novamente saindo do chão. - Eu amo vocês! Daria minha vida de mão beijada para ter esse momento. O momento em que um de vocês estivesse aqui, comigo. Não ligo... Não ligo se vou morrer. - Ela alternava a fala em risadas histéricas e enlouquecidas. - É só um prazer estar aqui à sua frente. Olha, querido, olha!
ㅤㅤ E Estela levou as mãos até a borda da camisa que apertava suas gorduras saltadas. Sem qualquer cerimônia abriu os primeiros botões, enquanto deixava o sangue que brotava na sua bochecha escorrer pela face, passando pelos lábios até cair sobre a vestimenta. Ali, na frente do atordoado Ezequiel, abriu a camisa social com que trabalhava. O Vampiro transfigurou sua face em nojo. Em meio as estrias, pelos não depilados e espinhas acumuladas; se encontrava a figura de uma boca mordendo a pele de Estela. Uma tatuagem.
ㅤㅤ – Porque não me morde!? Vamos, morde! Aqui!
ㅤㅤ O Eterno desviou o olhar da grotesca visão, os mortais tornavam-se cada vez mais nojentos.
ㅤㅤ – Vamos! Estou pronta! Sugue todo meu sangue, por favor! - Os olhos dela criavam veias vermelhas saltadas, ela parecia não querer piscar para não perder um momento do vampiro. O sorriso descuidado deixava a saliva escapar pelos cantos da boca, deixando-a toda babada; o que contribuía ainda mais para o estado de loucura em que aquela loira estava para idolatrá-lo.
ㅤㅤ Ezequiel explodiu em raiva. Avançou contra ela, fincando as mãos fortes sobre o ombro e o pulso dela, e num movimento raivoso e seguido de um urro inumano, arrancou o membro de Estela. O braço caiu no meio da rua, imóvel e deixando exposto parte do osso que o ligava ao resto do corpo. O ombro de Estela encharcou-se de sangue, mas a única reação da mulher foi gargalhar histericamente com lágrimas descendo pelos olhos enquanto caía de joelhos no chão. Seu herói. Seu vilão. O motivo para sua existência estava ali lhe fazendo o mal, lhe causando emoções maiores do que seu monotonismo que geralmente só era quebrado quando mergulhava a mente no mundo deles, dos noturnos. A dor envolvia seu ser, mas mais que isso, o prazer enchia sua alma. Sentia-se excitada sexualmente, de modo que seus órgãos sexuais atingiram o orgasmo seguido pela folga onde relaxou os músculos vaginais, deixando a urina infestar o chão, mesclando-se com o sangue derramado.
ㅤㅤ O vampiro pôs a mão sobre o nariz de faro aguçado e afastou-se dois passos, olhando com desgosto para a decadente loira. A mulher chorava e ria.
ㅤㅤ – Vamos! Não espere por mais! Venha e me dê o abraço da morte, tome de meu sangue!
ㅤㅤ A raiva acobertou o nojo, e Ezequiel avançou mais uma vez sobre a mulher, agora desferindo um chute na boca do estômago dela, que a fez voar alguns centímetros para trás, cuspindo sangue pela boca. O ar lhe saiu dos pulmões e ela não podia falar, o que – pensava o vampiro – a calaria. Estela levantou o olhar sádico para ele, o sorriso agora imbuído de sangue e lágrimas.
ㅤㅤ – M...ma.... - Respirou fundo. - Mais.... S-sou... sua.
ㅤㅤ Ele avançou passos na direção dela e segurou o outro braço dela com ambas as mãos, apoiou a sola do pé sobre as costelas da moça e deu um tranco. O segundo membro dela saiu voando, esguichando sangue sobre a face do irritado Ezequiel. Agora ela havia gritado de dor, os olhos arregalaram-se ainda mais e ela encolheu-se por um breve momento, tão breve que Ezequiel mal pôde apreciar. Logo o grito emendou-se numa risada medonha.
ㅤㅤ – Venha.... antes... antes da minha... morte. - A falta de ar ainda lhe assomava. - Meu sangue... seu....
ㅤㅤ O vampiro limpou o sangue em sua face com as costas da mão e olhou diretamente sobre o olhar louco da mulher. Realmente, amava os vampiros. Ajoelhou-se ao seu lado, e envolveu com uma das mãos o pescoço dela, apertou com força e levantou-se, colocando-a de pé, mesmo que vacilante. A moça cambaleava parada, sem forças para muito mais atos, ao centro da poça de seu sangue e dejetos. O sorriso dela se alargou ao passo que os dentes pontiagudos do vampiro se aproximavam da sua jugular.
ㅤㅤ Sentiu o toque dos caninos raivosos sobre sua pele e fechou os olhos para apreciar a mordida da morte. Mas, ela não veio, não sentiu os dentes afundando na carne e o sangue vazando pelas feridas. Ezequiel era quem agora sorria.
ㅤㅤ – Seu sangue é podre. - Falou. - Viva com seus vampiros de mentira. Morra com eles.
ㅤㅤ Jogou-a na calçada – sobre o próprio sangue e urina – e virou-se, começando a caminhar. Estela, jogada para a morte no asfalto cinzento, arregalou os olhos, e pela primeira vez desde que fizera a descoberta do noturno, sua face encheu-se de terror. Ela começou um choro desenfreado, alternado com gritos e súplicas para que Ezequiel voltasse, para que seu vampiro acabasse com sua vida. O terror de não morrer como muitos morreram naqueles livros que tanto amava cobria sua mente. Será que nem na hora do abraço frígido da foice negra, ela poderia ser feliz? Será que a vida fora sempre aquele horror onde só os livros dos noturnos deixavam ela sorrir? Clamou pela sua vida, as cordas vocais ao máximo e pedindo arrego não suportaram, estouraram na garganta da moça, e ela novamente engasgou-se no sangue. No seu sangue podre.
ㅤㅤ O pálido rapaz afastou-se rapidamente, limpando o sangue nojento da mulher na camisa negra. Os gritos e grunhidos inumanos de Estela foram ficando para trás. Por fim, após alguns sórdidos minutos, abriu um sorriso. Não tomara o líquido da eternidade, mas fizera alguém sofrer, dera para alguém o tormento de uma morte lenta e horrível. Virou-se para ver se carros passavam na rua e atravessou.
ㅤㅤ O bairro Norte-Vila ficava realmente deserto àquela hora.
Leia até o fim...

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Olhos Vermelhos - Capítulo 11


ㅤㅤ XI
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ㅤㅤ – Todos para dentro, agora! - Felipe gritou irritado, saltando para o volante da primeira das vans. Uma pequena confusão se formou para entrarem nos veículos, irritando ainda mais o discípulo de Tobias, que ligou a chave do carro e acelerou, deixando os dois homens que iam subir no carro para trás. Virou a esquina com rapidez, ainda havia tempo de achar e capturar a Isca. O maldito velho vidente ainda iria pagar pela sua insolência com ele, o futuro Rei do mundo.
ㅤㅤ Tobias, que estava a escrever algum rabisco qualquer num pequeno e amassado caderninho que carregava consigo, fechou suas anotações e colocou sua cabeça para frente, encarando Felipe.
ㅤㅤ – Sendo passado para trás por um Charlatão, Guri? - A pergunta veio seguida de uma gargalhada nojenta.
ㅤㅤ – Não enche, velho.
ㅤㅤ Iria até dirigir algum comentário mais agressivo ao mestre, quando o som de estalos fortíssimos soaram no capô. Estavam atirando contra ele. Os contratados destravaram suas armas e se aglomeraram nas janelas, abrindo o suficiente para o cano das armas ficarem para fora, um dos mercenários, João Paulo, estava caído no fundo da van, ao lado de um buraco no vidro. Fora atingido no peito, e agora respirava com dificuldade, tentando clamar alguma ajuda para si. Mas, bem no fundo, sabia que ninguém iria auxiliá-lo; ninguém estava ali por demasiada bondade.
ㅤㅤ Do lado de fora, a falta de iluminação do bairro contribuía para que Romanov se ocultasse da van. Ele havia disparado dois cartuchos cheios contra a Van, mas sua pouca idade e falta de prática com armamento de fogo não permitiu que os segurasse por muito tempo. Saiu de sua tocaia, atrás de um amontoado de lixo para disparar as últimas balas do terceiro cartucho.
ㅤㅤ O som de pneus queimando veio as suas costas, Romanov sentiu um forte puxão, o tragando para o monte de lixo amontoado na beira da calçada. Seu coração só se acalmou ao ver a expressão quase imutável de Azaias ao seu lado. O negro mago estava diferente, os olhos estavam sem as orbes negras de sempre. O que indicava a presença de mais um espírito, além da do próprio Azaias, dentro do corpo. A segunda van virava a esquina, apressando-se para seguir a de Felipe. Romanov impressionou-se ao ver o parceiro de seu pai engatilhando a pistola facilmente e disparando com facilidade sobre o veículo negro. Duas balas certeiras atingiram a cabeça do motoristas, e outras duas fizeram as rodas dianteiras do carro murcharem. O carro ziguezagueou alguns metros antes de subir a calçada e ir de encontro ao muro de uma velha casa.
ㅤㅤ Um breve silêncio tomou conta do local, seguido de um segundo roncar de motor e tiros em seguida, vindos do outro lado da quadra.
ㅤㅤ – Vamos, mais ninguém virá deste lado. - Disse ao garoto. A voz do homem soou, fazendo até mesmo Romanov – que já estava acostumado com o mundo da magia, se arrepiar de leve. Não fora um único timbre, e sim dois que soaram. Duas vozes na mesma entonação e sincronia, dizendo a mesma coisa.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Assim que Azaias tinha pulado o muro da casa, instantes antes, ele se escondeu atrás de uma grande mangueira plantada no quintal da casa. Ali, puxou do bolso esquerdo do terno um velho livro de couro batido, fechado com uma amarra de barbante amarelado. Pousou a arma no chão e arrancou o barbante fora, começando a folhear o papel velho do livro de ritos que lhe fora passado pelo seu antigo mestre, já falecido há muito tempo. Os dedos acostumados com as folhas foram rápido em identificar a página. Na verdade, Azaias já sabia de cor e salteado as palavras que precisava pronunciar, mas o rito pedia o uso do livro.
ㅤㅤ Começou a ladainha em voz baixa, quase um sussurro incessante.
ㅤㅤ Januário Leite, pistoleiro de renome, que já havia há muito tempo sido assassinado por inimigos feitos durante a vida, sentiu sua alma vibrar novamente. Estava sendo chamado, novamente aquele homem o convidava para ingressar no reino dos vivos e açoitar mais almas. Alegre e excitado a alma respondeu ao chamado no mesmo instante.
ㅤㅤ Azaias piscou. Agora, não era apenas ele quem habitava o corpo. Seu forte e manipulador espírito envolveu a alma de Januário, deixou que ele parcialmente regojizasse novamente dos ares terrenos. Segurou a arma com a experiência de um mestre, girou-a no dedo e saiu de trás da mangueira, saltando para o lado de onde ouvira os primeiros tiros.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Dimitri encontrou sua tocaia atrás de um muro inacabado, calculou que aquela pequena barreira só seria capaz de ocultá-lo, pois era frágil demais para segurar balas que provavelmente poderia enfrentar. Buscou com os olhos por outro abrigo, mas a audição lhe tragou toda a atenção, pneus cantando. Voltou seu olhar para a esquina a ponto de ver os faróis saltando de trás da casa de madeira velha na ponta da rua. Não haveria tempo de se esconder em outro lugar, só podia era se ocultar ali e torcer para que demorassem a achá-lo, dado a rua também escura. Engatilhou a pistola e acomodou-se da melhor maneira possível atrás da mureta.
ㅤㅤ Josué estava pegando o celular para contactar Felipe na primeira van, quando o vidro do seu lado estilhaçou e atingiu o motorista de raspão, fazendo o gigante brutamontes frear e virar o carro bruscamente. O pistoleiro de carteirinha quase bateu a testa no vidro, visto que ainda não tinha colocado os cintos. Xingou o maldito e sacou a pistola, apontando para fora, exatamente para a mureta onde Dimitri estava. Josué tinha prática com tiroteios, os que enfrentara no Paraguai eram bem mais sangrentos e loucos que aquela simples troca de tiros, ele apontou a arma com precisão porque os anos lhe indicavam de onde vinham os projéteis.
ㅤㅤ Dimitri ouviu um estalo, e viu o tijolo ao lado da cabeça estourar, fazendo o ouvido tinir. Jogou-se no chão a tempo de ver outros cinco furos se fazerem no lugar onde estava de cócoras. Os tiros vieram de uma única pistola, apenas um dos malditos sabia onde estava, mas aquilo não duraria muito. Provavelmente o resto dos mercenários da van seguiriam o primeiro na direção dos tiros. Levantou a mão e disparou contra o carro. A falta de prática não ajudava muito, entretanto, perfurou o vidro do carro, e ouviu mais uns dois gemidos vindos de dentro. Cartucho vazio, recarregou rapidamente. Já ia se acocorar para atirar novamente com mais precisão, quando uma algazarra de disparos assolou seus ouvidos. Tiros pipocavam no chão a sua volta e na parede, no susto de ter de se abaixar, a pistola escapou da mão e voou alguns centímetros para fora da proteção da mureta que mais parecia queijo suíço agora. Dimitri sentiu uma leve ardência no ombro, mas ignorou a dor que provavelmente tinha sido causado pela sua brusca tentativa de se salvar indo ao chão. Bufou, dando um sorriso de leve, fruto de sua personalidade suave. Se pelo menos Tobias estivesse dentro da van, ele estaria sendo atrasado.
ㅤㅤ Olhou novamente para a pistola ali ao lado. Os tiros tinha cessado, mas a van ainda estava no mesmo lugar, o carro ligado e fazendo barulho do outro lado da rua. Talvez pudesse se aventurar e pegar a arma. Ficar ali, imóvel, era o que não poderia fazer. Respirou fundo, juntou as forças e flexionou as pernas fora do chão, deixando apenas a ponta dos pés sobre a terra da calçada. Tinha de tentar agarrar a pistola de uma única vez e em seguida correr, sua salvação seria caso chegasse mais adiante, atrás de um amontoado de tralhas velhas que só agora tinha notado. Deixou o silêncio lhe tomar o pensamento por alguns segundos e em seguida abriu um riso, afinal, se morresse ali, aquilo não seria o fim de sua jornada. Saltou com todas as suas forças para alcançar a pistola.
ㅤㅤ Dentro do carro, a mira impecável de Josué apontava para um lugar diferente da do resto dos seus homens. Eles pararam de atirar a mando dele, e agora aguardavam suas ordens, mirando todos para a mureta. Mas não seria ali que o inimigo estaria. Aquele desgraçado que tentara parar eles agora iria reaver sua arma de fogo, Josué estava pronto para disparar, a mira fixa alguns centímetros acima da pistola caída na calçada. Nos bancos de passageiros, dois homens estavam caídos, um com um sangramento feio no braço gemia feito uma morsa. O outro, com um buraco feio na jugular, jazia imóvel no chão do carro. Movimento, Dimitri saltou de trás da mureta e entrou perfeitamente na mira de Josué, ia puxar o gatilho, quando sentiu uma pontada de dor no ombro e a mira se desfez, fazendo seus disparos acertarem o muro atrás do pálido algoz dos mercenários.
ㅤㅤ – Josué! - Gritou um dos homens dentro do carro, olhando para ele e abaixando o fuzil.
ㅤㅤ – Anda com o carro, homem! - Foi o que ele conseguiu falar, direcionando seu olhar para o motorista ferido no braço, ao seu lado. O pistoleiro profissional arfava enquanto segurava com força o ombro ferido, uma bala certeira o atingiu ali. A van disparou pela rua, ganhando distância do tiroteio. Três tiros ainda soaram, quebrando o vidro de trás da van e arrancando a vida de mais dois homens.
ㅤㅤ Azaias abaixou a pistola, apoiado sobre o muro. Romanov estava ali atrás, dando seus ombros como apoio para o negro não precisar saltar o muro, e sim, atirar usando-o como barreira. Do outro lado dos tijolos, Dimitri sentava-se cansado na calçada, deixando o peito ir e vir freneticamente em busca de ar. O mago descendente de russos tinha um sangramento leve no ombro, fruto de uma bala que o atingira de raspão, instantes antes.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Felipe acelerava quase sem pensar que possíveis carros pudessem se colocar no seu caminho. Furava sinais vermelhos e deixava buzinas enlouquecidas para trás. Estava entrando para a área pavimentada da cidade, o trânsito aumentava, assim como os riscos de se dirigir daquela forma. Os dedos batucavam o volante, escondendo sua tensão. Queria fumar, relaxar, mas não era a hora exata para isso. Agora, tinha de se concentrar em achar a isca, ela já sabia da existência dele. Já sabia que não eram apenas sonhos e pesadelos, que não estava ficando louco.
ㅤㅤ Tentou, novamente invadir a mente de Hiroshi, mas descobriu que mais uma vez os laços feitos entre sua alma e a dele estavam obstruídos. Malditos Magos da liga! Queixava-se em silêncio. Olhou de relance para trás, vendo vidros estilhaçados e um homem gemendo no fundo com um ferimento à bala. Eles estavam agindo mais rápido do que pensavam.
ㅤㅤ – Não preciso voltar a dizer o quão estúpido você foi, preciso? - A voz de Tobias soou, rouca e grave, atrás do banco. - Dimitri, Azaias e Vicente são homens que não brincam em serviço. Quando você os atraiu, deixando as informações vazarem de seu computador, pensava que seriam meros peões no seu jogo todo. Mas a merda foi, guri, que você esqueceu-se que cada um deles é igual a mim. E eu não sou qualquer brincadeira, qualquer bostinha.
ㅤㅤ "No início, eu formulei todo o plano pra você. Te dei as dicas e indicações, e até mostrei como entrar em contato com a liga. Mas olha só, cabra, agora é com você. Eu, Tobias, sou só um velho arretado que está dando auxílio ao aprendiz. Se você não se cuidar, eles te derrubam. Principalmente o Vicente, quando o cabra enfia algo na cabeça, dificilmente ele larga mão.”
ㅤㅤ Não houve resposta para o monólogo de Tobias.
ㅤㅤ Felipe acelerou mais e virou bruscamente uma esquina, com um sorriso na face. Vira, de relance, a um outro veículo grande e quadricular virando a esquina adiante. Ignorou qualquer coisa que seu mestre falasse, ainda alcançaria a Isca. Ainda podia senti-la, mesmo que fracamente, dentro de seu ser. Afinal de contas, a decadência de Hiroshi era a sua ascendência. Piscou os olhos, deixando a energia maligna dominá-lo por um segundo, no qual soltou um grunhido inumano: Já sentia as forças crescendo dentro de seu corpo, logo tomaria seu lugar de direito.
ㅤㅤ
ㅤㅤ – Não, não. Espera, mano! - Carlos gritou no ouvido de Hiroshi, só assim se fazendo escutar.
ㅤㅤ O nipônico passava acelerado pelas ruas, havia poucos minutos, tinham entrado numa parte pavimentada do bairro, dando a eles um pouco mais de estabilidade da direção. Deixou toda a confusão da sua cabeça de lado e virou-se para Carlos, dando-se ao luxo de estacionar no acostamento para dar atenção ao amigo.
ㅤㅤ – Nossa, cara, tô te chamando faz tempão. Ficou surdo?
ㅤㅤ – Não, Carlos. Só... só estou tentando pensar direito.
ㅤㅤ – É. Mas nessa aí quase atropelou meio mundo. Olha, a gente não pode dirigir feito louco sem saber para onde ir. Tu vai pra algum lugar agora? Voltar pra casa ou ir pra casa de alguém?
ㅤㅤ – Não sei. Acho que vou pra um hotel ou coisa do tipo, não quero arriscar a vida dos velhos.
ㅤㅤ – É uma boa. - Respondeu Carlos, emfim podendo racionar melhor.
ㅤㅤ Subitamente, a menina colocou a face de pele escura no meio dos dois.
ㅤㅤ – Não. - E olhou para Hiroshi. - Você tem que ir para quem há de lhe revelar tudo.
ㅤㅤ Os dois olharam para a garota como resposta.
ㅤㅤ – E quem seria essa pessoa, menina?
ㅤㅤ – Luana.
ㅤㅤ – Luana? - Indagou Hiroshi, tentando lembrar de alguma que conhecia.
ㅤㅤ – Não, Luana é meu nome, não precisa me chamar de menina. A pessoa que você deve procurar é alguém que conhece você desde sua infância, vi vocês brincando juntos.
ㅤㅤ – Melissa? - O nome veio quase que de imediato.
ㅤㅤ – Não é uma mulher. É um garoto. Assim como você, é japonês – ou chinês, sei lá. Ele é pálido e magro, quase sempre parece ter uma cara de sono. Ele vai contar para você, de alguma forma, tudo que você precisa saber.
ㅤㅤ – Viu tudo isso?
ㅤㅤ – Mais ou menos.
ㅤㅤ – Certo. Eu já sei para onde vamos. - A fala de Hiroshi assustou ambos.
ㅤㅤ – Mas já? - Carlos perguntou, descrente.
ㅤㅤ – Só há uma pessoa que eu conheço que se encaixa nessas descrições todas. E acho que ele tem o jeito perfeito de encontrar tudo que precisamos.
ㅤㅤ – Bom, se tem tanta certeza, vamos rápido. - Luana disse, voltando a se sentar em seu banco.
ㅤㅤ – Certo.
ㅤㅤ Hiroshi já ia ligar o motor da van novamente quando Carlos intercedeu.
ㅤㅤ – Opa, opa. Calma lá, Hiro. Deixa eu dirigir.
ㅤㅤ – Você!?
ㅤㅤ – É.
ㅤㅤ – Já dirigiu antes?
ㅤㅤ – Já sim.
ㅤㅤ – Mas você não tem carro, eu tenho mais prática.
ㅤㅤ – Eu sei, mas só que você anda feito um louco pela cidade, cara. Se tu quer andar rápido, tem que fazer direito. E pra isso é preciso algo que você não tem.
ㅤㅤ – O que?
ㅤㅤ – A Malandragem.
ㅤㅤ Com o grandioso argumento, Hiroshi não mais questionou. Apenas trocou de lugar e deixou Carlos dirigir. O mulato, logo ao sair, passou raspando com o carro em dois veículos de jovens que se aventuravam na madrugada. Arrancando xingamentos dos meninos. Carlos riu em resposta, deixando tanto Hiroshi quanto Luana com medo da decisão de deixá-lo no volante.
ㅤㅤ Enquanto isso, no último um celular preto de última geração vibrava, sem chamar a atenção de ninguém.
ㅤㅤ
ㅤㅤ – Nada.
ㅤㅤ Marco já estava bem melhor agora. Sabia que Raquel, a moça, ainda não havia morrido, mas que em breve sua alma seria devorada por completo. Deixaram-na na casa abandonada desacordada, e assim ela ficaria até o fim de sua vida. Morreria, tendo como causa da morte um infarto. Mas na verdade, seu subconsciente lutaria até não poder mais para se livrar dos demônios. Balançou a cabeça, afastando os pensamentos e se voltou ao monitor do laptop ligado, no seu colo. Marco usava fones de ouvido e microfones.
ㅤㅤ – Mas que droga! O que diabos Dimitri e os outros estão fazendo!?
ㅤㅤ Estavam com o vectra estacionado numa rua onde rachaduras e buracos rompiam em vários pontos da estrada, o bairro pobre começava a ganhar novas infra-estruturas, mas havia muito tempo desde que o governo se importara em cuidar bem do que davam a eles.
ㅤㅤ Marco deitava os dedos sobre as teclas rapidamente, deixando o barulho de teclar rechear o carro sedã. Fazia duas coisas ao mesmo tempo, a primeira, era ligar para Azaias e Dimitri. A segunda era tentar invadir a rede de localizadores GPS da van que eles alugaram. Se não entravam em contato com eles, pelo menos poderiam segui-los. Ficou alguns minutos em novas tentativas de ligações, mas nenhum dos números discados tinham resposta. Finalmente, desistiu das ligações e começou a se concentrar na invasão do programa de ligazação. Entrou no site da empresa pelo prompt de comando e, de uma abertura da segurança do site, invadiu a rede de computadores. Os dedos viajavam enquanto ele quebrava defesa por defesa do firewall da rede. Não demorou muito, uma imagem do mapa da cidade, surgiu. E, nele, um ponto vermelho piscando em movimento, numa rua. Abriu um sorriso e virou-se para Vicente.
ㅤㅤ – Pronto, localizei.
ㅤㅤ – Está muito longe daqui? - O mestre foi direto, já ligando o carro.
ㅤㅤ O discípulo olhou para fora, identificando a rua em que estavam e o número de uma casa da quadra. Jogou informações no sistema aberto e logo outro ponto apareceu na tela. Seus olhos se arregalaram e ele se virou para vicente, que estava começando a sair do acostamento.
ㅤㅤ – Chefia...
ㅤㅤ – Diga, Marco.
ㅤㅤ – Lá.
ㅤㅤ No exato instante, uma van passou cruzando a toda velocidade na esquina. Segundos depois, uma segunda van passou correndo atrás da primeira. Vicente demorou um pouco mais para compreender a cena e tirar alguma conclusão. Provavelmente, Tobias descobrira que a Liga já estava ali, e estava os perseguindo. O vectra cantou com os pneus e disparou atrás da perseguição.
ㅤㅤ
ㅤㅤ O Tiradentes já estava ficando para trás, em breve a van agora dirigida por Carlos alcançaria a avenida. Hiroshi estava ainda tenso, sentia que ainda não estavam seguros, alguma coisa dentro dele dizia. Ainda conseguia controlar sua raiva, que antes o deixava desenfreado, mas agora voltava a sentir aquela grande presença sobre seu corpo, como se estivesse sendo observado.
ㅤㅤ Um toque gelado o fez quase saltar o banco. Luana segurava seu braço, a menina tinha os olhos vidrados a frente e a boca parecia tentar balbuciar alguma coisa. Estava da mesma forma que na primeira vez que a encontrara, na porta do quarto de Amaro. Ela respirou fundo, segurou o ar dentro de si por alguns segundos, para então soltá-los lentamente. Um sussurro veio junto de seu alívio.
ㅤㅤ – ...Perseguidos. - Disse apenas para Hiroshi.
ㅤㅤ Assustado o nipônico ajeitou-se no banco e olhou pelo retrovisor, no exato instante em que a van entrou no campo de visão. Calafrios passaram por todo o seu corpo, estavam atrás dele. Chacoalhou Carlos com tanta força que ele quase perdeu a direção.
ㅤㅤ – Estão nos seguindo. - E apontou para trás. - Acelera, cara! Acelera!
ㅤㅤ – Pode deixar, mano. Eles não alcançam a gente, mas nem a pau!
ㅤㅤ Engatou a próxima marcha e afundou o pé no acelerador. Não era o melhor veículo de corrida, mas por sorte o veículo do inimigo também era uma van. Felipe acelerava furioso a van, o pé deixando o acelerador praticamente encostado no solado. Ali atrás, ouviu seus capangas destravarem armas e fuzis. Sem desviar o olhar da estrada, Felipe comandou seus homens.
ㅤㅤ – Nenhum tiro certeiro! Apenas parem o carro, quero o cara ali dentro vivo!
ㅤㅤ A maioria não respondeu a ordem do garoto, mas eles já tinham entendido o comando. Janelas se abriram dos dois lados do veículo, e três homens colocaram metade do corpo para fora, mirando com as armas contra o carro a frente. Agora não precisavam esconder o poderio de fogo, os fuzis contrabandeados começaram a disparar periodicamente contra o carro a frente. As vans furavam sinais vermelhos e vez ou outra tinham de desviar dos carros no caminho, forçando movimentos bruscos que quase derrubavam os atiradores de Felipe e faziam Luana e Hiroshi se segurarem firms no carro a frente.
ㅤㅤ Os tiros, em suma maioria, não acertaram o veículo. Homens com miras excelentes eram difíceis de se achar, mesmo no submundo do crime. O fato de aquilo ser um tiroteio em movimento e de que Felipe os queria vivos dificultava ainda mais as rajadas de tiro. Carlos suava frio, e seus olhos mau piscavam enquanto mantinha-se focado na rua. Não havia nem mesmo ousado virar em alguma esquina, aquela pequena avenida teria de levá-lo o máximo de tempo que pudesse. Os vidros do carro, por algum sacro milagre, ainda estavam intactos e eles não haviam recebido nenhum tiro, mas os ouvidos tiniam com o barulho dos estalos na lataria da van. Estavam sob fogo inimigo. A concentração fora tanta que nem vira quando Luana se esforçou para jogar o corpo para frente, deixando com que metade do tronco ficasse no banco da frente, ao lado do motorista.
ㅤㅤ Hiroshi observou a menina, a feição dela ainda era extremamente estranha, e mantinha-se focada na estrada. Até que subitamente, ela desviou o olhar, encontrando-o com o seu.
ㅤㅤ – Sabe onde deve ir?
ㅤㅤ – O que?
ㅤㅤ – Estou perguntando se você sabe onde ir.
ㅤㅤ – Sei!
ㅤㅤ Ela apenas meneou a cabeça positivamente e virou-se para Carlos.
ㅤㅤ – No seu ritmo, chegaremos ao fim dessa avenida em instantes. Preciso que, quando vir uma grande placa vermelha, vire imediatamente na rua de sua esquina.
ㅤㅤ – Nem rola, guria. Acelerando assim a gente ganha distância, ou pelo menos a gente não deixa eles se aproximar. Diminuir velocidade pra uma curva é arriscado.
ㅤㅤ – Tem de fazer isso, caso contrário, morreremos todos!
ㅤㅤ – Como é que você sabe!? - Carlos virou-se, encarando-a por meio segundo antes de voltar o olhar para a direção. A resposta não veio dos lábios da mulata, e sim de um maldito solavanco que atingiu o carro. No instante seguinte, Carlos lutava para manter a direção e um barulho ensurdecedor vinha da lateral do carro, haviam estourado um dos pneus.
ㅤㅤ – Vire. Ou não conseguiremos!
ㅤㅤ – Tá! Tá! - Gritou Carlos, quase sem dar mais atenção a menina. O carro perdera velocidade e agora os tiros que acertavam a lataria eram cada vez mais constantes. Olhou atentamente a rua, realmente, estava para terminar. A menos de dez quadras a rua parecia se bifurcar em duas menores que iam uma para cada lado. Meteu os olhos nas casas ao lado procurando a tal placa vermelha.
ㅤㅤ Sorriso brotou do seu rosto quando viu “Americanas Express” na esquina da rua seguinte. A rede de lojas havia se expandido na cidade não tinha nem dois anos, e agora, em quase todo lugar haviam as Express. Era quase tão comum quanto os inúmeros supermercados Comper que haviam na cidade. Mas o que importava não era o fato da loja estar ali, e sim de sua placa estar ali: Um grande poste de ferro com o letreiro no centro de uma bola vermelha. Carlos diminuiu a velocidade e virou-se na esquina com tudo.
ㅤㅤ Entrou numa ruela pequena, porém pavimentada, que parecia levar até o início do núcleo central da cidade, que se fazia presente ao longe. As mãos do churrasqueiro estavam calejadas e doloridas de tanta força que implicava no volante para manter a direção reta. Agora, a van estava quase na cola deles, virara a esquina há poucos segundos dele. Luana cutucou seu ombro e apontou para o velocímetro.
ㅤㅤ – Você precisa chegar a noventa quilômetros.
ㅤㅤ – Como se fosse fácil!
ㅤㅤ – Você precisa! Senão nós...
ㅤㅤ – Tá! Senta lá, Luana!
ㅤㅤ Carlos desviou o olhar para Hiroshi, para tentar ver o que lhe arremetia. Assustou-se ao ver o nipônico repousando no banco, segurado pelo cinto de seguranças. Dormindo!? Numa hora daquelas!? Um flash veio a sua cabeça, lembrando da história que ele havia contado. Se tudo fosse verdade, talvez agora estivesse num dos tão horríveis pesadelos.
ㅤㅤ Luana chamou sua atenção novamente. Os tiros quebraram o vidro de trás, e uma bala atravessou todo o carro fazendo uma rachadura no painel da frente, bem próximo ao assento do motorista.
ㅤㅤ – Noventa!
ㅤㅤ – Cala a boca, guria!
ㅤㅤ E, num último esforço, Carlos desceu todo o peso no acelerador e estacou os braços no volante. A van num último esforço acelerou com tudo e atravessou uma rua, deixando para trás um enorme vulto que tampou tudo atrás deles.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Miguel não via a hora de voltar para casa. O caminhão de tantas viagens estava todo sujo da poeira da estrada, e agora ele teria três dias de folga para relaxar e lavá-lo quando desse vontade. A distribuidora que o contratou oferecia um bom salário e um ótimo seguro para seu parceiro de tantos anos, o caminhão Janete, como o apelidara. Morava no subúrbio da cidade, no Tiradentes. Tranquilo, estava a menos de cinco quadras de sua casa, passando com o gigante veículo pela estreita rua onde morava. Ia avançar uma esquina onde ele tinha a preferência, quando um vulto branco passou com tudo a sua frente. A reação de Miguel veio atrasada, e ele só consegui frear depois que a van passou, e seu gigante caminhão parara no meio do cruzamento.
ㅤㅤ Já ia botar a cabeça para fora para xingar o barbeiro que passara, quando ouviu um pneu patinar no asfalto do outro lado. Logo em seguida o som estrondoso de um carro tombando, por fim, um forte impacto sacudiu o caminhão, mas não o tirou do lugar. Assustado, Miguel soltou-se de seu cinto e foi para o assento do passageiro para ver pela janela. Ali, do outro lado, uma segunda van estava tombada, a lataria do carro grudada na Janete.
ㅤㅤ Felipe, enfurecido e atordoado, abriu a porta do carro e desprendeu-se do cinto. Esqueceu-se que o carro estava de lado, e logo seu corpo caiu com tudo. Grunhiu de raiva e levantou-se ali dentro, juntando forças para novamente sair do carro. Nem deu bola para os outros, a maioria ali ainda estava juntando forças e tentando recuperar a consciência. Até mesmo Tobias ainda estava parado de olhos fechados, segundos atrás ele gritava e urrava feito um louco, apreciando aquela perseguição maluca. O jovem discípulo fechou os olhos e reuniu toda a raiva dentro de si, abriu-os furioso e como reposta um brilho avermelhado emanou-se de suas orbes. Saltou para fora do carro de uma única vez, caindo sobre a lataria tombada da lateral da van.
ㅤㅤ Miguel gritava com o garoto louco, e já estava para descer do caminhão e cobrar explicações daquela maluquice. Quando por um instante seus olhos se encontraram com os de Felipe, o garoto tinha brasas nos olhos e uma feição quase demoníaca. Por impulso, Miguel se jogou para dentro da cabine novamente e benzeu-se, como crente que era. O garoto era o capeta!
ㅤㅤ Tudo o que o caminhoneiro fez foi se encolher ainda mais, quando ouviu um urro de raiva vindo de fora.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Vicente freou o carro bruscamente na esquina.
ㅤㅤ Ali, adiante naquela pequena rua viam um grupo de homens saltarem para fora de um veículo tombado na frente de um caminhão. O grisalho esboçou um sorriso faceiro quando identificou Tobias no meio deles, conversando com um jovem que só podia ser seu discípulo. Marco, por sua vez, apenas desviou o olhar por um segundo para fora e em seguida voltou-se para seu computador portátil. A tela mostrava um mapa no canto da imagem, junto de vários outros programas abertos.
ㅤㅤ – A nossa van está indo na direção da... Avenida Eduardo Elias Zahran.
ㅤㅤ – Certo. Acho que agora eles vão nos contactar.
ㅤㅤ – Já estão. Mas o número não é o dos celulares deles.
ㅤㅤ – Como é? - Vicente desviou o olhar do acidente por um instante vendo a tela.
ㅤㅤ Uma pequena janela piscava no canto, mostrando um número desconhecido.
ㅤㅤ – É um orelhão.
ㅤㅤ – Pois atenda! - Disse impaciente.
ㅤㅤ O discípulo respondeu apenas apertando uma tecla, que abriu a janela e a ampliou.
ㅤㅤ – Alô? - Uma voz baixa e suave soou.
ㅤㅤ – Romanov? - Marco respondeu pelo microfone.
ㅤㅤ – Sou eu, Papai e Azaias me deixaram para trás para que eu ligasse para vocês para lhes dar as informações novas. - Agora, prestando mais atenção, parecia que Romanov falava pesadamente. - Nós não conseguimos proteger a Isca, entretanto, demos nosso carro para que ele fugisse.
ㅤㅤ Vicente e seu pupilo se entreolharam por um segundo.
ㅤㅤ – Eles escaparam, acabamos de presenciar uma perseguição digna de filmes da Holywood. Pensávamos que eram vocês, e que Tobias estivesse atrás de nós.
ㅤㅤ – Não. Tobias e seu discípulo estão atrás da Isca, querem tê-lo como prisioneiro até o fim do rito. Contrataram um monte de capangas para fazer o trabalho sujo, estão enfiados em três carros. Nós fizemos um entrar dentro de uma casa, mas os outros dois escaparam. Tomem cuidado, se vocês estão de olho em apenas uma van, tem outra rondando a área ainda. ㅤ
ㅤㅤ Como que por instinto, Vicente levantou os olhos e olhou em volta. Em seguida voltou-se, deixando sua face também perto do microfone.
ㅤㅤ – Não há perigo. De qualquer forma, não tem do que desfiar de nós, o carro em que estamos tem os vidros com insulfilm . Somo um veículo comum parado no acostamento, neste instante.
ㅤㅤ - ... - Romanov demorou a responder. - Certo. Azaias ainda consegue localizar a Isca através dos espíritos, ele e o Papai vão atrás dela. Acharam uma moto velha na frente de uma casa da quadra onde o tiroteio aconteceu. Vão oferecer nossa proteção em troca de que ele coopere para o fim do ritual. Eu vou me arranjar por aqui, acho que assim que o Papai se estabilizar com relação à Isca, ele vai me contactar através de nosso elo, e vou direto para lá. O que vocês vão fazer?
ㅤㅤ Vicente olhou novamente para a rua, Felipe falava no celular. O grisalho concluiu que não demoraria muito para a outra van aparecer ali para pegá-lo. Trocou um olhar com Marco e em seguida meteu os olhos na maleta prateada no solado do banco de trás. Virou-se novamente, deixando com que a voz soasse pelo microfone.
ㅤㅤ – Nós vamos tentar raptar o garoto do Tobias. É essencial para que nós consigamos quebrar o ritual. E acho que não devemos deixar para última hora.
ㅤㅤ Romanov mais uma vez custou a responder, como se pensasse no assunto.
ㅤㅤ – Romanov?
ㅤㅤ – Tudo bem. - Disse finalmente. - Vou repassar todas as informações... Tome cuidado.
ㅤㅤ – Certo, vocês também, ajam rápido!
ㅤㅤ Marco fechou a linha e olhou para o mestre.
ㅤㅤ – Vamos mesmo tentar isso, chefia?
ㅤㅤ – É o jeito, meu caro. - Disse Vicente, arrumando coragem. - É o jeito.
Leia até o fim...

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Olhos Vermelhos - Capítulo 10


ㅤㅤ X
ㅤㅤ
ㅤㅤ Aquele foi o primeiro sono em que Hiroshi pôde realmente relaxar desde a fatídica tarde em que entrara na estação ferroviária abandonada com sua amiga. Entretanto, não fora completamente tranquilo. Os grunhidos e rosnados das criaturas negras chiavam perto dos ouvidos, ao mesmo tempo que o bater das asquerosas asas faziam vento perto de seu ser. Eles não estavam longe, disso tinha certeza. Mas, pelo menos, não fora para aquele lugar terrível mais uma vez.
ㅤㅤ Quando abriu os olhos, não sabia onde se encontrava. Tudo estava silencioso e escuro, de modo que Hiroshi demorou alguns segundos para acostumar-se com a falta de luminosidade. A cabeça pesava e custou a lembrar as últimas visões antes do desmaio. Lembrava-se de estar montado sobre o corpo de um monstruoso homem de pele escura, também, tinha flashes de golpes que ele desferira e levara de um possível combate com aquele mesmo homem. Mas, nada ele podia se lembrar direito. Olhou pela janela do lugar, já era noite. Ficou imaginando agora se dormira por mais de um dia, aquele descanso foi revigorante, de modo que agora seu corpo parecia mover-se mais facilmente a pedido do corpo. Pôs os pés no chão na exata hora em que ouviu os passos no corredor. Passos solitários. Gelou a espinha, só agora se pegou pensando em onde estava, e quem o trouxera ali. Juntou o corpo na quina da parede e pegou uma garrafa de cerveja vazia que estava em cima do cômodo ao lado da rala cama. Reagiria se necessário.
ㅤㅤ A porta abriu, liberando dentro do quarto um pouco mais de luminosidade, parecia haver lâmpadas acesas no resto da casa. Uma mão passou pela porta e apertou um interruptor, logo acendendo uma luz fluorescente no teto, que iluminou o quarto modesto. A face de Carlos surgiu no vão da porta, e Hiroshi demorou a associar os fatos.
ㅤㅤ – Hiroshi! Que bom que acordou, cara, pensei que ia dormir a noite toda!
ㅤㅤ E entrou no quarto.
ㅤㅤ – Carlos... Por que estou aqui? Me achou aonde? É sua casa?
ㅤㅤ – Opa opa, uma pergunta por vez, mano. - E sentou-se ao lado da cama. - Essa aqui é uma casa que eu comprei faz um tempinho. O dono do terreno voltou pro nordeste, terra dele, e me vendeu baratinho o lugar. Como ainda tá em construção, não mudei ninguém pra cá ainda. Achei seguro te trazer pra cá, por esse lado do bairro a galera não me conhece ainda.
ㅤㅤ – Seguro? Seguro porque?
ㅤㅤ – Orra, Hiroshi! Tu não lembra de onde eu te achei não!?
ㅤㅤ – Não...
ㅤㅤ – Rapá! Tu tava capotado em cima do Alcidão! Tu deu cabo da vida do maior matador de aluguel das redondezas! Acho que nem vão tentar botar você em cana, mas o perigo mesmo é os trutas do maluco virem te procurar. Por isso te trouxe pra cá correndo.
ㅤㅤ – Espera... espera... Eu matei um cara?
ㅤㅤ – Tá com problema na cabeça, mano? Tu matou e muito bem matado! Meteu o facão dele no coração do desgramado. Capotou na hora! Me contaram que ele encrencou contigo, mas que tu nem deu chance dele revidar na sua primeira porrada. Bem que o seu Hideo disse que tu lutava bem o kung fu, ou karate, sei lá.... Mas não esperava que fosse tanto assim.
ㅤㅤ – Eu matei... um cara? - Ele dizia, ainda pensando naquelas palavras. As imagens iam voltando com ferocidade na mente, cada uma como uma pancada nele. Estava ficando louco, só podia. E não era uma loucura normal, era algo de outro mundo, algo do diabo ou coisa do tipo.
ㅤㅤ – É! Que porra tu tava fazendo pra cá, de qualquer forma!?
ㅤㅤ Hiroshi não respondeu, parecendo quase em estado de transe.
ㅤㅤ – Ei, responde, cara! - E Carlos deu um empurrão de leve no ombro do garoto.
ㅤㅤ Por puro instinto assassino, misturado com aquele ódio maluco que sentia, ele voltou o empurrão com um muito mais forte. E já levantou, preparando-se para socar o amigo.
ㅤㅤ – Opa! Opa! Calma lá, maluco!
ㅤㅤ Carlos conteve o garoto a tempo de não levar um golpe. As palavras romperam o quase formado lapso de loucura dele, os olhos voltaram a feição de antes. Hiroshi fechou os olhos e pôs as mãos em volta da cabeça, pressionando-as ali. Soltou um grito de raiva enquanto se afastava e socou a parede, fazendo feridas abrirem na mão.
ㅤㅤ Ali atrás, o churrasqueiro benzeu-se.
ㅤㅤ – Cruz Credo, cara. Que tá acontecendo contigo?
ㅤㅤ – Eu... Eu não sei, Carlos. Desculpa, mano, eu tô alterado. Não sei porque...
ㅤㅤ – É droga?
ㅤㅤ – Não! - Rebateu, quase raivoso.
ㅤㅤ – Então desembucha, não dá pra te ajudar se não falar. Nem liguei para os seus pais ainda, pensando que tu pudesse estar metido em alguma mutreta que eles não sabem. - E sentou-se na cama, que logo seria da sogra dele. - Tu dormiu a tarde toda, tá de noite. Se tu não deu notícia, eles devem estar preocupados contigo, te caçando por aí.
ㅤㅤ – Eu... Eu....
ㅤㅤ Desistiu de tentar reter tudo aquilo. Sentou-se ao lado do amigo e começou a contar tudo. Desde o início, como sua vida havia se tornado um inferno em menos de um dia.
ㅤㅤ
ㅤㅤ As três vans chamavam uma atenção gigantesca naquela rua tão pobre. Eram carros caros, não era qualquer um que podia pagar por eles. Raramente eram vistos veículos novos e bem lustrados naquele lado do Tiradentes. Os homens contratados por Felipe estavam amontoados dentro dos carros, eram mercenários do tráfico, a maioria foi recomendado pelo cara que contrabandeou as armas do Paraguai. Homens discretos, que faziam o trabalho sem questionar. Tobias, que estava no mesmo carro que Felipe, dera algumas instruções básicas para os capangas. Disse para não recuarem diante de coisas estranhas, que receberiam muito bem por isso. Não especificara muito mais, deixaria que o dinheiro falasse por si próprio.
ㅤㅤ Felipe, sentado no bando de passageiro ao lado do motorista grande e parrudo, estava com os olhos tensos num cenho raivoso. Seu joelho ia e vinha, mostrando a irritação. Até que desferiu um forte golpe que quase quebrou o apoio lateral, bufando de raiva.
ㅤㅤ – Droga! Por que não consigo manejar a isca!? - Disse, virando-se para Tobias no banco de trás. O velho riu em resposta, uma gargalhada alta e tranquila.
ㅤㅤ – Eles já estão aí, moleque. Se bem conheço o Vicentão, ele já deve ter começado a mexer os pauzinhos dele. Sabe como deixar os bichanos ocupados com uma coisa ou outra.
ㅤㅤ – Também não consigo mais puxar o rastro da alma. Ficou difícil saber exatamente onde o garoto está, isso também é coisa deles, não é?
ㅤㅤ – Hmm.... - Tobias coçou a barba. - Acho que o filho do Yohan pode ter feito isso. Faz anos que não o vejo. Mas agora, deve ser ele quem tem o alfinete de diamante. Dimitri o nome, eu acho. Eu te disse que não é tão fácil, garoto. Tu devia ter deixado as informações vazarem para eles mais tarde, mas tu teimou que já era hora. Viu no que dá? Nunca ouve meus conselhos e se fode legal.
ㅤㅤ Emendou uma gargalhada junto.
ㅤㅤ Felipe socou novamente o apoio lateral, agora o tirando do lugar. Não era para estar dando errado para o lado dele. Não mesmo.
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ㅤㅤ No fim daquela tarde, Raquel descansou tudo o que pôde antes de sair do expediente. O trabalho, como atendente da loja Anita Calçados no centro caíra-lhe como uma mão na roda num momento em que precisava do dinheiro extra para pagar parte da faculdade. Teve de juntar forças para avançar até a praça Ari Coelho e pegar seu ônibus. Por sorte, a sua condução era um dos poucos que saíam vazios da praça. Ia para um lugar onde muita pouca gente precisava de ônibus para rodar a cidade. Os arredores da universidade particular onde cursava jornalismo ficava perto de seus melhores alunos, os ricos filhos de fazendeiros e empresas da cidade.
ㅤㅤ Sentou-se numa cadeira qualquer, e deixou o corpo relaxar ali. Ânimo para estudar após o dia cheio era sempre bom, mas quase nunca adquirido. Os olhos começaram a viajar pelos cenários da cidade, quando alguém bateu na lataria do veículo, quase perdendo o ônibus. O motorista, generoso e com tempo adiantado, parou uma última vez para subir o rapaz. Era um garoto bonito, com cerca de vinte e poucos anos. Pele branca e cabelos castanhos escuros. Carregava uma única mochila, pequena e que parecia de marca. Os olhos do garoto cruzaram com os de Raquel e ele sorriu para ela, a moça virou-se, olhando para fora novamente, envergonhada. Era boba ou o que? Só um garoto bonito, um garoto bonito que sorrira para ela. Ele passou pela catraca e caminhou com o ônibus em movimento. Até para ao lado dela.
ㅤㅤ – Posso sentar aqui?
ㅤㅤ – Claro. - A resposta veio antes que ela parasse para pensar. A condução estava vazia, não era necessário ele sentar-se do lado dela. Só sentava ali porque queria. Ela corou com o pensamento e retirou a bolsa do lugar vago ao seu lado.
ㅤㅤ O rapaz acomodou-se bem ali. E sorriu mais uma vez para ela, enquanto colocava a mochila retangular sobre o colo. Passaram-se poucos minutos até que o garoto lhe dirigisse a palavra de novo. Ele virou-se para ela e olhou-a nos olhos, sem hesitação alguma. O sotaque carioca soou claro.
ㅤㅤ – Sabe, eu poderia ter pegado qualquer outro ônibus, mas eu resolvi pegar esse aqui.
ㅤㅤ – Por que? - A pergunta saiu antes que ela mesma pudesse pará-la, novamente.
ㅤㅤ – Porque eu te vi pela janela.
ㅤㅤ Raquel corou, ele estava a cantando claramente, e ela mesma parecia estar gostando.
ㅤㅤ Quinze minutos depois, os dois saltaram do ponto, rindo e trocando conversas como se fossem íntimos de anos. Tinham se afastado um pouco do centro, indo na direção de alguns bairros menores que ficavam entre a área principal da cidade e o núcleo da universidade. A menina iria faltar aula naquele dia, tinha coisas mais interessantes a se fazer. O garoto, Marco, era simpático e charmoso, além de dar cantadas e respostas que fariam qualquer garota virar um tomate. Por que não relaxar um pouco? Um dia, ou outro era bom se descontrair. Quem sabe aquilo não daria em algo mais excitante para ambos?
ㅤㅤ Caminhavam pela calçada, tinham decidido tomar uma bebida ali perto. Ela guiando o rapaz, que estava de passagem na cidade, visitando parentes. O garoto, que antes segurava na mão dela, agora deixava sua mão pousada na cintura dela, caminhando bem juntinho ao corpo dela. Viraram uma esquina, entrando numa ruela que adiantava umas duas quadras no caminho até o barzinho charmoso onde iriam. Raquel nem notou o carro que seguira o ônibus o caminho inteiro e estava ali, andando de farol desligado um pouco atrás.
ㅤㅤ Marco ria, e já ia começar um novo assunto quando uma música baixa soou. O celular do garoto tocando. Marco o retirou do bolso o suficiente para ver o nome ali: Vicente. Era o sinal. Nada de códigos ou coisas avançadas, era simples demais. Guardou o celular, ao mesmo tempo que agarrara um pano molhado que estava ali.
ㅤㅤ – Marco, quem é er....!!!!
ㅤㅤ A pergunta da garota não chegou a um fim. O pano tampou seu nariz e boca, dificultando-lhe a respiração. Um cheiro forte e nauseante a dominava e sugava suas forças, Marco fazia força para ela não escapar daquele maldoso golpe. Em poucos segundos, Raquel desmaiou.
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ㅤㅤ Abriu os olhos, quase sem forças. O lugar era escuro, e ela mal podia distinguir uma forma cá e outra acolá. Podia ouvir um leve murmúrio a sua volta, quase parecendo um cântico. A mente doeu quando ela tentou recordar-se o que havia acontecido, apenas poucas visões lhe vinham, um garoto, uma rua escura e um carro. Mais nada.
ㅤㅤ Percebeu pequenos pontos luminosos dispersos a sua volta, demorando mais alguns segundos para notar que eram velas posicionadas em arco à sua volta. Agora, a visão estava quase perfeita. As velas estavam colocadas junto de círculos negros desenhados no chão. Os desenhos – quase tribais – formavam diversas formas à sua volta. Eram pelo menos cinco voltas pretas, que pareciam ter sido pintadas a pouco, visto que ainda parecia úmida próximo às velas. Tentou mexer-se, mas além da dor na cabeça, ainda percebeu que não conseguia mover-se. Estava presa, imóvel por completa presta numa coluna, ou algo do tipo. As vozes agora estavam claras, e ela pôde definir da onde o cântico vinha. Dois homens estavam sentados à frente dela, fora do círculo, um apoiado nas costas do outro. Pareciam imóveis, fora a boca que se mexia rapidamente formando o coro audível.
ㅤㅤ – .... - Raquel tentou falar. Mas a voz simplesmente não saiu, travada em seu peito, como se algo a impedisse. Tentou gritar, pedindo ajuda, mas nem um som conseguia emitir. Chacoalhou as correntes que a prendiam em volta do pilar de tijolos velhos, também não poderia se mover. Lágrimas brotaram de seus olhos, agora lembrando-se da bobeira que fizera, de como caíra na lábia do garoto tão facilmente. Deixou o corpo cair, sentando-se escorada à sua prisão. Lá fora, o sol acabava de deixar por completo aquela face do mundo.
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ㅤㅤ Ela já não podia sentir o corpo. As vozes que antes eram um cântico silencioso agora pareciam gritar dentro de sua cabeça. Os dois homens estavam lado-a-lado, fora do círculo, olhando para ela com olhos inexpressivos como bolas de vidro. Um deles era Marco, o outro, parecia bem mais velho. O que era aquilo, Macumba?
ㅤㅤ Seja lá o que fosse, começava a mexer com ela. Ela estava tendo alucinações, loucuras percorriam sua mente conforme as vozes aumentavam. Ela ouvia cochichos maldosos e incompreensíveis perto de si, mas nada via. Podia ouvir passos e outros sons vindos de todos os lados, mas nada observava. A voz dos dois aumentou novamente, e agora, junto delas, as luzes das velas aumentaram magicamente. Os gritos maldosos ecoavam em sua cabeça, a loucura tomando conta da jovem estudante e esforçada.
ㅤㅤ Gritou, mas a voz não saiu, então, se limitou a fechar os olhos. No mesmo segundo, as vozes pararam e um silêncio aterrorizante tomou o local. Ela levou alguns segundos para abrir os olhos novamente. Os dois homens iam embora, estavam se dirigindo a entrada daquela casa velha e abandonada. Deixando-a ali, sozinha com seus medos. A luz das velas, que antes estava fortíssima, agora se encontravam estranhamente fracas. Quase miúdas a ponto de Raquel não ver mais tanto à sua volta. Ela suspirou, tentando ver um lado bom naquela situação toda: Agora, não havia mais os cânticos. Não seria mais atormentada, era questão de tempo até alguém achá-la ali.
ㅤㅤ Cochichos tomaram conta de seus ouvidos, os mesmos de antes. Ela abriu os olhos, saindo de seu breve cochilo. E seus olhos arregalaram-se ao mesmo tempo que perdia o fôlego. Ali, fora dos círculos, sombras sem dono rondavam a velha casa. Elas giravam rapidamente, como uma aura negra de morte que estava ali unicamente para ela. Raquel levantou-se novamente e tentou se soltar mais uma vez, sentindo os pulsos doloridos pelas inúmeras tentativas em vão. A voz ainda não saía. Os cochichos agora eram gargalhadas maquiavélicas, que soavam por todo o lugar, deixando o pouco que restara de lógico na garota se dissipar. Ela apenas queria sair dali, debatia-se como podia, mas nada acontecia.
ㅤㅤ As sombras pareciam querer tentar entrar no círculo a todo momento, mas as velas sempre oscilavam quando eles chegavam perto. E logo a penumbra viva se afastava novamente, voltando a rodar em torno dela como aquela aura maldita. A menina chorava alto, lágrimas sujando toda a face e parte do chão abaixo dela. Não era para estar ali, deveria estar estudando, dando duro para dar o futuro que os pais mereciam por educá-la tão bem. De repente, ela pôde ouvir o choro. A voz voltou. Limpou a lágrima dos olhos com o ombro, e sorridente começou a gritar por ajuda enquanto focava-se no lugar.
ㅤㅤ O sorriso morreu.
ㅤㅤ As velas haviam se apagado e novamente um silêncio assolava o lugar. Mas Raquel sabia o que aquele silêncio significava. Sabia que não mais voltaria para casa. Uma risada monstruosa soou novamente, mas agora, pareceu estar bem ao seu lado. Cheirando seu cangote. Gelou o corpo, e tentou se encolher no seu canto. Como se ele pudesse dá-la a proteção que necessitava contra aqueles demônios terríveis.
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ㅤㅤ Já longe dali, Vicente dirigia o carro que alugara às pressas. Marco estava ao seu lado, de cara fechada, olhando pela janela. O mestre olhou seu pupilo pela quinta vez nos últimos cinco minutos, e novamente suspirou profundamente.
ㅤㅤ – Foi necessário, Marco.
ㅤㅤ O menino permaneceu em silêncio, olhando para fora.
ㅤㅤ – Caso isso não fosse feito. Eles estariam se amontoando em cima da Isca. E, em pouco tempo, não só a garota, como todo o resto do mundo estaria sofrendo.
ㅤㅤ Marco não respondeu, ainda. Vicente acelerou, Azaias havia ligado havia pouco tempo, já sabiam aproximadamente onde estavam a Isca e Tobias. Dimitri e Romanov fizeram um ótimo trabalho, dificultando as conexões espirituais que ocorressem nas proximidades; e Azaias, sempre saindo de seu corpo para conversar com os espíritos, não demorou muito à achar uma alma que o levara até a localização tão chamativa daquelas anomalias.
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ㅤㅤ Demorou muito mais que alguns poucos segundos para Carlos associar toda aquela história. Em menos de dois dias, ao que parecia, a vida de Hiroshi virara do avesso. Do nada, ele se tornou um assassino raivoso compulsivo, tinha pesadelos tão reais que sentia o calor na pele e ainda sentia-se sempre perseguido por uma estranha presença. O nipônico coçou a cabeça, sentindo dor nos cortes e machucados que a luta com Alcides fizera nele, ao que parecia, Carlos havia cuidado dos cortes, limpando-os e passando gaze em volta deles.
ㅤㅤ – É difícil de acreditar em histórias tão cabreiras assim, cara. - Finalmente ele falou, quebrando o silêncio. - Mas eu acho que te dou o valor dessa história. Meu tio Zé me contava umas coisas mais loucas que essa aí, e além disso, aquela estação ferroviária tem mesmo alguma coisa do cão, do capeta mesmo.
ㅤㅤ – Então, o que acha que eu devo fazer agora? Eu ainda estou tentando entender como estou conseguindo conter minha raiva, e como a sensação de perseguição diminuiu. Mas, é melhor não relaxar por causa disso. Quero resolver isso logo, cara.
ㅤㅤ – Acho que sei quem pode te ajudar... - Disse Carlos, pensando um pouco. Então, como se a idéia se firmasse em sua mente, ele levantou-se de impulso e foi em direção à porta do quarto. Abriu-a e passou por ela, enquanto desligava a luz. - É! Acho que só ele pode dar uma idéia melhor do que tu tem! Vamos lá!
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ㅤㅤ Já passava de meia noite quando bateram na porta. Mas Amaro, novamente, não conseguira ter uma noite de sono sossegada, estava ali, suando frio com os olhos arregalados virados para o teto. Uma vez um homem lhe dissera sobre a natureza de suas habilidades, disse que ele tinha o dom de ver o fluxo da vida e das almas, e por isso, tinha pequenas chances de vislumbrar o que ocorreria a uma alma, ou a um grupo de almas futuramente. Era um visionário. Na época, o homem ficou feliz com a revelação do motivo dos sonhos perturbadores que tivera durante infância e adolescência. Mas agora, arrependia-se todo dia pela maldição que lhe fora imposta.
ㅤㅤ Apenas pouquíssimas pessoas, entre elas nem sua esposa estava, acreditavam em seu dom. E fora graças a ela que ele ainda podia tentar sustentar sua filha, a única coisa que ainda fazia sua vida mover. Luana, jovem como era, sempre tinha energia e ânimo. Já arranjara emprego num bar do bairro, ajudando a pagar as contas de casa. Além disso, estudava duro, tinha planos para o futuro. Amaro estava feliz por ela não ter puxado seu dom, tinha certeza disso, ela nunca mencionara nada sobre ver coisas. Aquelas visões que só traziam desgraça. Aquelas visões que agora o tragavam para entrar na pior aventura de sua porca vida. Levantou-se, era hora de encarar aquelas pessoas que seus sonhos a tanto tempo diziam que encontraria.
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ㅤㅤ Carlos estacionou a moto na frente da casa.
ㅤㅤ – Tem certeza que esse cara pode ajudar, Carlos?
ㅤㅤ Hiroshi tinha perdido a esperança de achar algo de útil ali. A casa caindo aos pedaços e as pixações denegrindo o nome do humano com dons sobrenaturais em questão não deixaria ninguém esperançoso. Parecia realmente a casa de um charlatão. Um farsante qualquer. Mas o churrasqueiro voltou o olhar para ele com uma seriedade enorme.
ㅤㅤ – Se engana não, mano. O Amaro aí já ajudou pra caramba uns primos e outros camaradas meus por aí. Chegou do nada e disse para o Lucas, meu primo, tomar cuidado com a família nos próximos dias. Não deu outra, três dias depois uns encrenqueiros que perderam uma aposta com ele apareceram na casa de tarde, na hora que meu primo estava trampando. Iam pegar toda a família do coitado. Mas, graças ao aviso, o primo Lucas ficou em casa junto de mais uns amigos e parou os desgraçados. - Disse, avançando na direção da casa. - Ele é gente boa, e a filha dele é uma lindeza do bairro. Acho que ele pode dizer algo dessas coisas anormais que te ocorrem.
ㅤㅤ – Sei... - O japonês ainda não acreditava muito nas palavras do amigo.
ㅤㅤ Passaram pelo portão enferrujado e entraram na casa. Poucos segundos e Carlos bateu na porta de madeira velha. O silêncio respondeu de volta nos próximos segundos, era de se esperar, dado o horário. Já ia bater de novo, chamando pelo nome de Amaro, quando ouviu passos. Quase correndo, o homem veio à porta e abriu-a.
ㅤㅤ O sujeito era pequeno, não passava do ombro de Hiroshi. A barba branca e mal feita despontava na face, e o pouco de cabelo desarrumado mostravam que estava tranquilo. Era muito magro, dado o fato de que não bebia álcool e nem comia direito. O velho mulato observou os dois com os olhos quase saltando das órbitas, ele não parecia ter dormido. Não deu muita atenção para Carlos, mas quando seu olhar se encontrou com o do nipônico, ele estacou, imóvel.
ㅤㅤ – Amaro! Precisamos da sua ajuda! - Carlos cortou o transe.
ㅤㅤ – Eu sei que precisam! O garoto aí está com tantos problemas que eu não consigo pegar no sono faz dias! Entrem logo, e não façam barulho, porque minha filha parece estar dormindo ainda.
ㅤㅤ A resposta inesperada fez os dois entrarem abobados, sem nem perguntarem mais nada. Amaro afastou-se para deixá-los passar, tendo muito cuidado para não encostar em Hiroshi, quando este passava. Fechou a porta em seguida, com uma grande rapidez e trancou-a.
ㅤㅤ Os dois visitantes olharam a pequena sala onde Amaro fazia o pouco de dinheiro que podia com suas visões. Estava todo sujo e empoleirado, mas tinha lá seu tom de mistério, dado principalmente as lâmpadas de abajus e os grossos lençóis que cobriam as janelas. Pararam ao centro da saleta, encostando-se à mesa circular. Amaro tinha ido a cozinha, e agora voltava, tomando um copo de água. Definitivamente, o velho não parecia descansar a um bom tempo. Agora, com mais iluminação, Hiroshi e Carlos podiam ver as largas olheiras nos olhos fundos do velho, fora a tremedeira que fazia o corpo d'água quase derramar.
ㅤㅤ – Sabia que eu viria? - Disse Hiroshi, finalmente.
ㅤㅤ – Sabia que você estava em perigo, e que coloca muita coisa a perder.
ㅤㅤ – Coisa a perder?
ㅤㅤ – É. Se você não fazer o que deve, nada vai ser igual.
ㅤㅤ A conversa estava confusa demais. Hiroshi coçou a cabeça e sentou-se na cadeira de madeira da mesa, tomando ar e contendo a irritação que crescia dentro dele. Agora era fácil contê-la.
ㅤㅤ – Calma, calma. Amaro, certo? Olha, eu nem queria vir aqui, o Carlos que insistiu que você podia me ajudar. Mas você vir até mim dizendo um monte de coisas complicadas e estranhas não vai ajudar em nada. Pode ser um pouco mais claro?
ㅤㅤ Amaro deixou o copo em cima da mesa e tentou respirar fundo, contendo o nervosismo.
ㅤㅤ – Olha... Eu nem sei por onde começar. - Falou ele, sentando-se em outra das cadeiras. - O Carlos deve ter te contado que eu tenho visões do que acontece vez ou outra. Isso sempre vem em forma de sonhos ou quando estou distraído. O problema é que, nos últimos dias, eu estou tendo pesadelos horríveis, coisas que nunca vi antes surgiam aos meus olhos. E, no centro de toda essa trama, eu vi você.
ㅤㅤ – Eu?
ㅤㅤ – É. Eu nem faço idéia do seu nome ou de quem é você. Mas eu te vi, em várias visões, junto de várias pessoas diferentes em situações de risco ou situações anormais.
ㅤㅤ – Como o que?
ㅤㅤ – Vi você com os olhos brilhando num verde cabreiro e forte. Vi você no meio de um descampadão quente e arenoso. Vi você se jogando contra um monte de capetas num corredor. Vi você sozinho dentro de um lugar escuro pra caramba. Mas as cenas que mais me assustam nessa porra toda, não tem você no meio.
ㅤㅤ – Tipo em quais?
ㅤㅤ – Eu vi um par de vezes, um velho fedido e um garoto conversando. Sempre quase trocando insultos, dado o grau de agressividade dos dois. O Velho parecia sempre contestar, mas o garoto ignorava qualquer palavra dele. Esse garoto... Ele é quase um capeta em pessoa, rapaz. Quase um capeta.
ㅤㅤ – Espera, no que eles se encaixam nessa história toda? Não tem algo a ver com uma assombração ou coisa do tipo? Que diabos tem um velho e um garoto no meio disso?
ㅤㅤ – É aí que você se engana, guri. Teu inimigo não é o Macedo, também tive visões dessa alma penada e sem lugar pra ir. O garoto foi só uma vítima, como você. Teu inimigo tá bem vivinho, e sempre na sua cola. - Amaro olhou para a frente de casa, como se estivesse com medo de encontrar alguma coisa pela janela. - Todo cuidado é pouco. Olha, rapaz, qual seu nome?
ㅤㅤ – Hiroshi.
ㅤㅤ – Hiroshi, eu nem faço idéia de como você chegou aqui. O Carlos aqui, primo do Luquinhas que eu ajudei outro dia, deve ter mexido os pauzinhos dele para te colocar aqui dentro. Eu sabia que tu viria de algum jeito, estava no seu destino. Mas, deixando tudo isso de lado... Hiroshi, você acredita em magia?
ㅤㅤ – Magia?
ㅤㅤ – É, magia. Acho que posso te dar mais informações que vão te ajudar daqui pra frente na sua jornada. Mas, para isso, preciso saber se tu acredita nessas coisas...
ㅤㅤ Hiroshi acomodou-se na cadeira de madeira.
ㅤㅤ – Olha, não sei, não, Amaro. Eu acredito nessas coisas de fantasma, de assombração, tanto é que eu me meti nessa enrascada por ajudar minha amiga nisso. Não foi?
ㅤㅤ – Foi. A primeira das visões que eu tive foi sobre esse dia aí.
ㅤㅤ – Então, nisso eu acredito. Mas nunca soube nada de magia.
ㅤㅤ – Mas está tudo interligado, guri. - Amaro apoiou os cotovelos na mesa, gesticulando com as mãos. - A magia se baseia em pessoas com dons e treinamentos para manejar almas e coisas relacionadas a ela. Como para onde ela vai, de onde ela veio, das ligações dela aqui e das que tem casos especiais; como almas penadas e assombrações.
ㅤㅤ – Se magia for isso, acho que acredito.
ㅤㅤ Amaro abriu um sorriso na face. Sorriso, que esmoreceu alguns poucos segundos depois. A filha surgiu na porta do pequeno quarto, os observando. Antes fosse que ela estivesse com uma cara sonolenta, acordada com a conversa deles; Luana tinha os olhos arregalados e as mãos seguravam com força a quina da porta. Ela olhou para Hiroshi como se já o conhecesse. E Amaro sabia muito bem daquela reação, foi daquela forma que ele mesmo encarou o homem que apareceu em sua primeira visão. Ele sonhou com o senhor que vendia jornais na esquina, sonhou que o via agonizar e morrer com tiros. Na semana seguinte, ele apareceu morto na banquinha dele, vítima de assalto que terminou em homicídio.
ㅤㅤ Luana avançou alguns passos, tentando conciliar algumas das coisas que rondavam na sua cabeça. Naquela noite, ela havia conseguido dormir, mas o sono veio carregado de tantas imagens que mal conseguira lembrar-se delas por um todo. O pior foi abrir a porta do quarto e dar de cara com o protagonista da maioria das visões. Estava descrente do destino.
ㅤㅤ – Minha filha... - Disse Amaro aos gaguejos. - Volta, a dormir, querida. São amigos do pai.
ㅤㅤ – Precisam... - A voz baixa da menina mulata soava.
ㅤㅤ – Eles já vão sair daqui a pouco, querida. Pode ir dormir...
ㅤㅤ – Vocês precisam sair.... - Disse ela, quase inaudível.
ㅤㅤ – Como é?
ㅤㅤ Carlos calou-se de seu silêncio de ouvinte.
ㅤㅤ – Vocês precisam sair....
ㅤㅤ Falou mais uma vez, agora apontando pela janela. Do outro lado da rua, uma van branca e uma preta estavam estacionadas, com os faróis ligados. Amaro direcionou o olhar para van e entendeu, com horror, que a filha também tinha o seu dom. Aqueles veículos apareciam em várias das imagens que inundavam seus sonhos. E sempre surgiam como um mau agouro.
ㅤㅤ O velho levantou-se apressadamente, correndo ao quarto e voltando em segundos com um bolo fechado por jornais na mão, colocou na mão da filha e deu leves tapas no rosto dela, de modo que ela saísse em partes do transe dos sonhos. Ela piscou repetidas vezes, estava ciente do que acontecia, mas agora não agia como um oráculo inexpressivo.
ㅤㅤ – Filha, desculpa por tudo. Não era pra tu ter um pai tão maldito a ponto de ter essas coisas, e pior ainda, não era pra você ter herdado isso desse velho aqui. - Disse em lágrimas, apertando o bolo na mão da filha. - Aqui tem todo o dinheirinho que eu consegui juntar pra quando tu entrar pra faculdade. Desculpa, amor, como queria te ver formando!
ㅤㅤ A menina também chorava.
ㅤㅤ – Pai... Não Pai, tem algum outro jeito. Tem que ter...
ㅤㅤ – Você viu o que eu vi, não? Sabe que não tem jeito, querida. Essa é a hora que eu mais temia. Agora você tem que ir. - Olhou para os dois, que quase nada entendiam daquilo que falavam. - Tem que levar eles pra longe daqui, sabe que ainda vai ter um papel importante nisso tudo, não sabe, querida? Então, precisa ir!
ㅤㅤ O velho Amaro limpou o rosto de lágrimas e abraçou e beijou a filha uma última vez, para então ela se afastar um passo, na direção da cozinha. A garota voltou seu olhar triste para os dois homens e fechou o maço de dinheiro na mão.
ㅤㅤ – Vamos, tem uma porta dos fundos na cozinha. A gente tem que sair daqui, agora.
ㅤㅤ – Não, espera, eu não estou entendendo nada agora. - Hiroshi se pronunciou.
ㅤㅤ – É, complicou até pra mim, Amaro, que tá acontecendo?
ㅤㅤ O velho foi até os dois e pôs uma mão sobre o ombro de cada um deles. Olhou-o nos olhos com toda a coragem e dignidade que tinha.
ㅤㅤ – Esse velho aqui tem que cumprir seu papel nessa história, rapazes. - E voltou-se pra Carlos. - Você também ainda tem algo muito importante a fazer, algo que só você vai conseguir. - Virou-se então para Hiroshi. - E você, guri, tudo depende de você. Olha, sei que tá difícil entender qualquer coisa, mas coloca algo na cabeça, dentro dos próximos dois dias, sua vida vai complicar ainda mais. Mas você vai ter que se mostrar firme, porque o mundo todo depende de seus atos. Eu podia ficar falando um monte pra vocês, mas só dá tempo de dizer uma coisa: Comece a agir contra seus inimigos. Procure sobre o termo “Olhos Vermelhos”.
ㅤㅤ – Olhos Vermelhos? - Um calafrio subiu pela espinha ao ouvir o termo.
ㅤㅤ – É, isso mesmo. Olhos Vermelhos. - E apontou para as vans, tinha gente saindo de dentro delas. Amaro apagou as luzes da sala, deixando-os na penumbra. - Aqueles caras ali são os capetas vivos. Se eles ganham, vocês e todo o mundo morrem. Só tu consegue fazer algo, moleque. Agora vai! Vai e deixa minha filha protegida!
ㅤㅤ Amaro empurrou os dois para a cozinha onde a menina já aguardava eles. Carlos, ainda perdido naquilo tudo, resolveu confiar nas profecias do velho Amaro, ele sempre estava certo, afinal. Seguiu junto de Hiroshi pela cozinha, saindo para a porta dos fundos. Ali, Luana já estava pronta, com o maço de dinheiro num bolso do pijama ralo que usava. Os muros do fundo da casa eram baixos, e ele já estava subindo ele quando os dois chegaram. Chegou ao topo e olhou para ambos.
ㅤㅤ – Vamos. Precisamos correr para não sermos pegos.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Felipe desceu do carro com um sorriso na face, sabia que o garoto estava ali. Tinha total certeza, afinal, havia pouco tempo, sua capacidade de localizá-lo tinha voltado. Tobias preferiu esperar no carro, sabia que aquela jornada toda tinha como protagonista o seu pupilo, e não ele. Deixaria que o garoto decidisse como agir ao modo dele. Metade dos homens também desceram junto, cada um portando uma arma, presa a cintura. Aquelas eram as pistolas, discretas e chamativas. Não mandaria eles usarem fuzis iraquianos numa situação daquelas.
ㅤㅤ Atravessaram a rua com pressa, e Felipe fez sinal para que a maioria esperasse lá fora. Apenas Josué e o Cabide foram apontados para avançarem junto dele. A disposição dos homens em volta da casa formava um arco, e, no centro, os três homens avançavam. Felipe abriu o portão de ferro e adentrou com calma e um sorriso na face. Parou novamente apenas na frente da porta de madeira, virou-se para Cabide, o capanga mais forte que contratara, e acenou com a cabeça. O gigante chutou a porta, que tombou para dentro de uma única vez. Josué entrou em seguida, sacando a arma e apontando para dentro, Josué era o extremo contrário de Cabide, era esguio e ágil com uma pistola, mas não tinha força alguma. Cabide entrou atrás do companheiro, sacando sua arma.
ㅤㅤ Só depois de ambos, Felipe aventurou-se porta adentro, andando com calma e paciência. Mas o sorriso morreu na face assim que não encontrou a figura de Hiroshi ali na sala. No lugar dele, havia apenas um velho senhor, sentado numa mesa ao centro da velha sala, com os cotovelos sobre a madeira. Ele acendeu um pequeno abajur na mesa, fazendo a luz amarelada e oscilante percorrer a sala. Amaro sorria para os invasores.
ㅤㅤ – Boa noite. Vieram ver a sorte? - Disse, em som de deboche. - Tá meio tarde, mas minhas cartas ainda estão na mesa e eu posso fazer uma forcinha.
ㅤㅤ – Onde está o garoto, velho? - Cortou Felipe, nervoso.
ㅤㅤ Amaro fez uma cara cínica de não ter entendido o que o garoto falava e sorriu em seguida, vendo os dois homens com as pistolas apontadas para sua cabeça. Sabia que morreria ali, mas também sabia que poderia comprar o máximo de tempo para os três escaparem com segurança.
ㅤㅤ – Olha, sou apenas um velho vidente. - Começou Amaro. - O guri veio aqui pedindo ajuda e tudo mais, quando vocês apareceram. Ele ficou desesperado quando vocês desceram do carro. - O vidente diminuiu a voz e sorriu, apontando para o quarto. E, num sussurro, continuou. - Se escondeu no Armário.
ㅤㅤ Felipe sorriu para o velho, pelo jeito, o charlatão estava querendo cooperar com eles. Acenou para os dois capangas. Josué continuou com a arma apontada para o velho, enquanto o Cabide avançou na direção do quarto. Um novo chute fez outra porta cair, e o gigante entrou no quarto escuro. Demorou alguns segundos, até que voltou à sala, com um sinal negativo balançando na cabeça. Mais uma vez o sorriso de Felipe encolheu-se, e ele voltou a face para o velho.
ㅤㅤ – Não estão lá, caduco. - O próprio Felipe sacou uma arma, destravou-a e encaixou o cano dela na testa de Amaro. - Por que você não larga de brincadeirinha e me diz logo onde eles estão?
ㅤㅤ No exato instante, ouviu-se um ronco de motor vindo de trás da casa, do outro lado da quadra. Não era preciso ser um carro potente para que o barulho fosse ouvido, afinal, a quadra toda estava silenciosa. Felipe demorou alguns segundos até entender o que ocorria, voltou-se furioso para ameaçar o velho ainda mais. Mas encontrou o velho Amaro sorridente em sua mesa velha. Ele olhou para Felipe com seus olhos de sabedoria e graça.
ㅤㅤ – Nunca vai conseguir pegá-los, capeta.
ㅤㅤ Felipe urrou de raiva e disparou, dando cabo à vida do velho Amaro.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Luana, Hiroshi e Carlos cruzaram duas casas até chegar ao outro lado da quadra. Quase tiveram de se defender de um grande cachorro pastor-alemão numa casa, mas tiveram tempo de correr. Estavam cruzando o último muro que os separavam da rua. Luana foi a primeira a saltar, seguidos de perto por Hiroshi e Carlos. Tocaram a calçada despavimentada do outro lado. Seria hora de correr.
ㅤㅤ Seria.
ㅤㅤ Da esquina, a van branca surgiu, dirigindo com certa velocidade até eles. O coração de Hiroshi gelou e Carlos já começava saltar de volta o muro. Luana estava imóvel, junto do japonês. Carlos virou-se para trás para dar-se conta que apenas seu coração malandro e espertinho soube reagir à nova van. Os outros eram lerdos demais! Saltou de volta e puxou-os pela manga.
ㅤㅤ – Esperando o que!? Vamos logo!
ㅤㅤ – Não dá tempo, Carlos. - Respondeu secamente Hiroshi. - Melhor encarar agora. Eles tem um carro, podem nos achar facilmente se estão cercando a quadra com vans. Acho que o plano de fuga não deu muito certo.
ㅤㅤ A van parou em frente a eles, o vidro escuro os limitava de ver quem estava dentro do veículo. Encostaram-se os três na parede, observando atentamente aos movimentos dos passageiros do veículo. A porta destravou-se, e um breve segundo se passou, até que as portas se abriram, tanto a do motorista, quando a dos passageiros. Surpresos ficaram eles quando o primeiro que desceu foi uma criança de pele alva, vestida em camisa e gravata, com um sobretudo por cima. Em seguida, desceu atrás dele um outro homem, também de pele branca, vestindo-se praticamente igual ao garoto. E, do banco de motoristas, o negro alto surgiu, deixando a porta aberta e o carro ligado.
ㅤㅤ Os três estranhos ficaram de frente para Hiroshi, Carlos e Luana. Até que finalmente, Dimitri apontou o dedo na direção de Hiroshi, acenando positivamente com a cabeça. Romanov e Azaias apenas assentiram. Logo em seguida, os estranhos da Liga se afastaram da van, correndo Dimitri para um lado da quadra e Romanov para o outro, enquanto Azaias se preparava para saltar o muro.
ㅤㅤ – Quem são vocês!? - Finalmente conseguiu soltar Hiroshi.
ㅤㅤ O negro que subia o muro, ao lado deles, olhou-o rapidamente.
ㅤㅤ – Use a van para fugir daqui. Nós o encontraremos em breve, Isca. Vamos segurar os homens de Tobias por um instante, mas não sabemos o quanto podemos atrasá-los, saiam daqui, rápido.
ㅤㅤ Azaias saltou o muro, não deixando tempo para que eles fizessem mais pergunta alguma. Hiroshi demorou dois segundos para entender que essa van não estava do mesmo lado que as outras vans. Talvez esses fossem até aliados. Olhou para Carlos, e Luana, aguardando confirmação deles. A menina, ainda quieta, apenas concordou com a cabeça.
ㅤㅤ – Vâmbora daqui. - Complementou Carlos.
ㅤㅤ Saltaram para dentro da van e Hiroshi pisou fundo no acelerador.
ㅤㅤ
Leia até o fim...

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