terça-feira, 31 de agosto de 2010

Olhos Vermelhos - Capítulo 9



ㅤㅤ IX
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ㅤㅤ Hideki ouviu a campainha na porta, afastou-se da sua grande escrivaninha com um impulso das pernas, fazendo sua cadeira presidencial rolar pelo pequeno quarto. Já fazia alguns bons meses desde que decidira morar sozinho, os pais acabaram o apoiando. Afinal de contas, Hideki já tinha o trabalho de programação de sistemas e o bico com os tios.
ㅤㅤ Levantou-se, deixando a sua querida companheira de todas as noites para trás. Era um complexo de três computadores e um laptop. Haviam cerca de quatro monitores no local, fora o embutido no computador portátil. Nas diversas telas, imagens diferentes, todas ligadas pela rede poderosa que ele portava. Descalço, o magro nipônico cruzou a sala da kitnet e foi até a porta, abrindo-a sem precisar conferir quem era. Naquela hora da noite, só podia ser uma pessoa.
ㅤㅤ – Oi, Hideki. - Melissa o cumprimentou rapidamente com um beijo e passou por ele. Sua face não estava nada boa. A garota, na verdade, não estava muito bem desde a tarde do dia anterior. Sentia-se pesada e com uma estranha sensação de incômodo dentro de sua própria mente. Mas, o rapaz tinha outra suposição para o porquê daquele mal-estar que a fizera marcar com ele ali.
ㅤㅤ – O Hiro tá estranho....
ㅤㅤ Confirmada a hipótese. Realmente, Melissa sempre vinha ter com ele, quando o assunto eram as fases mal dormidas de Hiroshi. Ele fechou a porta atrás dela, e sentou-se na pequena banqueta de madeira, ao lado da entrada.
ㅤㅤ – A Tia Yumi me disse a mesma coisa. Perguntou pra mim sobre ele, alias. E, desculpe por quebrar sua confiança, Lissa, mas eu não estou sabendo de nada.
ㅤㅤ A face da garota desmontou. Esperava que o primo, tão companheiro de Hiroshi, soubesse de alguma coisa. Ela deixou o corpo cair sobre o sofá, e relaxou, realmente, algo estava muito errado em toda aquela história.
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ㅤㅤ Voltando um pouco no tempo. Aquele fora realmente um dos piores dias de Hiroshi. Seus olhos abriram vacilantes naquela manhã. A mente estava trabalhando a mil por hora, segundos atrás estava transformando demônios em fumaça negra, e agora lá estava ele em sua cama. Levantou-se lentamente, e observou o corpo: nenhuma marca ou arranhão. Deixou o corpo pender para trás. Podia estar livre de qualquer ferida física, mas sentia seu psicológico frágil. Carregava toneladas na mente, era como se todo o terror que vivera agora se incrustasse no que restava de são em seus pensamentos. Estava duro manter-se lúcido o suficiente para começar a distinguir realidade de novas alucinações, e também, havia aquilo.
ㅤㅤ Uma sensação incômoda o circundava, uma aura de baixo astral e mal estar. Era como se estivesse sendo observado, como se olhos estivessem montados em suas costas e rissem de cada sofrimento e confusão que seu cérebro gerava. Ele sentia-se como se não estivesse sozinho nem dentro de sua alma, estava junto de uma má companhia, que mexia com todas as suas ações.
ㅤㅤ Manteve-se olhando para o teto do quarto por alguns segundos, e depois deitou o rosto, observando a janela do quarto. Estava intacta, mesmo sendo por ali que o primeiro demônio investira contra ele. Ficou perturbado com as lembranças, e subitamente desejou afastar-se dali, para encontrar qualquer outra coisa. Tudo a sua volta começou a causar irritações em seu ser. Vestiu a primeira roupa decente que achou e desceu as escadas com pés pesados.
ㅤㅤ – Hiro! Já acordou? Mas que rarida...
ㅤㅤ A voz da Senhorita Yumi se calou quando o filho passou reto pela cozinha, sem nem ao menos lhe dirigir um olhar. Estava estranho. O pai, sentado à mesa da cozinha, observou o gesto de descaso de seu garoto com maus olhos.
ㅤㅤ – Volta aqui, Moleque! Cumprimenta sua mãe direito! - Bradou.
ㅤㅤ Mas, como resposta, só conseguiu ouvir os passos se afastando cada vez mais. Enervado, levantou-se aos berros indo atrás do filho. Hiroshi parecia inerte a tudo que lhe ocorria a sua volta. A mãe lhe irritava, o pai também; por que nunca percebeu isso antes? Seria tão melhor que eles morressem de uma vez por todas! Os gritos do seu velho ficaram distantes de sua mente, ele abriu a porta da frente enquanto olhava para os bolsos, verificando se celular e carteira estavam ali. Quando foi avançar, deu de cara com Melissa.
ㅤㅤ Estacou na entrada.
ㅤㅤ – Oi, Hiro! - Ela disse, sorrindo.
ㅤㅤ – .... - Desviou o olhar, fechando o punho para conter aquela personalidade tão diferente.
ㅤㅤ – Que foi? Não vai me cumprimentar direito não? Vim ver como está a ferida na sua mão... Hah, seu pai está te chamando.
ㅤㅤ Foram os gritos do Senhor Hideo que o trazeram de volta àquela insanidade. Afastou Melissa com um empurrão e saiu pela porta da frente, deixando a garota abobada para trás, junto de seus pais, visivelmente preocupados com a atitude revoltosa do filho.
ㅤㅤ Que todos fossem para os ares! Quem pensavam que eram para gritar com ele!? Nem sabiam pelo que ele estava passando. E Melissa? O que diabos ela vinha fazer ali? Só de lembrar dela sentia os nervos aflorarem, afinal de contas, se não tivesse entrado na maldita estação ferroviária, talvez nada daqueles estranhos sonhos viessem a ele. Sentia que estava tudo interligado, simplesmente sabia. Garota persistente e chata, não entendia o porquê de tê-la como amiga, seria melhor se estivesse morta também!
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ㅤㅤ Hiroshi respirou fundo.
ㅤㅤ Já estava a tantas quadras distantes da casa que não ouvira nada da algazarra que ele criou no portão. O que ele estava dizendo? O que era toda aquela fúria? O garoto não era daquilo, não aquele que treinou por onze anos a filosofia de vida do Karatê, que aprendeu os cinco lemas e tentou segui-los tão fielmente. Era um homem disciplinado, de caráter e boa índole. Como pensou tão mal dos pais... e de Melissa? Ele era apaixonado pela garota! Vivera com ela por tantos anos e nunca se confessou por puro medo de perder a amizade que construíram com tanta perfeição.
ㅤㅤ Deixou o corpo apoiar-se no muro: Precisava relaxar. Esfriar a cabeça. Caminhou até o próximo ponto de ônibus que achou, e subiu na primeira condução que estacou-se a frente dele. Agora, um pouco mais relaxado, tentava ligar os fatos, compreender o que estava acontecendo com ele e um modo de voltar à normalidade. Percebeu que sempre que deixava a mente fluir livremente, os pensamentos começavam a se tornar malévolos e raivosos, como se tudo que ele era fosse por água abaixo. Tinha de se policiar. E, mais que isso, encontrar algo que o tirasse daquela pseudo-loucura. Olhou para a mão, o corte feito com a navalha dentro do quarto sujo estava estancado e envolto por gaze. O nipônico sentia extremo mal estar, sempre que direcionava os pensamentos para a cena, ou sempre que se concentrava demais na ferida.
ㅤㅤ Como fora companheiro de Melissa por todos estes anos, ele não duvidava de algo místico. De alguma coisa além do normal estando apossado nele, fora isso, ele não tinha nem certeza que Melissa estava bem. Ela não parecia na melhor das condições quando a deixou em casa. E, somado ao tormento que vivia, ainda havia aquela sensação de estar sendo observado. Como se os grandes olhos flutuassem a sua volta, olhando-o com graça e desdém.
ㅤㅤ Tinha de entender o que estava se passando. Mas agora, só se preocupava em tentar esfriar a mente das visões, das dúvidas, dos sonhos e da insanidade.
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ㅤㅤ Era uma plena segunda-feira de manhã, de modo que Hiroshi pegou um ônibus abarrotado de gente. Mas, conforme o veículo passava pelo centro e pelos pontos próximos às escolas, houve espaço suficiente para Hiro se acomodar num banco e apreciar a paisagem urbana que passava por seus olhos.
ㅤㅤ Achou impressionante como o sul mato-grossense tinha uma tranquilidade para certas coisas. Mal havia começado a semana, e ele encontrara algumas rodas de amigos recém-despertas, sentadas na frente das casas, desfrutando da boa erva-mate gelada, popularmente chamada de Teréré. Apoiou a testa no vidro e deixou que a imagem trocasse diversas vezes na frente de seus olhos. Até que finalmente, sentiu-se cansado demais para qualquer coisa. Um peso desceu sobre sua mente e o forçou a dormir novamente. A entrar no mundo dos pesadelos, no mundo cercado de Olhos Vermelhos.
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ㅤㅤ Tobias enchia a boca com o pão quente que comprara no supermercado Comper, passava manteiga rudemente sobre as bordas, mordendo-a em seguida, e fazendo questão de mastigar com a boca aberta. A outra mão brincava com a pequena lasca de diamante suja e empoleirada, símbolo que pertencia à Liga. Seus olhares, que normalmente estavam voltados para a televisão, estavam fixos no seu discípulo aplicado. Havia poucos segundos, ele havia ligado novamente para um advogado da família. Já tinham sido inúmeras ligações naquela semana, alguns para o advogado dele, e algumas para alguém que Felipe chamava de Risada.
ㅤㅤ Mas agora, o jovem aprendiz de magia negra se encontrava sentado no sofá, com a cabeça pendendo para trás, apoiada no acosto do móvel. Seus olhos novamente brilhavam num vermelho intenso, e um sorriso novo era esboçado nos lábios.
ㅤㅤ – Olá, minha presa. Hora de provocá-los com o que tem a oferecer novamente.
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ㅤㅤ Não! De novo não! Mas o que diabos estava acontecendo com minha mente!? Não conseguia mais compreender nada! Meus pés se moviam sem que eu precisasse fazer muito, eles se afastavam do nada para ir ao nada por puro desespero. Correr no meio daquele deserto sem fim, para onde já tinha ido uma vez. Tudo por causa de uma maldita assombração ou coisa do tipo! Não... Eu não queria vê-las novamente.
ㅤㅤ Ouvi um riso e um sussurro dentro da minha mente, algo como um “Hora de provocá-los... novamente”. Tremi nas bases, era aquela voz que assoprava em seu ouvido e atiçava sua raiva, era aquela presença que o irritava, que o enchia de pavor e rancor. A terra tremeu e um chiado eu pude ouvir a distância. Não... eles estavam vindo novamente...

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ㅤㅤ – Ei! Garoto, acorda!
ㅤㅤ Hiroshi levantou-se de súbito com o cutucão. O cobrador estava de pé ao seu lado, parecia que já estava tentando acordá-lo faz um bom tempo, dado a cara enraivecida que tinha. Mas Hiroshi não adormeceu, tinha certeza de que aquele súbito sono não era algo normal. Afinal de contas, mal fechou os olhos para a realidade e entrou naquele mundo surreal, onde fora novamente torturado e dilacerado pela presença das criaturas macabras. Naquele momento, parecia até mesmo que o cobrador lhe era um salvador, que o tirara das garras do mal.
ㅤㅤ – Já demos duas voltas de rotina. Vamos voltar para a cooperativa agora, guri. Você dormiu o tempo todo, sorte que ficou do lado da catraca, e eu pude cuidar pra que ninguém botasse a mão nos seus bolsos. Até tentei de acordar umas vezes, mas você pareceu ter morrido aí! Desce agora que é o último ponto.
ㅤㅤ Uma fagulha de raiva lhe subiu o peito, aquele velho senhor de pele escura estava o expulsando do ônibus. Aquela raiva anormal, ele começava a notar agora as anomalias que lhe atarracavam desde a aventura com Melissa: Sonhos loucos, Ódio incontrolável e aquela sensação de que alguém o estava espiando a cada passo. Conteve e apagou o fogo de rancor em seu peito e desceu do veículo de cabeça baixa. Demorou alguns segundos até a curiosidade lhe tomar contar, e ele levantar o rosto para ver onde estava.
ㅤㅤ A estrada estava destruída, grandes rachaduras rompiam o cimento, junto das falhas tentativas de tapar alguns dos grandes buracos que se seguiam na pista. A calçada era de terra marrom e ele podia ouvir os gritos aqui e acolá. Acabou parando num bairro pobre de Campo Grande. Um sorriso lhe envolveu a face quando viu os casebres em volta. O prefeito ainda dizia que aquela era uma cidade sem favelas. Ótimo, não haviam favelas, mas a situação continuava precária. O Sorriso esmoreceu segundos depois, quando parou para analisar a própria situação. Estava largado num bairro que, até o momento, nem fazia idéia de qual era. A recepção dos marginais de regiões como aquela com gente de fora – fora o fato de ser nipônico e usar roupas boas – não era das mais apreciadas. Loucura! Tinha que falar com a Melissa logo, perguntar para a desgraçada o que ela tinha feito com ele naquela tarde. Vai ver o fantasma que ela procurava tava estava montado em seus ombros. A raiva tomou conta de sua mente novamente, o deixando isento de raciocinar.
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ㅤㅤ As duas senhoras passaram de cabeça rápida e passos rápidos por ele. Alcides sorriu com a reação delas, aquilo mostrava o quanto já era respeitado pelos arredores do Tiradentes. Também, não era para menos, não passava dos quarenta, e era conhecido como o matador de maior eficiência. Ele tinha prazer na profissão que exercia; sendo contratado por traficantes, ameaçando vidas, extorquindo dinheiro e matando pessoas. Era experiente, não matava com pistola, dava muita trela. O facão que sempre usava era sua companheira fazia mais de dez anos, já tinha passado ela pela garganta de tanta gente que sangue seco já era decoração da lâmina. Por sorte, também, os jornalistas e policiais eram burros ou subornados; só a família dava por falta de um filho ou um marido que não voltou nunca mais. Dias depois, os entes apareciam na televisão, dando-os como desaparecidos.
ㅤㅤ Nunca esperavam que eles já estivessem em cinzas e jogados em algum canto da mata alta, acabavam sendo mal-interpretados. “Fugiu com a vizinha”, falavam uns. “Foi se droga por aí”, falavam outros. Mas mal sabiam que todos tiveram o fim no mesmo facão.
ㅤㅤ Alcides ainda não tinha entendido o porque de ter acordado cedo, talvez fosse por não ter bebido na noite passada, ou por não ter traçado alguma garota charmosa do bairro. Agora estava ele ali, sentado com as pernas esticadas em frente à sua casa. A construção era a maior das quadras ao redor, única com um quintal e sobrado até bem cuidados, embora ainda demonstrando precariedade de cuidados. O movimento era murcho, a maioria das pessoas do bairro tinham ido para o centro, ou seja lá para onde, tirar o ganha-pão. Ficando ali apenas os aposentados, as donas de casa e os vagabundos. Nada muito bom a se apreciar.
ㅤㅤ Já estava para fechar os olhos e tirar um breve cochilo, quando a figura lhe chamou a atenção. Um japonês cruzava a calçada, do outro lado da rua. Em toda a sua vida, Alcides só tinha visto um ou dois nipônicos no bairro, e nunca a pé. O jovem parecia rico, tinha roupas bonitas e falava ao celular, também aparentemente caro. Mas o que mais chamava a atenção nele, exceto o fato de ele simplesmente estar ali, era a feição. Ele esbanjava raiva e indignação a tudo em volta, uma face fechada que fazia as pessoas desviarem dele na rua. Alcides sentiu um calafrio lhe passar pela espinha, a primeira vez em muito tempo. Era... Medo? Impossível. Pousou a mão na cintura, onde estava o facão e agradou saber que estava ali. Hora de brincar.
ㅤㅤ O sono e o tédio haviam partido, levantou-se e cruzou a rua em passos mais que rápidos.
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ㅤㅤ – Mas que porra toda é essa? - Tobias, truco como era, observava abismado àqueles homens parados na frente dos carros estacionados na avenida Calógeras, em pleno horário de pico. Eram três vans, duas brancas e uma preta; e, na frente delas, vários trogloditas e mau-encarados olhando para Felipe. O garoto, por sua vez sorria. Voltou-se para o seu mestre.
ㅤㅤ – Contratei-os. Eu acho que em breve os magos da Liga estarão por aqui. Não quero arriscar nada. Eu sei que eles serão a próxima refeição após a Isca se esvair, mas são perigosos demais para simplesmente ignorarmos a existência deles até chegada a hora.
ㅤㅤ O velho gordo coçou a barriga.
ㅤㅤ – Tu acha que esses palermas seguram aqueles caras? Tá muito louco. Só cara de bandido não faz nada, Guri. Já te falei deles, te falei muito, antes de a gente bolar essa joça toda. Sabe quem são.
ㅤㅤ – As vans estão cheias de munição de alto nível, trazidas do Paraguai. - Ele disse num sussurro para Tobias. - Podem não ser o suficiente, mas vão quebrar um belo galho caso qualquer coisa acontecer. Não concorda com isso?
ㅤㅤ Apertava insistentemente a lasca de diamante no bolso do short velho e abarrotado com a outra mão. Deu alguns passos de um lado para o outro, como se imaginasse as estratégias do menino que ele ensinara. Ali estava a explicação de tantos telefonemas nos últimos dias, antes mesmo de marcada a Isca, a Presa.
ㅤㅤ – Como conseguiu grana pra juntar isso tudo?
ㅤㅤ – Meus pais curiosamente entraram em estado vegetativo durante um passeio. - Ele sorriu, desviando o olhar para a rua que agora borbulhava de carros. - O advogado me ligou, e, como único herdeiro, assumir temporariamente o controle das finanças.
ㅤㅤ Tobias sorriu. Realmente, apenas Felipe servia para ser seu aluno.
ㅤㅤ – Aproveitou do laço espiritual entre você e seus pais para mandar eles pra outro plano, mantendo os corpos. Mas que filho-da-puta você é.
ㅤㅤ – Não tanto. Estão no limbo, perdidos, largados. Melhor que se mandasse-os para o inferno. Aquilo deve estar uma algazarra ainda pior com a liberação da Isca. E, também, não quero assombrações em cima de mim, por causa do destino que dei a eles.
ㅤㅤ O velho se dirigia para dentro da pobre loja de calçados velhos e sentou-se na cadeira de cordas de plástico no fundo, mantinha um sorriso torto e amarelo na face.
ㅤㅤ – Tá ótimo, então, guri. Faz o que tu quiser por enquanto.
ㅤㅤ Felipe avançou no meio dos trogloditas contratados e acomodou-se no passageiro da primeira van. Os homens entraram em seguida, cada um tomando sua posição nos carros alugados.
ㅤㅤ – Vou atrás da Isca, agora. Chega de deixar ela solta por aí. Ele morto agora não ajuda em nada, só vai atrasar nossos planos em alguns meses ou anos. Precisamos agir agora, ou os malditos da Liga podem querer interferir no meio termo.
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ㅤㅤ Azaias já estava naquele estado por mais de meia hora. Seus olhos abertos com as órbitas viradas eram inconstantes, assim como os lábios tremiam enquanto palavras baixas e sem nexo soavam dele. Vez ou outra, soltava um grito ou dois. Gente sensitiva, veria em volta do grande negro, uma aura púrpura tão densa que quase engolia-o por completo. Dimitri dirigia o carro alugado por Vicente antecipadamente. A van estava esperando no pequeno aeroporto de Campo Grande, fora questão de minutos até que ali estivessem. Seguido pelo GPS embutido no carro, Dimitri seguia rumo ao centro da cidade, o Jandaia Hotel marcado num ponto vermelho piscando na pequena tela.
ㅤㅤ O terno negro do mais alto da liga estava impecável, assim como ele permanecia imóvel, deitado na última fileira de bancos da Van. Vicente estava na primeira fileira de bancos, logo atrás do pálido russo, que dirigia. Seus dedos batucavam com cerca velocidade o couro do assento ao lado. Ele parecia o mais tenso, perto da inexpressão normal de Azaias, ou da tranquilidade incrível de Dimitri. Respirou fundo e olhou para trás, Marco mexia no laptop concentrado em algo interessante para ele; ao lado estava o pequeno Romanov, deliciando-se com um suco de caixinha que Dimitri comprara para ele no aeroporto.
ㅤㅤ As batucadas dos dedos aumentaram de ritmo e então pararam subitamente. Vicente deu um tapa no assento e decidiu livrar-se logo de toda aquela tensão. Só tinha de fazer algo, pressentia que precisava agir. Tobias e seu discípulo faziam alguma coisa.
ㅤㅤ Bateu no ombro de Dimitri.
ㅤㅤ – Pare o carro assim que puder, Dimitri. - A fala tragou a atenção de todos na van, exceto de Azaias, ainda em transe.
ㅤㅤ – O que pretende? - Rebateu o motorista.
ㅤㅤ – Eu e Marco vamos ir atrás de Tobias, assim poupamos tempo. Eu sei de um jeito com o qual podemos localizar o velho gordo. Acho que ainda estamos na cola dele. - Vicente olhou para trás, vendo os pés para fora do assento no último banco. - Também tenho total certeza que eles já marcaram a Isca. A Presa. Só esperem a confirmação e as informações que Azaias tenta extrair com os espíritos.
ㅤㅤ A van estacionou num espaço vago na avenida Afonso Pena.
ㅤㅤ – Assim que souberem onde está a Isca, vão até ela. Dêem proteção e vigilância, e tentem fazer algo para retardar o processo de consumo da alma dele; mas, não soltem mais informações do que o necessário. Eu e Marco, assim que acharmos o velho, tentaremos descobrir qual dos dois foi o invocador do rito. Tendo essa certeza, tentaremos um rapto.
ㅤㅤ – Rapto!? - Marco quase deixou seu aparelho cair.
ㅤㅤ – Sim. - Disse olhando o discípulo. E logo em seguida voltando seus olhares para Dimitri, antes observando a inexpressão de seu filho. - Precisamos agir em conjunto, em tempo ágil. Acho que estamos em cima da hora, enrolamos demais para nos reunirmos para vir aqui. Eu vou indo então...
ㅤㅤ Pegou uma maleta prateada grande abaixo do banco, foi em direção a porta de passageiros da van e tentou abri-la. Trancada. Olhou para Dimitri, que lhe devolvia com um olhar um tanto mais sério que o comum.
ㅤㅤ – O que foi?
ㅤㅤ – Vicente, o que descobriu e está escondendo?
ㅤㅤ – Nada, é apenas pressentimento...
ㅤㅤ – Não me engana. Diga logo.
ㅤㅤ O grisalho fitou o descendente de russo por alguns bons segundos, sem alterar a séria expressão que sempre lhe tomava a face. Entretanto, subitamente soltou um suspiro e desviou o olhar, colocando sobre o banco onde estivera sentado.
ㅤㅤ – Invoquei um deles dentro de minha alma, quando cochilava no avião. Ele estava tão cheio de energia e empolgado que quase não consegui contê-lo dentro de mim. Olhos Vermelhos, Dimitri, eles já estão com o rito em andamento. E, presumo, que a Isca já deva estar bem fraca. Chuto que é o discípulo quem está fazendo o rito. Uma vez que, quanto maior a jovialidade e a energia, mais rápido o rito procede. O velho Tobias tem mais experiência, mas o rito demoraria bem mais para ser feito, se ele usasse de seu corpo acabado.
ㅤㅤ Romanov ajeitou-se em seu banco, dando passagem para Marco, que carregava a mochila com seu laptop nas costas. O discípulo parou ao lado do mestre, com as costas encurvadas, e olhou para Dimitri, que parecia processar os fatos.
ㅤㅤ – Precisamos agir, Dimitri. - Vicente finalizou o monólogo.
ㅤㅤ A porta destravou.
ㅤㅤ – Vê se não cai na cilada deles, Vicente. - Disse Dimitri.
ㅤㅤ – Até logo. - Romanov emendou.
ㅤㅤ – Fiquem atentos aos seus celulares, ligarei a qualquer momento para pedir ou mandar informações. Quero terminar isso em menos de dois dias, embora acho que tenhamos menos tempo que isso para nos virarmos.
ㅤㅤ Vicente saiu, carregando a maleta prateada e Marco desceu atrás dele. Olhou uma última vez para Dimitri e acenou com a cabeça, antes de fechar a porta.
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ㅤㅤ Mal se passaram cinco minutos desde que saíra da vaga na Afonso Pena, a voz ecoou vinda do fundo do veículo. Romanov, quase sempre quieto e calmo, aparentemente assustou-se com a voz.
ㅤㅤ – Esqueçam o hotel. Precisamos agir.
ㅤㅤ Azaias levantou-se, passando a mão pelo cabelo raspado.
ㅤㅤ – Onde está Vicente e o garoto dele?
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ㅤㅤ Tentou ligar pela trigésima vez para alguém pelo celular. Aparentemente, estava fora de área, o que contribuía para o rancor do jovem aumentasse ainda mais. Hiroshi virou a esquina, nem observava por onde andava com sua caminhada apressada, talvez estivesse andando em círculos e nem sabia. Estava mergulhado em pensamentos, que vinham um após o outro, sem dar a ele tempo para fazer mais nada direito. Imaginava como sairia dali, por onde começaria a achar a solução para a perturbação que sentia, que tipo de esporro daria em Melissa pelo grande presente que ela lhe dera, que tipo de assombração estava montada em cima dele.
ㅤㅤ Tão compenetrado em suas dúvidas, mescladas à raiva, ele estava, que nem ao menos percebia os gritos do homem que estava quase aos seu calcanhares. Quando finalmente pôde voltar um pouco para a realidade e encarar a sombra que se formava às suas costas, virou-se, dando atenção as berros nada suaves.
ㅤㅤ – Garoto filho-da-puta! Não me ouve não!?
ㅤㅤ A figura de Alcides assustaria qualquer um; era um moreno alto e de musculatura definida, olhos de gente sofrida ele tinha, além das duras feições que lhe esculturavam a face. Entretanto, o medo pareceu minguar dentro dos sentimentos de Hiroshi, só havia espaço para raiva, rancor e ódio.
ㅤㅤ O rapaz observou Alcides de cima abaixo, com desdém, e logo em seguida virou-se, voltando a caminhar, mergulhando nos próprios pensamentos mais uma vez. Estava claramente perturbado. O matador de aluguel sentiu o sangue subir o corpo e sua face esquentou de uma única vez: Ninguém nunca o tratava daquela forma. Segurou o garoto pelo ombro e deu um forte puxão, enquanto a outra mão pousava sobre o facão. Mas não teve tempo de reagir, Hiroshi virou-se, usando da força do próprio Alcidez como impulso e virou com o braço já se projetando para frente. O soco encaixou-se perfeitamente no nariz do matador, que tombou para trás de uma única vez.
ㅤㅤ – Filho da....
ㅤㅤ Agora, ele também parecia mover-se por ódio. A situação invertera-se de um modo completamente inesperado para Alcides; era ele quem devia estar ameaçando, causando dor e medo ao garoto, não o contrário. Pelo único soco bem colocado e doloroso que sentira, definiu que o japonês não era um alguém qualquer, ele sabia lutar e usava disso sem escrúpulo algum. Já estava para se colocar de pé, já com o facão em mãos, quando o chute acertou seu estômago, tirando-lhe o fôlego e o fazendo cair novamente no asfalto de terra.
ㅤㅤ Para Hiroshi, agora estava num mundo completamente surreal. Tudo o que podia ver eram flashes de visões que ele era para estar vendo nitidamente. Novamente perdera o controle do corpo, novamente sentia sua alma definhar e perder a força para assumir o mundo material. Mas o que mais o assustava era o pouco que enxergava. Via-se batendo num mulato grande e parrudo, de relance, pudera ver que carregava uma arma, algum tipo de faca. Hiroshi nunca reagiria assim, o Karate lhe ensinara a saber quando reagir: Apenas em situações de extremo risco. Ele poderia ter fugido do grandalhão, claramente era mais leve e rápido que o gigante, mas lá estava, montado sobre o corpo pesado dele, o contendo e enchendo o maluco de golpes atrás de golpes.
ㅤㅤ Alcides urrava de raiva, seus olhos percorriam rapidamente o que acontecia a volta. E podia ver a face de donas-de-casa assustadas com a posição humilhante na qual o maior matador das redondezas se encontrava. E realmente, sentia-se humilhado. Queria esmigalhar o japonês ninja que achara, mas o peso dos joelhos dele estavam caídos sobre seus braços, e o corpo dele pressionava o do mulato, o impedindo de fazer mutia coisa senão levar golpe atrás de golpe. Seu rosto já sangrava aos montes e o nariz estava quebrado, imaginava até se algum dente tinha saído do lugar. Pelo menos, o nipônico não estava ileso. Hiroshi sangrava no braço e na perna com dois grandes cortes do facão de Alcides, além de vários pequenos arranhões e cortes num pequeno combate antes de domá-lo. O assassino entendeu que estava naquela posição pela sua própria burrice, por ter subestimado e ter feito graça do moleque sem ter se precavido. Em situações normais, já teria desmembrado o rapaz e enterrado cada parte dele em lugares separados.
ㅤㅤ Mas, mesmo tentando sobrepor a lógica por cima da humilhação que sentia, ele ainda tinha de confessar uma única coisa: A feição do moleque não era normal. Os olhos dele expressavam pura raiva e ódio, como se ele nunca tivesse amado nada em sua curta vida. E Alcides conhecia olhos de rancor, ele mesmo tinha os dele; mas nada eram perto da raiva contida no garoto, em cada soco que ele disparava.
ㅤㅤ Apagou aqueles pensamentos, não era hora de filosofar sobre os pesadelos da vida. Mexeu as mãos dormentes pela falta de sangue bloqueada pelos joelhos pesados de Hiroshi, o facão não estava mais ali. Contudo, ainda tinha seu último recurso, ainda podia pegar o coldre da pistola enganchada no seu short, na parte de trás. Só uma bobeira de Hiroshi, e fim de jogo. Até lá, ficava resistindo aos golpes dele. Parecia que, quanto mais raiva ele continha, menor era a técnica nos socos. Os primeiros eram raivosos e precisos, socos de artistas marciais, mas agora, socava pior que os moleques de rua, só se aproveitando dos músculos dos braços. Sentiu o joelho esquerdo do garoto levantar-se um pouco, num ato de fúria para um soco que o pegou na têmpora, aquela tinha era sua chance.
ㅤㅤ Puxou com tudo seu braço e deixou o garoto desequilibrar-se em cima de seu corpo. Tempo suficiente para puxar agora o outro braço e ver-se livre do moleque montado em seu peito. Fechou os punhos e desferiu dois potentes socos contra ele, fazendo Hiroshi cair para trás e rolar no chão, ralando braços e pernas. Alcides levantou-se com velocidade, já puxando a pistola do coldre e apontando para o nipônico. Os olhos arregalaram-se quando viram que ele já não estava onde tinha caído. Ouviu um barulho na esquerda, virou-se apontando a arma, mas não houve tempo. Hiroshi salto para cima dele, afundando o facão no peito de Alcides, que disparou as armas para pontos desconexos do céu. Sentiu o corpo perder a força, ao mesmo tempo que uma dor que nunca antes sentira assomava seu corpo. Estava morrendo.
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ㅤㅤ A clareza começou a voltar à mente de Hiroshi. Via-se caído sentado sobre o peitoral de um homem gigantesco, fitou o rosto do homem com calma, enquanto seu próprio peito arfava loucamente. Começou a recordar-se das visões que estava tendo no seu momento de fúria, aquele era o mulato contra quem lutava. Levantou as mãos, colocando-as em seu campo de visão. Estavam empapadas de sangue. Sangue que não era dele. Mais uma vez, um cansaço descomunal tomou-lhe a mente. O sono terrível que o levaria para o terror do deserto dos demônios. Seu corpo bambeou de um lado para o outro; até cair, cansado e sem os sentidos na terra da calçada.
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ㅤㅤ A moto já tinha ido para a oficina por causa de um problema no motor. Mas não havia do que Carlos reclamar, afinal, pagara uma pechincha no veículo. A tarde de segunda sempre era agradável para ele, um dia de descanso após a loucura de três dias trabalhando incessante na Feira Central. E, naquela tarde em especial, lá estava ele, andando com sua moto recém-adquirida. Deixava o vento passar no rosto, deixando a sensação de frescor levar embora os minutos gastos no pequeno passeio pelo bairro. Alguns conhecidos gritavam ao longe, acenando para ele e dando-lhes os parabéns pela nova moto; pessoas queridas, amigos de infância com quem vivera muitas das loucuras que os moleques daquela classe social aprontavam.
ㅤㅤ Virou a esquina, para voltar para casa. Em breve, o almoço já estaria na mesa. Passou de relance por uma ruela aonde não entrava muito e viu, ao longe, algumas pessoas aos berros e outras correndo em direção a um mesmo ponto na calçada, no meio da quadra. Movido pela pura curiosidade, virou na ruela e aproximou-se diminuindo a velocidade. Pôde distinguir dois corpos caídos no chão. Um sobre o outro. O de baixo, parecia ter uma faca enfiada no peito e criava uma grande poça de sangue abaixo dele, enquanto o de cima, mais peculiar ainda, tinha pele branca e não parecia nem de longe daquelas redondezas. Desceu da moto e abriu caminho pelo pouco de gente que crescia a cada novo berro dado. Estacou imóvel e sem reação ao ver o rapaz ali. O grande mulato caído era o Alcidão, matador de aluguel temido na região, morto pelo próprio facão que usava como ferramenta de trabalho. Entretanto, não era nem o velho alcides que lhe chamava a atenção. O pior, era aquele que estava desacordado acima dele. O que diabos Hiroshi, o filho do patrão e amigo de conversas rápidas, fazia ali!?
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sábado, 28 de agosto de 2010

Olhos Vermelhos - Capítulo 8



ㅤㅤ VIII
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ㅤㅤ De alguma forma, Hiroshi sabia que estava sonhando. Que aquilo não era a mais pura realidade. A temperatura ali parecia ser muito alta, cinquenta graus, talvez mais. Nunca tinha provado de tanto calor antes. Seus olhos abriram-se lentamente, tentando definir formas e ganhar foco, sentou-se e coçou-os com força. Só conseguiu voltar a enxergar alguns segundos depois, quando já se colocava de pé. E quando finalmente pôde observar a paisagem, o nipônico se arrependeu da pressa que teve.
ㅤㅤ Estava no meio de um grande desertor, ou algo do tipo. O chão mesclava areia negra e areia branca, fazendo do chão um mosaico surreal. No céu não havia sol, entretanto, um brilho vermelho-sangue trespassava as nuvens negras que acobertavam tudo acima do horizonte. No solo, Hiroshi podia ver algumas poucas árvores dispersas aqui e acolá, mas nenhuma tinha sequer uma folha. Estavam secas e retorcidas. Limpou o suor da testa e começou a caminhar. Aquilo só podia ser um sonho, mas estava tão real que não parecia ser um.
ㅤㅤ Minutos, horas, segundos; Hiroshi já não sabia definir exatamente por quanto tempo caminhava, a infinidade de areia parecia brincar com com ele, deixando-o caminhar à deriva, sem esgotar suas energias, mas cansando seu psicológico. Depois de muito tempo – ou, o que supôs Hiroshi – ele finalmente perdeu a força de vontade de continuar seguindo. As pernas bambearam e falharam, deixando os joelhos tombarem ao chão, seguidos do resto do corpo. As roupas estavam encharcadas de suor, e ele podia sentir a areia pinicar a pele conforme seu corpo chafurdava mais e mais no solo. Começou a bolar com mais calma as hipóteses de como estar ali.
ㅤㅤ Centenas delas surgiram, algumas completamente malucas, e outras com um pouco mais de nexo. Mas nenhuma era tão convincente quanto a de que estava sonhando. Seus pensamentos iam e vinham, Hiroshi tentando sempre inventar uma nova teoria sobre como chegara ali. Perdeu mais uma eternidade toda perdida no mundo de sua cabeça, só foi puxado de volta para a realidade com um leve ruído. Parecia com um chiado. Um chiado que vinha de longe e de todas as direções. Levantou a cabeça e direcionou seu olhar para todos os lados, o som parecia aumentar, mas nada aparecia.
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ㅤㅤ Agora, o chiado parecia mais com uma gigantesca televisão com caixas de som grotescas, colocadas sem sinal perto do seu ouvido. O barulho era tão alto que quase não sobrava espaço para ouvir os próprios pensamentos, que segundos antes eram tão claros. Fechou as mãos em volta dos ouvidos e encolheu-se na areia em posição fetal, comprimindo também a boca e os olhos, como se isso ajudasse a anular o som. Não demorou mais alguns segundos para o solo começar a tremer. No começo, algo fraco e quase imperceptível, mas que em curto espaço de tempo, cresceu a ponto de parecer um terremoto de larga escala.
ㅤㅤ Hiroshi abriu os olhos para ver se agora tinha algum sinal de mudança no cenário. Assim que conseguiu definir sua visão, ele perdeu o fôlego. Ficou olhando, atônito, para aquela onda negra terrível. Uma gigantesca nuvem vinha por todas as direções, tampando o céu e colocando no lugar dele, milhares e milhares de pares de olhos vermelhos. Cada qual pertencente a um pequeno diabrete, demônio, ou seja lá o que era aquilo. Tinham o tamanho de cachorros de médio porte, formato de morcegos, olhos chamejantes e garras prateadas que refletiam o brilho do olhar. Mas, a pior observação que o japonês teve, é que todos eles se focavam num único centro: Ele.
ㅤㅤ Não havia nem ao menos para onde fugir. Para todos os lados, via a nuvem negro-avermelhada acobertar o céu. Encolheu-se na areia e pôs as mãos em volta da cabeça. Agora o som era ensurdecedor, Hiroshi não conseguia pensar em mais nada, só tinha medo, temia pela própria vida. Seja lá o que fosse aquilo, só estava piorando. Os demônios agora começavam a voar em círculos a sua volta, eram milhares, de modo que ele se sentia no centro de um tornado assassino, mas nenhum ousava atacar. Os grunhidos que eles soltavam pareciam expressar desdenho e graça de seu medo. Como se, caso ficassem voando ali por horas, Hiroshi ficasse gritando feito uma menininha para eles. Ele até poderia mudar de atitude, futuramente, mas agora estava preocupado demais com a própria segurança, encolhido próximo a areia.
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ㅤㅤ E foi então que, sobreposta a toda aquela algazarra, Hiroshi ouviu a voz maníaca e sácida na sua mente. Risadas, alguém ria de seu medo, alguém achava graça do modo como agia. Não era como aqueles demônios, era algo ainda pior. Sentia a voz soar dentro da própria cabeça, e podia vê-la em partes. Um par de olhos em brasa engolia sua mente de dentro para fora. Abriu os olhos para o terror a sua volta, os demônios, todos, de uma vez, investiram contra ele.
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ㅤㅤ – HAAAAAAAH! - O nipônico gritou, imediatamente caindo da cama. A camiseta estava encarda de suor e o peito subia e descia desregulado. Que maldito pesadelo era aquele!? Seus olhos e sua mente estavam ativos, não aparentava ter dormido, apenas aparentava ter piscado os olhos, e agora estava de volta ao seu quarto. Estabilizou a respiração, e logo depois passou a mão na testa, limpando o suor que também o enchia ali. Levantou-se do chão, precisava tomar algo antes de voltar a dormir, tirou a poeira das pernas e já ia rumar na direção da porta quando os olhos fixaram-se na janela. Ali, do outro lado do vidro, postava-se mais dois pontos brilhantes, um diabrete arranhava o vidro freneticamente, tentando adentrar o quarto.
ㅤㅤ As garras, o olhar, a pelagem, a forma; tudo era idêntico, aquilo era uma das feras que o atazanara no sonho. Mas agora, aquilo era real. Ou aparentava ser bem mais real que o sonho. Perdeu tanto tempo olhando abobado para a janela que a criatura teve finalmente a força necessária. Arremessou as garras contra o vidro e rachou-o, formando um mosaico tendo como centro o local do golpe, em seguida jogou seu corpo contra a barreira. O demônio caiu sobre os cacos de vidros, no chão do quarto de Hiroshi, que instintivamente afastou-se na direção da porta, sem desviar o olhar da criatura. Ela levou alguns segundos para se levantar, atordoada pelo golpe, e depois, virou-se na direção do nipônico. Esboçou um sorriso grotesco e avançou na direção dele com um salto. Hiroshi interceptou a criatura em pleno vôo, um chute bem dado trespassou o monstro e o transformou numa nuvem negra que desapareceu um segundo depois. Nunca pensava que poderia usar seu Karatê contra algo que não fosse humano.
ㅤㅤ Ficou olhando, abobado, para o nada, exatamente onde o diabrete estava. Tão fácil? Não poderia ser. Tinha de fazer alguma coisa, contar para alguém. Pensou nos seus pais, dormindo no quarto abaixo. Mas descartou a idéia de imediato, queriam ele, não valeria a pena arriscar entes queridos. As idéias sumiram quando ouviu grunhidos e sentiu um golpe trompar-se na porta do quarto. Estaria encurralado se ficasse ali.
ㅤㅤ – Certo... Hora de retribuir ao sono perdido. - Comentou para si mesmo. Abriu a porta de uma vez, fazendo com que dois diabretes tombassem juntos aos seus pés. De uma única vez, deixou seu corpo cair sobre eles, e mais dois se tornaram nuvens negras. Saiu para o corredor e perdeu o fôlego com a visão. Aparentemente, aquelas criaturas só tinham fraquezas a golpes originados dele, afinal de contas, elas haviam destruído grande parte dos móveis, janelas e tablados do segundo andar. Não tardaria muito para seus pais subirem as escadas e derem de cara com os bichanos.
ㅤㅤ Tomou fôlego, era quase um ato suicida, mas a única idéia que estava tendo. Avançou contra a horda de figuras negras, desferindo socos, pontapés e trombões à torto e à direito. Uma a um, eles foram desaparecendo. Sentiu cortes se formarem por todo o corpo, as garras e presas das criaturas se fincando e relando em sua pele, abrindo sangramentos aqui e acolá, mas mesmos assim, estava na vantagem. Ganhava das criaturas.
ㅤㅤ A última delas se tornou um vulto negro e dissipou-se em seguida. Hiroshi tombou, arfante, no canto do corredor. Já haviam se passado alguns minutos, mas os pais não vieram até ele. Onde estariam eles? Estava cansado demais para continuar, os cortes ardendo no corpo inteiro. Olhou para o corredor todo destruído, soltou um suspiro desconsolado. Aquele tipo de coisa estranha nunca aconteceu com ele, sempre com Melissa. Por que logo agora ele era avítima? E de algo tão monstruoso quanto aquelas criaturas? Fechou a boca e se arrependeu do que dissera, melhor ele do que Melissa. Os olhos arregalados procuravam um culpado, mas não achavam nenhum.
ㅤㅤ Um formigamento lhe subiu pela mão, e ele olhou para o corte nela. Aquele não fora provocado pelos diabretes. Era aquele corte que fez no fim da tarde, quando devia estar protegendo Melissa. Quase sem que ele mesmo notasse, começou a associar um fato com o outro. Sentia do fundo da alma que tudo aquilo estava interligado. E que coisas ainda piores estavam a vir. Mas, naquele momento, estava cansado demais para fazer qualquer coisa. Fechou os olhos, tinha de descansar.
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Olhos Vermelhos - Capítulo 7


ㅤㅤ VII
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ㅤㅤ – Vamos, Dimitri, o que custa falar? - Insistiu Marco.
ㅤㅤ – Ora, mas esse moleque não recebeu educação? - O albino, claramente irritado, virou-se para o mestre do jovem. - Você bem que poderia dizer para ele que, quando uma pessoa não quer dizer algo, não se deve ficar pedindo tanto.
ㅤㅤ Vicente limitou-se a abrir um sorriso com os atos de seu pupilo. A viagem até Campo Grande duraria mais três horas, considerando que ainda tinham de pousar em Curitiba, para pegar alguns itens que estavam guardados num banco da cidade. Dimitri teria de ceder, ou a falação continuaria. Estavam num luxuoso jato particular, contratado por Vicente para levá-los, não havia como fugir das constantes perguntas.
ㅤㅤ – Não é nada de mais, Dimitri. Só estou perguntando porque mora com um casarão daqueles, dentro de uma favela. É muito estranho, não tem nexo, sabe?
ㅤㅤ – É um filtro. - Finalmente confessou o russo.
ㅤㅤ – Filtro?
ㅤㅤ – Exato. Para que meus clientes me procurem, eles precisam realmente estar interessados em meus serviços. Não posso aceitar qualquer trabalho, ou minha... Reputação cai. A Favela funciona como um filtro, afinal de contas, os moradores dizem que rico que sobe o morro geralmente nunca mais desce. É só um capricho meu, que acaba por selecionar melhor aqueles que me contratam.
ㅤㅤ – Hah. Entendi.
ㅤㅤ – Certo, Marco. Venha aqui agora. Chega de importunar o Dimitri. - A voz de Dimitri soou, no assento da frente.
ㅤㅤ – Importunar? Ora, nem é para tanto...
ㅤㅤ – Venha logo, Marco.
ㅤㅤ – Tá certo, Chefia. Tá certo.
ㅤㅤ E, relutante, o discípulo hacker voltava ao seu lugar. Dimitri suspirou aliviado, levando os olhos para o resto do avião. Azaias continuava sentado na cadeira mais a frente, um gigante negro montado num terno de mesma cor, ele continuava o mesmo desde que Dimitri o conhecera, tantos anos antes. Virou-se para o lado e viu seu filho sentar-se no assento ao seu lado.
ㅤㅤ – Papai. - O garoto disse, na voz baixa e suave. - Porque ele é... assim?
ㅤㅤ – Relaxe, Romanov. É apenas uma característica marcante da Liga dos Diamantes. Quase todo discípulo tem características marcantes, ligadas à magia que praticam e aos próprios mestres. Quando Vicente era jovem, ele era muito parecido com Marco. Mas agora, parece que se acalmou um pouco, como se os anos lhe tirassem o aparente vigor. Eu também... Era muito parecido com você, em sua idade. E meu pai, semelhante ao que sou agora.
ㅤㅤ – O vovô era um bom mago?
ㅤㅤ – Sim. Eu acho que já lhe contei: Ninguém sabe exatamente quando nossa linhagem adentrou a liga. Mas desde que nós começamos a praticar a magia, nos saímos muito bem em nossos papéis.
ㅤㅤ – Hm... - Romanov concordou com a cabeça. E pareceu pensar, por alguns segundos, antes de voltar seu olhar ao mestre. - O que exatamente é Olhos Vermelhos?
ㅤㅤ A feição no rosto do tranquilo Dimitri desfez numa cara com um semblante um pouco mais sério. Olhou para Vicente, que o observava atentamente no banco da frente, e aguardou até que o amigo lhe confirmasse com a cabeça. Assim que recebeu a resposta positiva, voltou-se ao filho.
ㅤㅤ – Veja bem, nós somos especialistas em conexões de almas. O Azaias, ali, é mestre em invocar e conversar com espíritos, foi graças a um desses que descobrimos sobre os planos de Tobias, alias. O Vicente e Marco sabem... - Vicente balançou a cabeça negativamente. - Bem, eles são peritos em invocações. Agora, tendo essas exemplificações, você imagina no que Tobias e seu novo discípulo são mestrados?
ㅤㅤ – Não...
ㅤㅤ – Tobias tem a capacidade de abrir portais entre os planos. Terra, Limbo, Inferno, Paraíso. A magia do velho gordo é poderosa. - Dimitri afagou os cabelos claros do filho. - Será que agora, você consegue entender o significado de Olhos Vermelhos?
ㅤㅤ Romanov esboçou um curto sorriso e meneou a cabeça.
ㅤㅤ – Um filho esperto você tem, Dimitri. - A voz grave e seca de Azaias surgiu, como se ecoada por todos os lados. O albino virou o rosto na direção do negro e sorriu.
ㅤㅤ – É, eu sei.
ㅤㅤ
ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
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ㅤㅤ Amaro saltou na cama, a respiração desregulada e o corpo molhado de suor mostrava o quanto ele estava assustado. Ele tinha aqueles sonhos ruins com frequencia, mas o que eram aqueles últimos? Que loucura era aquela que ele estava presenciando? Algo de muito perigoso estava acontecendo por perto, e ele sentia isso todas as noites. Pôs os pés no chão e levantou-se da cama, tomando cuidado para não acordar sua filha Luana, que dividia o pequeno quarto com ele. Ligou a luz da sala onde recebia seus clientes e passou para a cozinha, precisava tomar um copo de água. Olhou, triste, para sua casa durante a pequena caminhada. Ele precisava de dinheiro, precisava dar uma vida um pouco melhor para sua filha que já estava se tornando uma moça. Precisava dar a ela uma vida longe daquele no qual vivia. Observou a sala de visitas. A mesa circular ao centro, com algumas cartas amarrotadas e suja sobre o pano azul. Alguns lençóis de cores escuras davam ao local um ar mais misterioso para para o cômodo. Amaro, o Enigma. Era assim que ganhava o pouco que o sustentava. Tão pouco que nem comprara ainda a tinta para apagar as pixações na frente da casa que o chamavam de “Charlatão Farsante”.
ㅤㅤ Mas não era farsante! Realmente sentia coisas estranhas. Tinha visões no meio da noite e ouvia sussurros que ninguém mais ouvia. Por uma grande pena, era apenas a sua filha e mais alguns poucos daquele bairro pobre que acreditavam nele. Era exatamente por isso que orava todos os dias para que sua pequena Luana não herdasse seus dons, que tivesse uma vida normal e promissora sua filha. Ou nem mesmo um amor ela teria, a própria mãe de Luana deixara Amaro por causa de sua inconstância financeira e psicológica. Bebeu toda a sua água e voltou à cozinha, para deixar o copo de barro sobre a pia. Voltou-se para a sala e sorriu, pensava como seria sua vida, caso as pessoas acreditassem no que ele podia fazer, em como ele sentia as coisas.
ㅤㅤ Voltou à cama e tentou esquecer daquelas visões horríveis que estava tendo. Flashes de cenas horripilantes; olhos vermelhos, um japonês desesperado, gritos, tiros. Eram tantas e tão distorcidas que Amaro não tinha certeza de nada. Mas, mesmo não querendo aceitar, ele sabia que teria um papel naquilo tudo. Fechou os olhos e relaxou, teria um dia cheio de trabalhos temporários no dia seguinte, precisava ganhar dinheiro para sustentar sua filha.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Luana, calada, assistia o tormento do pai. Mal sabia ele que ela já tinha as mesmas visões. Tinha as mesmas aptidões sensitivas do pai. Estava com o destino entrelaçado com os diversos fatos macabros e tenebrosos que viriam a acontecer.
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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
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ㅤㅤ Os risos sádicos e frenéticos ocupavam toda a casa suja, fazendo até mesmo o velho Tobias despertar de seu sono profundo. O mago barrigudo caminhou até a sala, onde o aprendiz dormia quase sempre, e o encontrou ali, sentado na mobília antiga. Os cotovelos estavam apoiados nos joelhos, e a face deitada sobre as mãos; seu corpo chacoalhava freneticamente com cada risada grotesca que soltava. Tobias demorou alguns segundos até entender o que acontecia. Finalmente, sentou-se em sua poltrona e ficou observando o garoto, agora também tinha o mestre um sorriso na face enquanto seu pupilo fazia a continuação do rito de magia.
ㅤㅤ Felipe levantou o rosto do apoio das mãos, mostrando sua face louca. Seu sorriso parecia disforme e maior que o normal, para sua face. E suas órbitas agora brilhavam num vermelho forte, olhos de demônio.
ㅤㅤ – Pobre coitado... Sofre com os sonhos, não é mesmo!? - O discípulo de Tobias dizia, entre suas gargalhadas maquiavélicas. - Isso... Sofra! Grite!
ㅤㅤ E continuava a rir.
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quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Olhos Vermelhos - Capítulo 6



ㅤㅤ VI
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ㅤㅤ Melissa e Hiroshi se sentaram no degrau que separava o corredor do grande playground do clube Okinawa, onde o grupo de taiko Eisá tocava. Tarde tranquila de domingo. As batidas soavam altas dos tambores okinawanos dos dançarinos jovens e vigorosos. O grupo Kariyushi – cujo nome significa Felicidade, no dialeto okinawano – já estava ativo por alguns vários anos, nos quais os dois observadores também já tinham treinado e apresentado. Reconheceram entre os instrutores, vários antigos amigos, que foram devidamente cumprimentados com acenos de mão ou coisas do tipo.
ㅤㅤ Os tocadores dançavam ao som do Sanshin, delimitando tempos e ritmos com batidas vigorosas em seus tambores. Sejam eles os grandes oodaikos, ou os pequenos parankuns.
ㅤㅤ – Já ouviu falar de como o surgiu o Eisá, né, Hiro?
ㅤㅤ – Eu já li em algum lugar. E lembro de alguém ter me contado logo que entrei no grupo. Mas agora, não lembro ao certo.
ㅤㅤ Melissa desviou o olhar de uma fileira de tocadores de Oodaiko que treinavam sincronia. Tocavam kudaka bushi uma das tradicioanis, que exigia certa resistência e gritos altos e graves cortando a música.
ㅤㅤ – Dizem que o princípio do Eisá foi um grupo que dançava e tocava para dar repouso e tranquilidade aos mortos. - Ela virou-se novamente para os jovens. - Quando eles tocam, Hiro, e também quando eu tocava, eu nunca vi ou senti nada anormal aqui no clube. É como se isso acalmasse as almas. Não sei...
ㅤㅤ – Hm... - Hiroshi nunca havia pensado naquilo.
ㅤㅤ A tarde ia com rapidez, naquela calmaria de apenas observar os tocadores. Os dois haviam marcado de se encontrarem ali, para depois voltarem à estação para encarar os problemas. Melissa sentia-se segura ao lado do amigo, ele era o único que nunca caçoava de sua sensibilidade aguçada. Passaram alguns segundos mais observando o grupo, até finalmente Hiro se levantar.
ㅤㅤ – Bom, acho que precisamos ir logo, Lissa. Já vai escurecer, e, eu não gostaria de encarar a aquele breu abandonado de noite.
ㅤㅤ – Hm. Tudo bem. É só a gente se dar um tchau pro pessoal que já podemos ir.
ㅤㅤ A menina foi até os velhos amigos e companheiras para despedir-se, enquanto Hiro apenas acenava de longe. Alguns ali haviam treinado karate com ele também, culturas interligadas por uma mesma ilha. Lembrou-se mais uma vez dos ensinamentos da arte marcial. Lembrou-se do seu Sensei lhe dizendo que Karate não era um esporte, que era uma filosofia de vida. E aquilo não deixava de ser verdade. A disciplina que arte havia lhe dado, o inspirara de bom caráter e bondade. Fato que talvez explicasse sua compreensão dos problemas, tanto de Melissa, quanto de vários outros amigos. Desceram as escadas em passos lentos e saíram pelo portão automático com a mesma pouca pressa, e logo entraram na caminhonete do rapaz. O motor ligou e ele saíram. A calmaria antes da tempestade havia acabado, agora era hora de solucionar problemas com almas largadas no mundo. Ligou o som, Nada Sou Sou, outra música de Okinawa tocou, deixando o clima nipônico ainda presente no ar.
ㅤㅤ
ㅤㅤ A Estação estava exatamente do mesmo modo que antes. Hiroshi olhou para os lados, como se pudesse encontrar um fantasma saindo do local a qualquer instante. Melissa suspirou.
ㅤㅤ – Estranho...
ㅤㅤ – Que foi, Lissa?
ㅤㅤ – Geralmente, quando eu passava logo na entrada. Ele já se manifestava. Já me chamava feito louco. Mas agora... - E olhou para os lados. - Agora, não ouço. Só a estranha sensação de antes.
ㅤㅤ Hiroshi avançou um passo em direção à vidraça quebrada da entrada. Logo estava no topo, rente à porta dupla enferrujada.
ㅤㅤ – Só descobriremos entrando, né? Vamos logo acabar com isso.
ㅤㅤ Empurrou com força a porta, imaginou que estivesse trancada e tivesse de arrombar, mas para sua surpresa, estava aberta. De modo que o empurrão foi necessário apenas para que a velha porta não emperrasse. Uma pequena camada de poeira levantou-se do chão pela entrada de ar aberta, e o rapaz entrou no local, seguido de perto pela amiga. Hiroshi olhou em volta, sentindo uma estranha sensação tomar conta de seu corpo mais uma vez, assim como no dia em que o espírito o prendera no depósito debaixo do palco, só que pior.
ㅤㅤ A pequena recepção da estação ferroviária não era nada agradável. Móveis velhos mesclavam-se à alguns itens mais novos, colocados ali pela Polícia Militar que ali se instalara alguns anos antes. Uma larga porta de madeira estava do lado oposto à entrada, indicando por onde os passageiros entravam e saiam, décadas antes. Mas o que mais chamava a atenção dos dois eram os dois corredores laterais do local. Melissa, que até aquele momento não tinha sentido a presença sobrenatural no lugar, finalmente sentiu um frio percorrer sua espinha. Ele ainda estava ali, no fim das contas. Seus passos ecoaram pelo corredor estreito que levava à pequenas portas infestadas de mofo. O lugar parecia não receber iluminação devida há tempos. Sua concentração estava completamente voltada para a estranha sensação que dominava seu corpo a cada centímetro que avançava pelo corredor, era sempre assim que acontecia. Algo inexplicável para quem não tinha o dom, para quem não tinha a sensibilidade. Assemelha-se muito com as intuições e presságios, mas, impunham um tom de certeza tão grande nos dotados que não permitiam falhas.
ㅤㅤ Melissa, a mestiça nipônica, parou na frente de uma porta. Olhou-a severamente. Era dali que vinha a aura, aquela sensação de desespero misturada com raiva do espírito que se comunicara com ela. E, agora, aquele destroçado espírito parecia encontrar-se mais agressivo que o normal, algo pesado a rodeava, martelava sua consciência. Se pegou cantando aos murmúrios uma das tradicionais músicas de sua ilha.
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ㅤㅤ Eu senti! Finalmente eu sentia! Acho que, depois que voltei a este mundo, aquela fora uma das únicas vezes que realmente me considerava feliz. O lacre fora quebrado, e com ele, todas minhas memórias, e grande parte da força que minha alma perdera voltava para dentro de mim. Como um turbilhão; eu me vi enfurnado em meu quarto, estudando horas e horas sobre ocultismo e outras ramificações de magia negra; eu me vi descrevendo e discutindo no grande chat Olhos Vermelhos, sobre tantas anomalias que o mundo registrava; assim como eu me vi ali, naquela cidade, procurando por Tobias. Minhas visões, que pareciam durar uma eternidade, passaram por mim revelando-me toda a intriga e mistério que circundavam minha morte naquele plano.
ㅤㅤ Mas, mesmo assim tão alterado. Eu não poderia esquecer, hah, não poderia. As duas figuras que entravam no meu local pagariam caro, elas eram atingíveis, diferente daquela outra estranha presença que habitava o local desde que eu estava mais acordado. Das duas, uma eu desconhecia, alma de caráter forte. Mas a outra, eu já havia encontrado tantas vezes, que seria impossível me esquecer. Era a silhueta negra que me ouvia, aquela que se focava em mim enquanto eu despejava minhas súplicas por ajuda, naquele últimos dias que eu estranhamente me sentia tão mais desperto. Tão mais forte. Mas ela não tinha feito nada, o que queria agora!? Não importava! Naquele momento, eu só queria me vingar. Primeiro ela. Depois, Tobias. Eles iriam conhecer toda a loucura de Macedo!

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ㅤㅤ Fez força para que a porta emperrada se movesse, seu esforço foi gratificado com um pequeno vão, o suficiente para seu corpo magro passar. A porta não mais ia, aparentemente, haviam tralhas atrás dela. A mestiça tomou fôlego, como que pudesse ajuntar coragem junto, e adentrou pela abertura estreita. Era um pequeno depósito, com as janelas do fundo bloqueadas por madeiras e papelão muito mal encaixadas, que deixavam apenas poucos fachos de luz daquele fim de tarde adentrar o lugar. Demorou alguns segundos para se acostumar com a penumbra que reinava ali, enxergava, em volta, caixas velhas de madeira com aparelhos antigos. Pôde achar ali uma máquina de datilografia, algumas pequenas caixas contendo tinta preta e seca, garrafas vazias e grandes postes de ferro acomodadas entre entulhos que mesclavam madeira, poeira e metal.
ㅤㅤ Mas nada daquilo a interessou tanto como o que palpitava dentro de seu coração. Ele batia acelerado no peito dela, sabia que o espírito estava ali, a poucos metros dela. Sabia que ele cruzava seu corpo. A alma penada não mais se comunicava, Melissa só ouvia leves gemidos aqui e acolá, e virava-se para encontrá-lo. Mas nada via, além de pequenos vultos em canto dos olhos. Mesmo sensitiva como era, de nada adiantava, caso o espírito não quisesse ser visto.
ㅤㅤ – Vim aqui para falar com você... - Disse ela, quase num sussurro.
ㅤㅤ A resposta veio agressiva, um baque forte às suas costas ressoou, e Melissa virou-se para ver que a porta havia se fechado, prendendo-a ali dentro. A montanha de coisas inúteis e velhas tinha caído sobre a porta, obstruindo a única saída do pequeno e abarrotado armazém. Ela sentiu as pernas falharem de medo, sabia que não tinha sido mera coincidência.
ㅤㅤ – Ei, o que foi? Quero saber dos seus problemas, não era isso que tinha me pedido? - E olhou para outro lado, sentindo a presença mudar de posição. - Não foi você que implorou por minha ajuda? Por que está tentando se afastar logo agora? Isso.... Você não era assim.
ㅤㅤ Uma das madeiras que bloqueava a janela quebrou-se repentinamente, como se um chute invisível o arrebentasse de fora para dentro, fazendo estilhaços voarem sobre a menina, que abaixou-se com um grito. Pôs os braços acima da cabeça, protegendo-se das farpas e pedaços maiores de madeira podre.
ㅤㅤ – Abandonado.... - Finalmente a menina escutou. - Fui abandonado!
ㅤㅤ A voz, que antes não passavam de súplicas agudas e chorosas, agora estava forte e grave. Um rangido alto fez-se atrás de Melissa, e ela olhou para encarar as barras de ferro pesadas, perigosamente cedendo a fragilidade das caixas que os sustentavam. Ela tremia de leve, sentia a fúria do espírito dentro da saleta.
ㅤㅤ – Não! Eu estou aqui! Pra te escutar! Pra tirar você daqui!
ㅤㅤ Ela sentiu o peso em sua consciência diminuir.
ㅤㅤ – Para que outro motivo viria aqui? Pense! Sou a única que te escutou... que te deu ouvidos quando todos te ignoravam. Não é assim que você deveria me tratar, droga!
ㅤㅤ Melissa disse em tom raivoso, deixando algumas lágrimas de medo escaparem de seus olhos puxados. O espírito estava cedendo, as barras de ferro atrás dela, permaneceram paradas desde que voltara a falar.
ㅤㅤ – Isso... Me entende, não é? Vamos tirar você daqui...
ㅤㅤ – Me livrar, desta prisão? - Macedo perguntou, agora num sussurro a ela. Vai mesmo me tirar daqui, não é, menina?
ㅤㅤ – Vou. Vou... Agora, vamos, me ajuda a te compreender. - Ela começava a recuperar a calma e a razão, quando lembrou-se de uma coisa importante: Onde estava Hiroshi? Ele provavelmente estaria aos berros do outro lado da porta, mas ela agora só escutava e sentia o movimento da alma penada. Aquilo sim era realmente estranho. Já ia levantar-se e perguntar do amigo para o fantasma, ver se ele havia feito algo com Hiroshi. Mas não houve tempo, um grito abafado saiu de sua boca e ela caiu para trás.
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ㅤㅤ Gritos. Melissa estava em perigo, Hiroshi desejava muito ir ajudá-la. Mas seu corpo parecia não obedecer. Desde que pusera os pés dentro da estação ferroviária, parecia estar num estado de transe. Observava seu corpo agir, e queria impor suas ações, mas não eram as mesmas. Afastara-se de Melissa, tinha ido para o outro corredor, descumprindo a promessa que fizera a si próprio de proteger a amiga de infância. Venha... A voz rasgada e aguda vinha em sua cabeça, e ele não conseguia desobedecer. Seus passos ecoavam no silencioso corredor oposto ao que amiga fora.
ㅤㅤ Era a terceira porta à direita. Era nela que deveria entrar. Era para lá que seu corpo se movia. O porquê, nem ele sabia. Tocou a maçaneta da porta, girou-a e empurrou a porta. Ela deslizou sem problemas, dando espaço para uma sala iluminada pelo fraco pôr-do-sol que atravessava as janelas empoleiradas. Venha... Continuava dizendo aquela voz na sua mente, hipnotizante e persuasiva. Seus passos atravessaram a pequena distância que o separava da escrivaninha posta no canto oposto do lugar. O lugar estava limpo, como se alguém passasse por ali a pouco tempo.
ㅤㅤ Inexpressivo, observou a escrivaninha. Círculos com estranhos símbolos, códigos e diversas outras ilustrações acobertavam toda a mesa. Eram tingidas em preto e vermelho-sangue, e eram tão vívidas que pareciam ter sido feitas à poucos dias. Ao centro, uma lâmina de navalha fincada na mesa, deixando o fio da lâmina postar-se na vertical. Hiroshi tentava lutar contra seu próprio corpo, mas sua mente vacilava e ele, sem escolhas, deixava que o controlassem como quisessem. Suava frio, e as pernas relutavam em obedecer claramente, mas a mágica aura que agora o pregava àquele ato funesto era mais forte. Sua mão se projetou sobre a lâmina, e num instante, um fio de sangue formou-se do corte na palma da mão, escorrendo por toda a extensão da navalha.
ㅤㅤ Piscou. O que diabos fazia ali? Que quarto era aquele? Estava completamente desorientado, não sabia o que fizera nos últimos minutos. Olhou para a própria mão, para aquele corte dolorido aberto paralelo às riscas naturais. Fechou ela ao redor da blusa para secar e voltou-se para a saída. Estava ali para acompanhar Melissa, não devia estar sozinho naquele quarto. Correu pelo corredor, apressando-se e camando pela amiga. Mas estacou no fim do corredor, a amiga estava ali, do outro lado da sala de recepção da estação, escorada na parede, massageando uma das têmporas com a mão. O nipônico correu até ela.
ㅤㅤ – Melissa! Tudo bem? O que aconteceu? Eu... eu... Me distraí ali atrás e...
ㅤㅤ – Não, tudo bem, Hiro. Acho que o fantasma foi embora.
ㅤㅤ – Foi?
ㅤㅤ – É. Não sinto mais a presença dele. Ele tentou me matar agora pouco, mas acho que eu consegui convencer ele de que eu estava aqui pra ajudá-lo. Só não entendi porque partiu tão rápido, depois que entendeu o que eu queria.
ㅤㅤ – Te... Te matar? - E Hiro olhou para o corredor por onde ela entrava. A porta aberta estava cheia de entulho caído para fora. Voltou os olhos na garota com mais atenção, as mãos dela estavam surradas e sujas. Demorou pouco para notar que a deixou correndo perigo. Algo imperdoável para ele. Socou a parede. - Droga! Lissa, porque não me chamou!?
ㅤㅤ – Eu gritei pedindo ajuda mas...
ㅤㅤ – Eu não ouvi, porra!
ㅤㅤ – Calma, Hiro...
ㅤㅤ – Calma nada! O que diabos eu estava fazendo!? Olha, nunca mais me deixa ficar longe de você quando a gente for resolver umas coisas dessas, tá? Eu.. Sei lá, não sei o que faria se algo de ruim acontecesse com você.
ㅤㅤ A menina desviou o olhar, sem jeito.
ㅤㅤ – Tá, Hiro. Mas relaxa, não aconteceu nada.
ㅤㅤ – Sei... - E olhou novamente para o corredor. Fechou os punhos, sentia uma leve dor pelo corte na mão. E Melissa pareceu ter notado.
ㅤㅤ – O que fez na mão?
ㅤㅤ – Não sei. Acho que me cortei agora pouco, vendo as outras salas ali.
ㅤㅤ – Hiro! Tem que se cuidar você. Olha só quem saiu machucado! - Melissa riu, tentando descontrair-se um pouco com o amigo. Ele correspondeu com um sorriso e caminhou na direção da porta. Deu três passos e virou-se para ela.
ㅤㅤ – Vamos sair daqui. Já me deu nos nervos essa estação.
ㅤㅤ
ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
ㅤㅤ
ㅤㅤ – Qual deles é a presa? - O Velho Tobias parecia impaciente.
ㅤㅤ – É o cara. Deve ter sido o primeiro a entrar na estação. - Disse Felipe com certeza. Ele que armara o rito de magia, e foi ele que pressentira quando o rito começou, meia hora antes. Agora, estava diretamente ligado a Hiroshi. A Presa. A Isca. Observavam os dois jovens saindo da estação, enfurnados dentro do velho carro de Tobias, parado na esquina. Felipe armou um belo sorriso na face, quase maior que o de Tobias. Agora sim, era a vez deles jogarem.
Leia até o fim...

domingo, 22 de agosto de 2010

As Sombras

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ㅤㅤ I
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ㅤㅤ E Corria! Hah! Como eu corria! Meu peito ia e voltava com uma constância enorme, buscando pelo máximo de ar que eu pudesse respirar. O peso da pequena Angie não ajudava muito, minha filhinha querida repousada nos meus braços, desmaiada. O corte aberto na barriga dela não ajudava em muito, o sangue, maldito sangue! Pelo que percebia, aquilo atiçava o maldito cada vez mais! A floresta não acabava, e quanto mais me embrenhava nela, menos certeza de que sairia eu tinha. Mas eu não podia simplesmente morrer. Entregar minha querida para aquele maldito.
ㅤㅤ A iluminação era cada vez mais escassa, os postes de luz colocados pelos guardas florestais agora estavam longe demais para atingir aquela área do mato. Maldito seja o momento em que decidi morar com minha família perto do campo, longe da cidade. Mas, acho que estou tão desesperado que nada ajudaria contar desta forma. O começo daquela noite foi tenso para mim, voltei do escritório extra que me faria trabalhar a noite toda. Pilhas e pilhas de relatórios a fazer. Saí do carro, carregando um maço de papéis debaixo de um braço, deixando os demais dentro do veículo. Caminhava lentamente pelo quintal vasto, já estava para subir o degrau que me separava da porta de casa, quando um mal estar percorreu todo meu corpo. Uma aura de frio apossou-se subitamente de meu corpo, mesmo que nenhuma brisa estivesse passando. Olhei em volta, sentia olhos em cima de mim. Nada. Nervosamente me voltei para a porta e abri-a, entrei e tranquei rapidamente. A sensação de terror se aquetou e a calma voltou ao meu estado. Abracei minha mulher e dei um beijo na testa da pequena Angie, que tinha completado cinco anos na semana anterior.
ㅤㅤ Jantar e o horário de dormir haviam passado a muito tempo, e eu ainda estava ali, debruçado sobre meu computador, digitando avidamente. Fones de ouvido me ajudavam a passar uma noite um pouco melhor, ao som de Ramones. Mas não chegava a amenizar tanto. Foi lá pelas três que meu horror começou.
ㅤㅤ – Charles! - Minha mulher chegou na porta da sala de estudos aos berros, tanto que pude ouvir por cima da música.
ㅤㅤ – O que foi, querida? - Respondi, enquanto retirava os fones.
ㅤㅤ – Angie! Não está no quarto dela! Também não está no resto da casa, Charles!
ㅤㅤ Subitamente eu senti novamente aquele frio sobrenatural sobre mim. Minhas pernas ficaram fracas, mas mesmo assim me levantei, correndo até minha esposa. Passei por ela, dizendo para ela vestir-se, nossa casa ficava longe por quilômetros de outras casas, ela não poderia estar longe. Peguei o telefone enquanto vestia um casaco por cima do pijama e descia as escadas, Angie passou na frente, disse já estar saindo para procurá-la.
ㅤㅤ Telefonei para a polícia e relatei rapidamente o ocorrido, logo indo para fora com o fone ainda no ouvido, preso com o ombro enquanto minhas mãos se preocupavam e pegar lanternas. Pisei para fora do gramado a tempo de ver minha mulher na divisória da floresta, bem afastada de nosso vasto quintal. Ela virou-se para falar comigo, quando finalmente o motivo de todo aquele terror que sentia veio à tona. Um vulto, acobertado pela noite se atracou a minha mulher, fincando garras tenebrosas em sua cabeça. Vi, com lágrimas e raiva nos olhos, minha amada ter a garganta rasgada por algo que não conseguia identificar.
ㅤㅤ Era completamente negro, sem silhuetas. O único ponto de destaque eram os olhos vermelho-brilhantes e malignos. Brasas de desespero na noite fria. Minha esposa estava morta, e me concentrei em tentar sair de meu estado de paralisia. Liguei a lanterna e percorri com o facho de luz a situação. O monstro ainda montado sobre ela, fixei-me na floresta e ali achei. Minha pequena estava caída, com o pijama rosa-bebê encharcado de sangue, escorado numa árvore.
ㅤㅤ Disparei em sua direção, e, não sei se por pura sorte, a criatura louca nem prestou atenção a minha presença. Deixando-me passar rapidamente por ela e agarrar minha filha. Olhei novamente para trás, minha esposa já tinha a face toda desfigurada e arrancada, dando lugar ao crânio e a carne exposta. O sacrifício dela rendeu-me a escapatória.
ㅤㅤ E lá estava eu, adentrando a floresta em sentido contrário à cidade. A próxima casa ficava longe demais para eu ter qualquer esperança de alcançá-la, mas gostaria, ao menos de salvar mina pequena. Tão inofensiva e frágil em meus braços. Foi mergulhado nesses sentimentos que ele veio. Senti garras geladas se encravarem nas minhas costas e presas se fincando em meu corpo. Caí, protegendo o corpo de minha filha.
ㅤㅤ Quando, inesperadamente, a voz veio.
ㅤㅤ – Um sopro de esperança e a presa se torna mais deliciosa.
ㅤㅤ Não! Deixara que nós escapássemos! Brincava com nossas vidas. Minha face se desfazia em lágrimas de rancor e medo enquanto ele retirava a pequena de meus braços. Fincou os dentes ferinos sobre o pequeno corpo dela e rasgou-o, mergulhando mais ainda sobre ela. Na minha frente. E dali, já não importava minha vida. Que tivesse a morte! O que não me foi negado, não por aquilo.
ㅤㅤ
ㅤㅤ
ㅤㅤ II
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ㅤㅤ O tilintar da cota de malha em atrito com a couraça de bronze fazia altos chiados nos oito soldados. Lâminas e Lanças postas prontas para o ataque. O que restara de nosso batalhão agora respirava mais lentamente, nos focalizávamos em uma coisa: Sobrevivência.
ㅤㅤ A grandiosa construção que abrigava o Bispo Benedito agora se tornava nossa masmorra. As portas grossas de madeira estavam trancadas e bloqueadas, as janelas nos levariam a uma morte certa pela queda de dez metros até o fim do barranco onde se construíra a casa nobre e o próprio Bispo já jazia nas mãos daquelas criaturas. Terríveis e sanguinárias elas eram! Mataram todo meu batalhão que protegia o sacerdote de Deus, só aqueles bravos seis restaram. Lá estávamos nós, ao centro do grande Salão de entrada, aguardando a investida do demônio.
ㅤㅤ Henrique carregava uma das duas tochas numa mão enquanto a outra segurava firmemente o escudo largo. Luís portava a outra iluminação, junto de uma espada curta. Antônio e Manuel seguravam ambos espadas e escudos, enquanto Baptista e Guilherme usavam suas lanças. Eu, como capitão, segurava uma grande espada bastarda, companheira minha em tantas batalhas na época das Guerras Santas. Completávamos um círculo ao centro do salão, cobrindo visão para todos os lados, macabras eram aquelas criaturas. Sorrateiras e amigas da escuridão.
ㅤㅤ Um Baque. As armas se voltaram para o lado do som, assim como alguns olhares. Permaneci olhando para frente, junto de Guilherme. Éramos treinados, distrações não nos fariam abaixar a guarda como idiotas. Henrique levantou mais a tocha na direção do som, um objeto estava postado, fora da visão, acobertado pela penumbra. Outro baque, um vulto passou perto do objeto circular e o chutou em nossa direção. Arregalamos nossos olhos e eu perdi meu ponto de atenção por um segundo com a cena de horror. Rolava pelo chão, depois de ter trompado no escudo de Manuel, a cabeça de Tobia, um de nossos companheiros mais fiel, desaparecido nas sombras do castelo poucos minutos antes.
ㅤㅤ – Tolos.
ㅤㅤ A voz veio rouca e grave. E então notei meu erro de abandonar meu ponto de visão. Voltei a vista a ponto de ver o monstro sem silhueta arremessar um golpe na face de Guilherme, arrancando-lhe o elmo e rasgando de sua carne com largas feridas. Investi contra a fera, mas recebi um chute da fera que me jogou metros longe, afastando-me de meus guerreiros e me levando à escuridão dos demônios.
ㅤㅤ Meus homens gritaram meu nome e saíram da formação. TOLOS! A morte era o reservado para soldados que se deixam levar por emoção. Ia me levantar para voltar à briga, quando um braço envolveu-me pelo pescoço e me travou. Uma mão apertou minha cabeça e senti as garras fazerem sangue brotar no couro cabeludo.
ㅤㅤ – Observa, Guerreiro. - Sussurrou a voz para mim. - Observa a morte de seus homens.
ㅤㅤ – Homens! Retirada! Procurem um modo de escapar! Agora!
ㅤㅤ Meu grito foi recebido por uma dor inexplicavelmente aguda, uma mordida arrancara minha orelha fora. Tentei gritar, mas o braço conteve minha boca, fazendo apenas gemidos contidos surgirem. Meus homens olhavam para mim, para a direção de meus gritos, e meu desespero aumentava cada vez mais. Os desgraçados não notavam aquele par de olhos vermelhos na escuridão atrás deles. Guilherme foi o primeiro a sucumbir, o cheiro de sangue atraíra a criatura e ele aceitou a tentação. A garra entrou pelo vão da armadura sob os ombros e agarrou a carne, puxando-a para a escuridão, ignorando os gritos do soldado. Baptista disparou sua lança contra a escuridão da onde vinha o som dos gritos e sacou sua espada.
ㅤㅤ Sua investida no escuro de nada serviu, nem um grunhido arrancara da fera que devorava sangue e carne de meu homem. Até mesmo piorara a situação. Segundos depois uma lança carregada pelo vulto assassino surgiu a luz, fincando a arma no pescoço de Henrique, que deixou a tocha cair. Antônio abaixou-se para pegar a iluminação, e distraído deixou-se levar, a sombra passou novamente e levou agora seu corpo para o escuro salão. Manuel tentou acertá-la com a lâmina da espada, e conseguira! Mas sangue nenhum pingou de ferida alguma. Invencível!
ㅤㅤ A tocha rolou longe e foi parar, rolando, perto de mim. A luz foi a suficiente para me iluminar. Iluminar a mim e a criatura que me segurava. Meus homens arregalaram os olhos para mim, estava em terrível estado e domado. O grande capitão, derrotado. A figura de terror foi suficiente para a sombra aproveitar-se novamente, saltou sobre dois ao mesmo tempo. Luís e Baptista caíram com garras atreladas aos seus pescoços. Manuel, só, investiu contra o monstro, que imediatamente lhe direcionou o olhar assassino e vermelho. O soldado recuou, assustado, tempo suficiente para o monstro saltar sobre seu corpo e ouvir seus gritos enquanto ela lhe rasgava a cota de malha e metia a mão nas entranhas, para depois retirar e lamber de seu sangue. Meus guerreiros se silenciaram, todos mortos.
ㅤㅤ A voz novamente pronunciou-se.
ㅤㅤ – Fraco é o ser humano.
ㅤㅤ – E covarde são vocês, demônios! - Retruquei na mesma hora, tentando reagir ao abraço fatal da criatura. Ela segurou meus braços malhados de guerra e me conteve ao chão. Fora vencido completamente. A outra criatura se aproximava de mim, hora iluminada pela luz de tochas, podendo ver mais do que seu contorno maldito.
ㅤㅤ – Mata-o logo e partimos assim que saciarmos nossa sede eterna.
ㅤㅤ – Sim. - Respondeu o monstro friamente.
ㅤㅤ Senti outro rasgo, agora era meu pescoço o alvo do terror, senti as presas fincarem em minha pele e minha vida começou a esvair de meu corpo, junto do sangue mortal. Falhei, humilhado, vencido, acabado. Deus não me dera a benção da vitória.
ㅤㅤ
ㅤㅤ
ㅤㅤ III
ㅤㅤ
ㅤㅤ – Consegui! Finalmente consegui, minha mãe! - Entrei sorridente na pequena casa de madeira e palha. Minha mãe, vestida como uma serva deveria portar-se abriu um sorriso e viera a me abraçar com força. Abençoado seria aquele dia se tudo fosse apenas da quela forma.
ㅤㅤ – O velho médico curador aceitara-me como discípulo. Partirei em breve, levando a ele o pagamento para ser meu tutor. Mas consegui! Finalmente serei aquilo que sempre quis ser, Mãe!
ㅤㅤ – Abençoado seja você, filho. Seu pai estaria orgulhoso. Mas em seu lugar, sua pobre mãe e seu irmão o saúdam.
ㅤㅤ Meu amado irmão estava à mesa com a mulher. Era o dono da casa, como irmão mais velho, e também o líder da pequena posse de terras que o Senhor nos dera para cuidar. Eu não poderia ficar ali por mais tempo, já era mais que hora de partir. Ele olhou para mim com sorriso na face.
ㅤㅤ – Pois finalmente partirá, Irmão. Encontra o caminho de sua vida e segue-o.
ㅤㅤ E meneei a cabeça para ele. Desde que meu amado pai morrera por falta de bens para pagar um médico e seus itens de cura, decidira ser um, para nunca mais recusar-me a atender alguém pela sua casa ser a menor dentre a dos servos. Soltei um grande suspiro e despedi-me de todos, indo a meu pequeno cômodo para arrumar minhas coisas. Morava no quarto mais afastado e pequeno, que tinha uma larga janela para a floresta.
ㅤㅤ Abri a bolsa de couro batido, e dentro comecei a colocar o pouco de pertences que tinha. E talvez, por isso, nem ao menos notara a sombra que adentrara o quarto. Notei apenas a último instante. Um forte soco atingiu minha pequena mesa, e eu saltei assustado, olhando atentamente ao invasor. Era um homem de feições fortes, pálido e aparentemente fraco. Era mais alto que eu e vestia-se de trapos piores que os escravos de guerra. Mas seu rosto exalava soberania.
ㅤㅤ – Quem... quem é? - Balbuciei.
ㅤㅤ – Então, agora se tornarás curador. - A criatura falou, caminhando pela penumbra do quarto. - Salvarás vidas, há de ser um bom homem.
ㅤㅤ – Sim... - Confirmei, perplexo. - Quem é você!?
ㅤㅤ – Apenas um observador de costumes, caro Servo.
ㅤㅤ – E o que tem a observar em uma humilde e pobre família.
ㅤㅤ – Você. - A resposta veio seca.
ㅤㅤ Respirei fundo e afastei-me um passo na direção do corredor. Provavelmente não ouviram nada, dado as altas gargalhadas e à voz grave e alta de meu irmão. Tinha e expulsar o maldito.
ㅤㅤ – O que?
ㅤㅤ – Fico pensando no que irá se tornar.
ㅤㅤ – Tornar?
ㅤㅤ – Sim. Vejamos se ainda almejará salvar vidas, servo Lien, quando ceifar a primeira delas!
ㅤㅤ As presas ferinas que saltaram da boca do monstro já estavam sobre minha jugular quando pensei em fazer algo. E, no instante seguinte, senti minha vida sendo drenada. O que estaria reservado à mim, afinal?
ㅤㅤ
ㅤㅤ
ㅤㅤ IV
ㅤㅤ
ㅤㅤ Despertei, a noite havia caído sobre a terra, e era natural de mim acordar. Mas minha cabeça em muito latejava. Deixei-me cair sobre o solado podre da casa abandonada que era o covil. Meu mestre ainda estava de olhos fechados, em seu caixão. Segurei minha cabeça com as duas mãos e gritei de raiva. Por que não paravam!? As vozes do Empresário Charles, do Guerreiro Tomé, se somavam a milhares de outras. E, junto delas, flashes e visões do passado, presente, e até do futuro. Almas malditas que teimavam e atormentar aquele que lhes ceifara a vida. Fantasmas. Assombrações que não dependiam de lugar, hora ou situação. Assombrações que sempre me tomariam em horas que me eram para ser de tranquilidade. Horas de dia alto. O descanso dos vampiros.
ㅤㅤ Isto acontece pois ainda possui parte da alma humana em suas veias mortas, tolo Lien. Sempre diz o mestre-vampiro que por séculos sigo. As vozes vinham de todo lado e eu podia ver os fantasmas na minha frente. Sentia a dor deles no fundo do coração, a dor que eu mesmo causara. Uivei para a noite como um lupino, e me contorci no chão.
ㅤㅤ Aos poucos, as vozes diminuíram. Os fantasmas se acalmavam em meu antro sem-vida.
ㅤㅤ Silêncio. Abri os olhos vermelhos. Hora de matar.
Leia até o fim...

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Olhos Vermelhos - Capítulo 5




ㅤㅤ V
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ㅤㅤ – Tem certeza que é só isso que precisa?
ㅤㅤ – Já não te disse uma vez? Ora! - E pegou o item dourado.
ㅤㅤ Dimitri analisou o relógio atentamente. Era um rolex bonito, mas que tinha já seus traços de velhice. Era realmente um objeto em potencial para o ritual todo. O contratante estava na sua frente, vestindo um terno barato e mal-cheiroso. Provavelmente, sua vida tinha sido destruída pelo dono do relógio, e agora queria devolver na mesma moeda. Não hesitando em gastar dinheiro e tempo com sua deliciosa vingança.
ㅤㅤ Eram realmente poucos os que vinham até ele. Mas, os que vinham, sempre pagavam o preço exigido. E era isso que o sustentava por todos aqueles anos. Seu filho, Romanov, estava ao canto da sala, a pele pálida em contraste com os olhos e cabelos escuros. Observava todo o rito com cuidado e atenção, sabia que em breve era ele quem sucederia o pai naquelas loucuras. Sabia que era apenas aquilo que fora destinado a fazer.
ㅤㅤ A sala era grandes, espaçosa e cheio de luxos desnecessários. Como o imenso candelabro postado acima da mesa circular ao centro da sala, ou como o tapete persa que forrava quase todo o tablado de madeira do local. Era, definitivamente, peculiar uma casa tão deslumbrante no meio da favela do Morro da Cachorra. Os traficantes não tinham coragem de mostrar sua superioridade para cima de Dimitri, temiam coisas bem piores que tiros ou alguns anos em cadeia.
ㅤㅤ
ㅤㅤ – Vai demorar muito? - Tarso perguntou, observando Dimitri brincar com o relógio dourado. O descendente de europeu, com nome russo, parecia emanar toda a calma e tranquilidade do mundo, exatamente o oposto do que sua profissão aparentava ser. Abriu um sorriso e finalmente abriu uma pequena gaveta embutida na mesa circular. Puxou dali uma pequena cerâmica de barro. Ela tinha um tronco central, quatro partes menores grudadas e uma pequena bola ao fim da parte principal, se assemelhando perfeitamente a um boneco de um homem.
ㅤㅤ Parecia ter sido confeccionado a pouco tempo, dado a cor viva do barro do qual era feito. Dimitri brincou com ele entre os dedos e até ameaçou jogá-lo no ar, para pegar quando quase se espatifava na mesa.
ㅤㅤ – Vou começar. A quantia combinada já foi depositava na minha conta, sim?
ㅤㅤ – Sim! Sim! - Respondeu Tarso, a sede de vingança secando sua face.
ㅤㅤ – Certo.
ㅤㅤ Dimitri sinalizou para o filho. Romanov levantou-se e foi até o interruptor de luz, começando a desligar as luzes da grande sala lentamente, até que apenas a luz do candelabro central ficasse a vista de todos. Dimitri parou de brincar e sua face virou uma tábua de tão inexpressiva, agora segurava, com uma mão o boneco, e com outra, o relógio. Tarso sentiu calafrios passarem pela espinha, agora o negócio estava começando a ficar tenebroso como era de ser.
ㅤㅤ O pálido Bruxo, como Dimitri gostava de ser chamado, começou a murmurar palavra atrás de palavra numa língua incompreendível, parecendo primitiva e africana. Em poucos segundos o corpo de Dimitri agora tremia, indo de um lado para o outro como um pêndulo de relógio de ponta-cabeça. Seus braços seguravam com firmeza os dois itens enquanto ele aproximava um do outro aos poucos.
ㅤㅤ Tarso agora tinha completa certeza que não estavam para brincadeira quando lhe indicaram o nome daquele cara estranho que morava dentro da favela. Sentiu um vento gelado lhe passar pelo corpo, e começar a envolvê-lo como uma aura. Tremia de frio subitamente, e jurava ver vultos negros passando pela penumbra que agora acobertava grande parte da sala. O tapete persa, com os desenhos abstratos e simétricos, deixava tudo ainda mais assustador, ao tempo que a luz parecia demonstrar leves falhas, piscando e voltando a funcionar repetidamente. O local estava terrível, e o próprio Dimitri ajudava a deixar as coisas ainda mais aterrorizantes. Agora ele tinha o relógio de ouro preso em diagonal sobre o boneco de barro, deixado sobre uma almofada negra posta a sua frente, sobre a mesa. Seu falatório, antes baixo agora parecia um cântico demoníaco e incessante, o Mago falava sem precisar de pausas para respirar. Ou pelo menos era o que parecia. Até mesmo na figura de Romanov, ao canto da sala, não podia encontrar sossego. O garoto, quieto e calado, o observava com grandes olhos negros, inexpressivos e tenebrosos. Chegou a afastar um pouco a sua cadeira da mesa com as mãos trêmulas, quando...
ㅤㅤ O nome do acobertado pelo mal, o nome deve dizer.
ㅤㅤ Podia jurar que ouvira a voz suave e fria de Dimitri soar dentro de sua própria cabeça. Olhou para ele, o albino o observava com os olhos fixo nas órbitas. Sentiu sua alma ser trespassada pelo olhar macabro daquele que contratou.
ㅤㅤ O nome do acobertado pelo mal deve ser dito!
ㅤㅤ A voz elevou-se em sua mente. Tarso fechou os olhos, comprimindo a cabeça entre as mãos.
ㅤㅤ O NOME! OU O SEU PRÓPRIO SERÁ USADO!
ㅤㅤ O tom elevou-se e pareceu uma trovoada na mente de Tarso, que, agora inundado em lágrimas, puxou ar para seus pulmões e gritou.
ㅤㅤ – TOMÉ! TOMÉ AQUINO!
ㅤㅤ Dimitri levantou ambas as mãos acima da cabeça. Segurava, entre os dedos, uma grande e grossa agulha, que poderia ser facilmente segurada por um palmo de mão. Era todo negro e feito de metal, tendo, em sua cabeça, uma pedra brilhante. Seu diamante. O de Vicente ficava dentro de uma caixa de couro, o de Azaias ficava incrustado no anel, o de Tobias ficava jogado em qualquer lugar. Ele era o único que usava a brilhante pedra em suas cerimônias macabras. Desceu o item com tudo. A ponta da agulha anormal atravessou o relógio, arrebentando seu ligamento, e estacou-se sobre o boneco de barro, no lugar que deveria ser o coração do homem de cerâmica. Leves rachaduras se manifestaram pelo buraco repentino.
ㅤㅤ Tarso sentiu o frio repentino passar, e a sensação da voz de Dimitri dentro de sua mente desapareceu. Romanov, no canto da sala, acendeu a luz novamente, deixando o luxuoso local de volta a sua forma normal. Estava tudo tranquilo mais uma vez.
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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
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ㅤㅤ Tomé estava desconsertado, revirou todo o gigantesco apartamento e nada. Os cômodos da cobertura onde morava eram de dar inveja a qualquer empresário de inicio de carreira, ele já era um cachorro velho das ações. A filha jurou não ter visto o precioso relógio, e ele ligou mais de duas vezes para a ex-mulher, perguntando se esquecera no meio das coisas dela. Mas nada. O rolex de ouro valia uma boa quantia, mas não era por isso que ele o caçava incessante. Aquele item havia sido de seu pai, de seu avô, de seu bisavô. Era uma herança de família. Jogou a lanterna com a qual procurou nos cantos do armário no sofá e se jogou na poltrona acolchoada. Onde estava?
ㅤㅤ Pensou em ligar novamente para Angela. Mas, naquela altura do campeonato, ela nem mesmo atenderia ao seu telefonema novamente, já prevendo a pergunta pelo relógio precioso. Vagou a mente por onde poderia ter deixado o item. Lembrou-se de levá-lo para a Bolsa. Lembrou-se de ter levado para a reunião com os figurões da empresa. Abriu um leve sorriso ao recordar da discussão sobre economia que fez aquele funcionário idiota ser despedido. Engraçado como as pessoas que teimavam em contrariá-lo acabavam mal. Sua pequena Sofia ainda não tinha voltado do colégio. Quem dera ela estivesse ali, o tempo dos dois juntos era sempre curto. Talvez por isso a guarda tenha ficado com a mãe. Mas nunca escondeu o apreço que tinha pela garota.
ㅤㅤ Chega de prender-se ao passado, foi o que pensou. Ainda precisava visitar três empresas antes das cinco da tarde. Tomar banho, estudar o sobe-e-desce das ações, arrumar a papelada do trabalho, pegar a filha na escola. Levantou-se num impulso da poltrona, mas não por muito tempo ficou de pé. Uma tontura o assolou e ele caiu pra frente, ficando apoiado sobre os joelhos. O que estava acontecendo? Estava zonzo, e parecia suar frio. Podia ouvir as batidas de seu coração, rápidas. Rápidas demais. Pôs a mão sobre o peito enquanto sentia ele queimar. Tentou fechar a mão sobre o coração, mas falhou, caindo no chão agonizante. Gemidos e gritos demonstravam a dor para ninguém, havia dispensado a diarista e o resto dos funcionários, Angela provavelmente estava com seu novo namorado, e a pequena Sofia aprendendo contas de multiplicação. Hah! Como queria que a filha seguisse seus passos! Mas ele estava morrendo. Morria e sentia isso. Não tinha colesterol, pressão alta e nenhuma doença cardíaca. Por que, então? Agora o peito parecia explodir com as batidas descoordenadas e ele mal conseguia distinguir o que era chão ou teto. Rolava de dor. Uma dor latente e incessante.
ㅤㅤ Até que o coração parou de súbito. Faltou ar. Faltou vida. Tomé estava morto.
ㅤㅤ
ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
ㅤㅤ
ㅤㅤ – Pois não? - A voz de Romanov saiu pelo interfone. Baixa e suave, quase como a do pai.
ㅤㅤ – Sou Marco. Marco de Vicente. - Falou, olhando para os lados. Era engraçado ver aquele gigantesco sobrado no meio de tantos barracos e gente pobre e mal-cheirosa. - Vamos, Romanov, preciso falar com seu pai.
ㅤㅤ – Um segundo.
ㅤㅤ A porta da frente destravou, e Marco pensou que fosse para sua entrada. Já ia empurrando o portão de ferro, quando da porta, saiu um homem grisalho. Ele estava suado ao extremo, e os olhos estavam arregalados, indo de um lado para o outro. Tarso passou ao lado de Marco sem notar sua existência e seguiu, quase correndo, morro abaixo. Romanov surgiu na porta, vestindo sua camisa e gravata, com o colete de lã por cima da roupa social.
ㅤㅤ – Vamos, meu pai está cansado, mas vai lhe receber.
ㅤㅤ – Ainda bem. - Disse Marco, avançando. - Eu que não voltaria aqui novamente.
ㅤㅤ Entrou pela porta para um hall de entrada iluminando ao extremo, com lâmpadas instaladas a centímetros uma das outras. Romanov fechou a porta atrás do jovem Marco, que alisou o cabelo.
ㅤㅤ – Me siga, por favor.
ㅤㅤ Avançaram pelo grande hall e entraram num corredor estreito. Não foi preciso avançar muito pela luxuosa mansão para encontrarem a sala de cerimônia, logo na segunda porta a direita. A porta dupla abriu-se, dando lugar a sala circular na qual Dimitri estava. O senhor, de cerca de quarenta anos, estava folgado sobre sua cadeira adornada e decorada com pedras preciosas. Olhou Marco com o canto dos olhos e sorriu.
ㅤㅤ – Marco! Da última vez que o vi, ainda era um molecote da idade de Romanov. Vicente anda lhe treinando bem? Ou a magia do nosso Figurão Cultural reduziu-se?
ㅤㅤ – Te aquieta, Dimitri. Não vim falar sobre meus treinos. Vim entregar uma mensagem do Vicente. Me pediu pra entregar com urgência, acho que pode te interessar, é sobre Tobias.
ㅤㅤ O sorriso sumiu da cara de Dimitri. Aquele nome sempre lhe irritava.
ㅤㅤ – Pois diga, Marco.
ㅤㅤ – Descobrimos a localização de Tobias e seu discípulo. E também, parte do que está tramando. Vicente já deve ter falado com Izaias, me pediu pra vim dizer a você que estamos partindo. Tobias está faz uns seis anos em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
ㅤㅤ – E o que ele está tramando?
ㅤㅤ – Vicente só me permitiu dizer duas palavras.
ㅤㅤ – Estou ouvindo.
ㅤㅤ – Olhos Vermelhos.
ㅤㅤ Dimitri respirou fundo, pensando naquelas palavras. Não era possível que Tobias tramava algo tão grande. Sim, estava dentro de sua área de estudo, dentro de sua especialização mágica. Mas nunca pensaria que o Mago gordo e fedido pudesse fazer algo tão mirabolante. Capaz de desestabilizar todas as estruturas das ligas de magia do mundo. Era preciso partir logo. Parar Tobias.
ㅤㅤ
ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
ㅤㅤ
ㅤㅤ Não! Faça parar! Afaste-o de mim! Eu gritava, sem resposta contundente. Aquela sombra estava ali novamente. A sombra maldosa de aura de terror, aquelas grandes brasas vermelhas cada vez mais próximo da vidraça que me libertava. Não era ele que eu queria! Não! Onde estava aquela outra boa sombra? Aquela que me ouvia silenciosa e parecia compartilhar de pena comigo? Nunca mais aparecera! Abandonou-me! Desgraçada! Vou fazê-la pagar por todo horror que me fizera passar! Todo! Todo!
ㅤㅤ Era assim que minha mente conturbada pensava. Minha mente cega pelo ódio e pelo desespero. Eles estavam me usando para conseguirem o que queriam. E forçavam a odiar a única silhueta que me dera atenção. Tremia de medo e minha alma vibrava de ranco ao mesmo tempo. Não era daquele jeito que eu era normalmente. Não o velho Macedo.... Espere, Macedo? Sim! Era esse meu nome! Começava a lembrar! Macedo! Naquele dia jurei, que eu, Macedo, iria me vingar de todos aqueles ignorantes que nada faziam para me ajudar, de aqueles que me maltravam e davam altar gargalhadas desconexas, daquela que me abandonara quando eu mais precisava.

ㅤㅤ
Leia até o fim...

sábado, 14 de agosto de 2010

Olhos Vermelhos - Capítulo 4


ㅤㅤ IV
ㅤㅤ
ㅤㅤ Hiroshi colocou as últimas panelas no pequeno carrinho de metal. Como fora a primeira feira após o festival, o movimento não foi tanto, de modo que muita coisa havia sobrado para a viagem de volta que ele fazia. Seus pais ficariam, para coordenar a limpeza geral e para guardar os itens que ficavam no estabelecimento. Seu primo já estava ali, acocorado a frente da barraca esperando pela sua carona para casa. Levantou-se quando Hiroshi começou a empurrar o carrinho em direção ao estacionamento.
ㅤㅤ – Até que foi tranquilo hoje, né, Hideki?
ㅤㅤ – Pois é. - Hideki respondeu, quase num murmúrio, enquanto colocava os fones de ouvido. - Também, se hoje fosse corrido demais, eu não duvidaria de mais nada. Vão fazer feira amanhã?
ㅤㅤ – Não. Não é nosso dia.
ㅤㅤ O primo pareceu soltar um suspiro aliviado.
ㅤㅤ – Que bom. Assim posso terminar o joguinho que achei.
ㅤㅤ – Joguinho?
ㅤㅤ – É. Um de zumbis, espadas japonesas, tanques de guerra e garotas samurais quase sem roupa.
ㅤㅤ Os dois riram. Mas Hiro não duvidou que fosse verdade. Seu primo sempre estava jogando alguma coisa do tipo. Da última vez, o jogo de tiro não poupava nem mesmo pobres velhinhas nas ruas. Quem dirá o que acontece aos pobres zumbis?
ㅤㅤ Viraram para a entrada do estacionamento reduzindo a velocidade do carrinho e das passadas. O estacionamento era sempre o mesmo, grande e espaçoso. Entretanto, mesmo com todas as reformas, ele ainda continuava com pedrinhas e terra aqui em algumas partes, o que dificultava a passagem com o velho carrinho de aço.
ㅤㅤ – Epa. - Deixou escapar Hiroshi, quase sem querer.
ㅤㅤ – O que? - E acompanhou o olhar do primo.
ㅤㅤ Ali, escorada sobre a D20 esta Melissa, encolhida contra o frio. Hideki demorou alguns segundos calado, observando os dois, antes de recuar um passo, enquanto cutucava de leve Hiroshi com o cotovelo e um sorriso curto na face.
ㅤㅤ – Vai lá. Volto em dez minutos.
ㅤㅤ – O que!?
ㅤㅤ – Comprar fones novos. Fones!
ㅤㅤ Mas já dizia a desculpa esfarrapada longe, quase virando para dentro do corredor central.
ㅤㅤ Com uma expressão quase desentedida, Hiro meneou a cabeça negativamente por alguns segundos, observando Hideki, para depois voltar-se para a amiga, caminhando até ela.
ㅤㅤ – Pensei que já tinha ido embora, Lissa.
ㅤㅤ – Pois é. - A garota falou, sorrindo para ele, mesmo que o frio do descampado gelasse até seus ossos. - É que precisava falar mais um negócio contigo. E... é um pouco mais sério. Não dava pra falar na hora do movimento com toda aquela correria.
ㅤㅤ – Bom... - E escorou-se no capô, ao lado dela. - Pode falar agora.
ㅤㅤ Melissa pareceu pensar antes de falar. Fitou o mar de carros que era aquele lugar, como se buscasse alguma coragem, mas só a conseguiu quando direcionou seu olhar para Hiroshi mais uma vez. Ele fez um leve aceno de incentivo a ela com a cabeça, e ela retribuiu, aconchegando-se ao lado dele.
ㅤㅤ – Lembra, Hiro, de uns nove anos atrás? Naquele incidente no Okinawa...
ㅤㅤ – No clube? Do camarim e tudo mais?
ㅤㅤ – É.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Hiroshi recordava-se, até bem. Fora naquela época que os dois começaram a ficar um pouco mais próximos que simples colegas. Melissa fazia treinos de dança típica de Okinawa, e Hiroshi, na época aprendia Japonês por lá. Vários boatos entre os frequentadores do clube envolviam o velho camarim que ficava atrás do palco do salão. Tantas e tantas lendas de fantasmas, aparições e sons de instrumentos tocando; quando não havia nada por lá. Fora exatamente isso que atingira em cheio Melissa. Que na época, já tinha a capacidade sensitiva que possuía até atualmente.
ㅤㅤ Ninguém acreditava nela, quando dizia conversar com fantasmas do local. Ver coisas estranhas e vultos, até ia. Mas... conversar? Os próprios pais de Melissa pensaram em enviá-la para o psicólogo, conferir o que estava errado. Mas fora nesse dia que Hiroshi foi conversar com ela.
ㅤㅤ Ela estava sentada na borda da escada do clube, que levava para o Salão e para o campo de futebol do estabelecimento nipônico, quando Hiroshi saiu da aula, com os cadernos debaixo do braço. Com o canto dos olhos, achou-a ali sentada. Ela levantou o olhar para responder ao aceno dele, e o garoto teria simplesmente ido embora, se não fosse pela face triste e de injustiçada que a pequena Melissa fazia. Soltou um suspiro de leve, e andou até ela.
ㅤㅤ – Que foi, Lili? - O apelido dela na época.
ㅤㅤ A garota levantou o olhar para Hiroshi, mas meneou a cabeça negativamente.
ㅤㅤ – Nada não, Hiro.
ㅤㅤ – Tá, e eu sou a mulher do padre. - Sentou-se ao lado dela. - Diz aí, qual o problema?
ㅤㅤ Demorou um pouco para falar, pensando se deveria. Mas então, finalmente olhou-a.
ㅤㅤ – Promete acreditar em mim.
ㅤㅤ – Eu tento.
ㅤㅤ Ela esboçou um sorriso.
ㅤㅤ – Acredita em fantasmas?
ㅤㅤ – Claro! - E abriu um sorrisão. Era provável que qualquer garoto naquela idade fosse, obrigatoriamente, um fanático pelo sobrenatural. Alienado no mundo de Power Rangers ou algum desenho japonês aleatório. E Hiroshi não era exceção. Mas, sempre se interessou bastante pelo assunto. Ou pelo menos, fora ele que sumiu numa noite porque queria provar aos amigos que poderia dormir uma noite no cemitério. Voltou para casa depois de quase ser comido pelo carrocho que cuidava do lugar.
ㅤㅤ – Mesmo mesmo?
ㅤㅤ – Sim!
ㅤㅤ E ela pareceu hesitar mais alguns instantes.
ㅤㅤ – Vamos, Lili, conta logo. Não vou caçoar de você!
ㅤㅤ – ... - E respirou fundo, a pequena. - Tem um fantasma no camarim do palco.
ㅤㅤ – Hah! Lili, tanto suspense pra isso!?
ㅤㅤ – É... Mas ele falou comigo.
ㅤㅤ – Como é? - E voltou a concentrar-se na menina.
ㅤㅤ – Pediu minha ajuda, fazer um favor a ele.
ㅤㅤ – Ele?
ㅤㅤ – É um velhinho. Talvez fora um dos presidentes do clube anos atrás.
ㅤㅤ – Entendo... - E ele sentou-se pensando mais no que ela dissera. - E qual foi o pedido dele?
ㅤㅤ – Hiro, você sabe o que tem debaixo do palco?
ㅤㅤ
ㅤㅤ A entrada lateral do palco tinha uma pequena abertura para o espaço oco que havia abaixo das velhas madeiras do clube. Era escuro, e ficava atrás das grandes tábuas e cavaletes que eram usadas para fazer as gigantescas mesas nos dias de festa. Hiroshi olhou para o pequeno vão entre as tralhas com uma cara fechada. Seria um belo problema entrar ali no meio, e aquele lugar parecia mais assustador que o próprio cemitério. Deu um passo hesitante a frente e virou-se para trás, encarando a garota.
ㅤㅤ – É só pegar, né?
ㅤㅤ – Sim.
ㅤㅤ – Tá, já volto. - E começou a passar uma perna pela pequena abertura entre as tralhas antigas, quando a menina segurou-o pelo braço. Voltou o olhar para ela, para achar um sorriso.
ㅤㅤ – Obrigada, Hiro.
ㅤㅤ – Tá. Tá.
ㅤㅤ Ele falou e passou o resto do corpo. Caiu sobre alguns cavaletes ainda mais antigos e olhou em volta. Alguns pequenos ratos e outras movimentações ocorreram quando ele deu um passo para dentro do espaço vazio abaixo do palco. Poeira levantava a cada passo que ele dava, e dali ele podia ver como aquele palco era perigosamente velho e carente de reformas. Chegou ao meio do espaço, feliz por Melissa ter ligado as luzes do palco, para que um pouco dela passasse entre as madeiras do assoalho, entrando lá.
ㅤㅤ Se virando com a pouca iluminação, ele chegou onde pretendia. Ao fundo do local, havia uma pequena escada que levava a uma porta velha de madeira, que parecia não ser aberta há décadas. Definitivamente era mais assustador que um simples cemitério, pensou o garoto. Avançou em passos vacilantes e desceu a escada. A maçaneta da porta não funcionava, de modo que ele precisou dar pequenos empurrões na porta para ela ceder a pressão e mover-se para trás. Soltou-se um rangido alto e ela foi num solavanco aberta, fazendo Hiroshi cair com tudo no chão antigo.
ㅤㅤ Já ia levantar-se novamente, quando um calafrio passou por sua espinha, algo havia passado sobre sua perna. Virou o olhar rapidamente, para se tranquilizar vendo o rato passar, voltando para as rachaduras do lugar. Levantou e olhou em volta. O local era cheio de velhas estantes de madeira, que pareciam carcomidas de cupim a ponto de desmoronarem com um simples toque. Deu passos vacilantes adiante, vendo o conteúdo das prateleiras mudar. Livros antigos, papeladas e outras coisas que nunca imaginaria encontrar por lá, como um velho engradado de Coca-cola. Mas nada daquilo era o que procurava.
ㅤㅤ – Um Sanshin. - Dissera a menina. Um velho Sanshin que pertencia ao falecido senhor. E que ele pede que seja retirado do esquecimento.
ㅤㅤ A última coluna de estantes estava recheada de velhos livros e vários panos brancos encardidos, protegendo os diversos conteúdos maiores. Hiroshi segurou o pano de um deles e puxou com tudo, revelando ali não um, mas vários Sanshin. O instrumento de 3 cordas okinawano, era famoso entre os descendentes, ainda mais os que participavam das atividades do clube. Passou a mão por alguns deles, retirando o pó de cima deles.
ㅤㅤ Ótimo, e qual era o que a alma pedia que fosse retirada? Fazia realmente diferença? Passou os olhos pelos instrumentos e resolveu pegar o menos acabado. Retirou-o de cima de outros dois, que já pareciam ter virado comida de cupim e ratos. A luz, escassa que entrava até ali, era só suficiente para que ele pudesse ter uma vaga visão de como eram os Sanshin. Virou-se na direção da porta e ia já sair. Quando ela violentamente fechou-se sozinha, deixando-o preso ali.
ㅤㅤ Não havia correntes de ar e nem alavancas para a porta fechar-se daquela maneira. Os pelos de Hiroshi se eriçaram todos, de excitação e medo, enquanto ele olhava para os lados assustado. Afinal, o que fizera de errado? Lógico! Porque ainda se perguntava. Deixou o instrumento numa estante qualquer e voltara a última parte do pequeno depósito abandonado. Agora, um leve e sobrenatural frio rondava o local em forma de brisas que não eram para existir ali, retirando calafrios do garoto a cada segundo, enquanto ele revirava livros e instrumentos velhos.
ㅤㅤ Estava usando a luz do celular para ajudá-lo na busca. Mas na verdade, não sabia o que realmente procurava. Afinal, ele não sabia quem era o fantasma, nem se seu velho Sanshin carregava alguma marca que o destacasse dos demais. Demorou alguns minutos na sua busca ilógica, vez ou outra escutando Melissa chamá-la, para ele responder aos berros, tranquilizando-a. Enfim, afundou suas mãos sobre uma pilha velha de acessórios e kimonos japoneses rasgados dentro de uma grande caixa de papelão desgastada e rasgada que estava no fundo da prateleira, puxando para fora tudo que via a frente. Até que finalmente, um resultado. Suas mãos agarraram algo que parecia uma maleta. Comprida e estreita. Segurou-a com ambas as mãos e o puxou para cima , deixando cair sobre seu corpo todo o pó acumulado. Enfim, deixou-a de lado e observou a caixa. Era aquilo. Tinha certeza. Pousou as mãos sobre os lacres e abriu.
ㅤㅤ Um pequeno vulto negro saltou de dentro da caixa sobre seu corpo assim que a abertura foi suficiente para sua passagem. Hiroshi afastou-se num pulo, debatendo-se. O pequeno escorpião foi jogado para um canto, claramente nervoso. O coração ainda estava disparado frente a surpresa de última hora. Olhou a maleta e encontrou a rachadura por onde ele havia entrado, e logo depois, focou-se no conteúdo, apertando um botão aleatório do celular para que houvesse mais luz ali.
ㅤㅤ O instrumento era provavelmente o menos desgastado de todos, graças a proteção da maleta. Duas cortas permaneciam intactas, enquanto a terceira estava arrebentada e estirada para os dois lados. O cavalete de madeira que sustentava as cordas também parecia podre, assim como os pequenos chifres de boi entalhados que eram usados como palhetas. Mas estava ali. Fechou a maleta e dirigiu-se a porta, que, curiosamente, abriu-se com facilidade.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Melissa pulou em cima dele assim que saiu do vão entre as madeiras, sujo e empoeirado. Ele entregou o instrumento a ela e deu a dica que ela pedisse ao simpático seu Jorge que o arrumasse. Ela sorriu, concordando, e logo em seguida virou-se para o palco. Olhando a entrada do camarim ao fundo.
ㅤㅤ – Acho que agora ele não está mais aqui.
ㅤㅤ Disse, finalmente.
ㅤㅤ
ㅤㅤ – Está acontecendo de novo. Alias, sempre acontecia, mas eu não dava muita bola e logo paravam de incomodar. Mas esse...
ㅤㅤ Hiroshi suspirou, olhando-a.
ㅤㅤ – Qual o galho?
ㅤㅤ – Ele sempre clama por ajuda quando eu passo na frente do lugar. Mas não diz mais nada, só pede para eu tirá-lo de lá, mas não diz o que deseja em troca. E... eu não tenho coragem de entrar lá.
ㅤㅤ – Porque?
ㅤㅤ – Não sei... Tem algo estranho naquele lugar. Algo que parece realmente perigoso.
ㅤㅤ – Não é o fantasma?
ㅤㅤ – Não sei. Talvez seja. Mas, eu não tenho idéia do que seja. Você não entra lá comigo, Hiro?
ㅤㅤ – Claro. Onde é?
ㅤㅤ – É aqui do lado, na Estação Ferroviária. Passo por aqui direto, já que moro logo ali e tenho de pegar ônibus na Mato Grosso.
ㅤㅤ Subitamente, Hiroshi lembrou-se no flash púrpuro que vira outro dia. Sentiu as pernas tremerem de leve. Aquilo não era um simples fantasma mais uma vez, era?
ㅤㅤ
ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
ㅤㅤ
ㅤㅤ – Azaias? - Disse o velho, no telefone.
ㅤㅤ – É você, Vicente?
ㅤㅤ – Sim. O meu garoto descobriu do paradeiro de Tobias e do que ele tá armando.
ㅤㅤ – Sabia que ele estava aprontando algo. Minha fonte era de confiança.
ㅤㅤ – Sei, sei. Mas então, ele realmente está fazendo algo além do que deveria. Estamos indo para a cidade onde ele está. Temos de acabar com os planos dele, antes que prejudique nossos projetos também.
ㅤㅤ – Certo. Vamos quando?
ㅤㅤ – Semana que vem.
ㅤㅤ – Tudo bem. Vou cancelar as sessões de espiritismo barato. Por sorte, nenhum cliente maior veio me pedir hora marcada. Levo meus livros, certo?
ㅤㅤ – Claro. Sem eles tu nem precisa ir.
ㅤㅤ – Vou estar por aí em dois dias.
ㅤㅤ – Obrigado, Azaias. Dimitri também vai, Marco foi chamar ele na favela.
ㅤㅤ – Tudo bem. Até. - O negro desligou o telefone, ajustando o terno da preto que usava. A barba dele estava grande, ajudava a impressionar o público alheio. Afinal de contas, os seus cultos normais eram como grande parte da magia que faziam por aí: Nascia e morria nos sentimentos e medos das pessoas. Mas nem todas eram assim, seus velhos livros e a época em que era jovem comprovava isto. Beijou o anel com a pedra brilhante e transparente e saiu da saleta.
Leia até o fim...

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