sábado, 31 de julho de 2010

Correntes Quebradas





Desencaixava-se aos poucos
Do gesso pintado, do oculto semblante.
A alma superava o louco
E pude ver seus olhos, negros, de amante.

Frente a cada novo suspiro, me dava um sorriso
Fitou-me, e transparente tornava-me.
Até que finalmente caiu o manto corroído
E apenas seu puro e real eu via a frente, incólume.

Palavras soaram silenciosas, altos sons inaudíveis.
Porém, a elas eu conseguia claramente escutar
Através delas, surgiam os sentimentos incríveis
E nos seus braços, pude finalmente relaxar.



Imagem:
Balinese Mask by Hengki24. From Deviantart.
Leia até o fim...

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Lê e Beto


ㅤㅤ ㅤㅤ 1.
ㅤㅤ
ㅤㅤ - Mas... Como assim, Carlo Alberto? - Gaguejou Henrique.
ㅤㅤ - É, desculpe por ser tão repentino. Foi apenas uma decisão minha.
ㅤㅤ E recuou alguns bons passos, olhando em volta. A sala do seu supervisor era bem caprichada, se fosse comparada com as pequenas cabines dos funcionários menores, como o próprio Carlo. Tinha uma mesa grande, poltrona confortável e um ar condicionado apenas para ele. Tudo isto, fora uma bela vista de todo o departamento, onde ele podia pregar os olhos na tão desejada secretária Sônia, com qual quase todos já tinham flertado. A funcionária dedicada e séria iria se casar no final do ano, e ninguém acreditava em como uma beleza estonteante daquela poderia ser de um homem só. Era muito, demais. Também havia dali uma linha de internet segura, por onde Henrique poderia navegar em qualquer site, sem ter os típicos bloqueios que eram impostos aos trabalhadores padrão.
ㅤㅤ Tudo aquilo já poderia ter sido de Carlo. Tudo.
ㅤㅤ Mas ele nunca desejou mais do que seu mero e tranquilo trabalho. De modo que, quando lhe fora oferecido o cargo, ele recusou no mesmo instante e ofereceu ao seu melhor amigo. Ou pelo menos, a única pessoa com quem conversava mais do que poucas palavras. Henrique sentia-se sim endividado com o amigo. E aquela notificação o havia atingido com tamanha surpresa que ele nem sabia direito o que falar. Carlo recuou mais alguns passos, já indo na direção da porta.
ㅤㅤ – Em breve passo aqui para assinar as papeladas todas. - Ele disse, enquanto tocava na maçaneta. Henrique levantou-se de supetão. - Talvez tenha de ir na sua casa pra terminar essas coisas. Não gostaria muito de voltar aqui.
ㅤㅤ – Calma, Carlo! Calma, calma! Porque se demitir assim do nada? Fiz algo que não te agradou? Ou talvez arranjou finalmente algum emprego melhor? Me conta, não é justo esconder essas coisas de mim, eu que te convidei a ser padrinho do meu casamento. E eu que sempre te contei quase todos meus problemas. Porque quer sair, cara?
ㅤㅤ O homem respirou fundo e olhou pela janela, para os funcionários quebrando a cabeça.
ㅤㅤ – Eu já te falei uma vez, Henrique. Que esse não é meu lugar. Que estou aqui apenas pra matar o tempo. Eu acho que finalmente já está na hora de tomar meu rumo de verdade. - O supervisor pensou nas palavras. E realmente, aquilo era algo que Carlo constantemente falava. Afinal, o que havia de tão diferente na vida dele? O amigo tinha uns trinta anos, boa aparência e um emprego que – querendo ou não – rendia bem. Mesmo assim era difícil decifrá-lo.
ㅤㅤ Se ateve a voltar a se sentar na cadeira.
ㅤㅤ – Tudo bem. - Disse, seguido de um suspiro. - Mas, você não vai se demitir. Eu estou o demitindo, assim, receberá todos os bônus e seguros que merece. Também pedirei ao chefe do departamento para lhe dar uma carta de recomendação caprichada.
ㅤㅤ Carlo sorriu. Ele quase nunca sorria, e quando o fazia, era sempre curto e sereno. Fitou Henrique com o olhar novamente, realmente era uma pena ter de se afastar daquele homem.
ㅤㅤ – Tudo bem. Faça como quiser. E obrigado pela sua compreensão, parceiro.
ㅤㅤ – Certo. Certo. Mas não espere que vai escapar de mim tão facilmente. Eu e a Mayara ainda vamos jantar na sua casa com a mesma frequencia. Tenha sempre guardado comida pra gente!
ㅤㅤ O Supervisou acenou, e o amigo respondeu com um leve menear da cabeça, enquanto abria a porta e se afastava lentamente pelos corredores de cabines. Uma das correntes estava quebrada.
ㅤㅤ
ㅤㅤ
ㅤㅤ ㅤㅤ 2.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Estava sozinha ali já fazia mais de quarenta minutos. A praça de São Pedro era um lugar agradável durante o dia, mas, com o cair da noite, geralmente alguns vândalos e gangues se aglomeravam por perto. Fazendo ela ficar silenciosamente escura. Não passava das sete, mas toda aquela ausência de gente dava a impressão de já passar de meia noite.
ㅤㅤ Letícia balançava os pés levemente, sentada no banco de ferro surrado e enferrujado pelos anos que caíram sobre ele. A garotinha não aparentava ter mais de dez anos, pequena e inocente, era dona de uma pele alva linda e de olhos azuis gritantes que mesclavam-se perfeitamente com seus cachos loiros. Soltou um suspiro, aquela noite estava demorando a passar.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Desistiu de apenas ficar esperando e saltou do banco, enquanto arrumava o pequeno vestido que usava. Virou-se para a calçada e começou a caminhar pelos arredores da praça. Pelas ruas escuras do bairro de Santa Luísa. E em sua breve procura, finalmente teve resultados. Um pequeno grupo de adolescentes estava parado na esquina, todos num mesmo padrão: Pele escura, roupas folgadas, bonés virados e corpos envergados para frente ou para trás.
ㅤㅤ Um sorriso formou-se no seu interior e ela simplesmente continuou andando, de encontro a esquina e a gangue. Não bastou muito para ser abordada, logo um dos garotos chamou por ela, e ela prontamente o ignorou, virando-se para a rua, aguardando o sinal abrir. Mesmo que não houvesse nenhum carro para aguardar passar.
ㅤㅤ – Falei com você, guria! - O garoto retrucou ao silêncio dela se aproximando, junto de seus lacaios fanfarrões. - Tá me ouvindo não?
ㅤㅤ – Hm? - Letícia virou-se para eles, com a cara mais inocente que tinha.
ㅤㅤ – Hahaha. Agora ouviu, né? - Um círculo começava a se formar em sua volta. - O que uma pirralha feito você tá fazendo por aqui? Tem medo não?
ㅤㅤ – Eu... eu.. eu me perdi. - Ela disse, com um tom que expressava medo e insegurança.
ㅤㅤ – Mal dia pra tu, né guria. Que tu tem aí pra me dar? - Ele sorriu, encurvando um pouco o corpo na direção dela. Letícia recuou um passo, procurando olhando para os lados, como que procurando por auxílio, só achando rostos rindo dela.
ㅤㅤ – Eu... eu...
ㅤㅤ – Bora guria! Tenho a noite toda não!
ㅤㅤ A menina se lançou contra uma abertura entre dois garotos e escapou do círculo numa incrível agilidade. Ouviu gritos atrás dela enquanto ela corria e virava na primeira curva que encontrava. Um beco sem saída estava bem a frente, e ela fez questão de correr até o final pra ver que não havia por onde sair.
ㅤㅤ A risada em coro veio do grupo atrás dela. Que já fechava o beco e se aproximava.
ㅤㅤ – Que otária! Além de retardada você não tem senso de lógica, né? - Disse o mesmo garoto de antes. Um adolescente metido a homem. - Entrar num beco? É pedir pra gente te pegar os dinhero e bugiganga e ainda te comer! É isso que tu quer?
ㅤㅤ Novamente o círculo se fechava em torno dela. Era tudo que ela mais desejava. Caíram perfeitamente em sua armadilha traiçoeira. E agora pensava se eles ainda viveriam para contar alguma história, ou se morreriam ali. O líder do grupo novamente em encurvou para frente encarando a menina, agora ainda segurando-a pelos braços com certa força, que provavelmente deixarias marcas na pele pálida de Letícia.
ㅤㅤ – Perguntar mais uma vez, então. O que tu tem aí, guria!? Passa agora! - Gritou.
ㅤㅤ E como resposta, os caninos acentuados surgiram na boca dela e morderam com gosto a jugular do vândalo. Fazendo questão de deixar ele gritar alto, antes de lhe tapar a boca. Os amigos em volta estavam imóveis, não acreditando na situação. Demorou um pouco para um pânico tomar conta deles, e mais um pouco para novamente o silêncio se fazer.
ㅤㅤ
ㅤㅤ
ㅤㅤ ㅤㅤ 3.
ㅤㅤ
ㅤㅤ O Telefone tocou mais cedo do que imaginou. Se fosse um dia normal, estaria chegando na casa exatamente naquele horário. Caminhou até o criado-mudo e atendeu.
ㅤㅤ – Parabéns! - Veio a voz da irmã.
ㅤㅤ Carlo Alberto riu, ela sempre fora animada, afinal de contas.
ㅤㅤ – Obrigado, mana.
ㅤㅤ – Nossa, Beto, todo esse tempo e você continua com a mesma reação para as coisas. Já tem trinta anos, sabia? Quando vai me dar um sobrinho? - A própria Ana Lúcia já tinha três filhos. Garotos bem comportados que adoravam o tio. - Bom, tudo bem. Então, o que fez hoje?
ㅤㅤ – Só trabalhei. Acabei de chegar. - Mentiu o rapaz. Estava na casa o dia todo.
ㅤㅤ – Hm, entendo. Fiquei com saudades de você, Beto, pensei que ia vir aqui pra casa. Mamãe também está sentindo sua falta. Até pensou em preparar o seu purê de batata e levar aí.
ㅤㅤ – Hah, não precisa se preocupar comigo dessa forma. Estou bem aqui.
ㅤㅤ – Certo, Beto. Felicidades pra você e muitos anos de vida! Vou passar pra mamãe.
ㅤㅤ – Ana! - A voz saiu num impulso. E sua irmã surpreendeu-se, ele não era de elevar o tom da voz dele.
ㅤㅤ – Sim?
ㅤㅤ – Eu te amo, mana.
ㅤㅤ O telefone ficou em silêncio por alguns segundos enquanto Ana Lúcia processava a informação. A última vez que ele tinha dito aquilo, era quando ela o salvara do cachorro maníaco do Seu Zé da esquina. Pensou se ele estava mal, mas acabou por descartar a idéia, mantendo a preocupação para si.
ㅤㅤ – Também te amo, Beto. - Respondeu. - Vou passar pra mamãe.
ㅤㅤ Houve novamente um curto silêncio.
ㅤㅤ – Filho?
ㅤㅤ – Oi, mãe.
ㅤㅤ – Nossa, Beto, quanto tempo! Não lembra da mãe não?
ㅤㅤ – Desculpe... Ando ocupado com o trabalho.
ㅤㅤ – Hah, tudo bem. Está corrido por aí, né? E como anda o Henrique?
ㅤㅤ – Ele tá bem. Acho que finalmente conseguiu se acostumar com o posto dele.
ㅤㅤ – Hah, o cargo de supervisor, né filho? Acha mesmo que foi melhor ter dado pra ele? Eu acho você tão mais capaz.
ㅤㅤ – Ele é o mais indicado para o trabalho, mãe.
ㅤㅤ – Tá certo. Tá certo. Olha, filho; muito amor, felicidade, alegria nesses seus próximos anos de vida, tá? Queria te abraçar bem forte, mas você tá longe demais pra isso. Então, vou só te dizer que te amo. Como sempre disse.
ㅤㅤ Carlo Alberto sorriu.
ㅤㅤ – Também te amo, Mãe.
ㅤㅤ – Se seu pai estivesse vivo ainda, eu tenho certeza que ele ia se orgulhar de você.
ㅤㅤ – Obrigado.
ㅤㅤ – Tá. Preciso ir lá cuidar do ensopado, fica com Deus, filho.
ㅤㅤ – Tchau, mãe. - E após o telefone desligar, o rapaz sussurrou calmamente. - Adeus.
ㅤㅤ O rosto estava carregado de várias lágrimas, que caíam silenciosamente pela face dele. Ele ficou ali, ao lado do telefone por mais um bom tempo. Até finalmente limpar o rosto e vestir-se. Era hora de dar adeus a todo o seu mundo. Hora de se encontrar com sua amada.
ㅤㅤ
ㅤㅤ
ㅤㅤ ㅤㅤ 4.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Os corpos jaziam todos amontoados no lixo. Geralmente, a pequena Letícia não matava suas vítimas. Apenas tomava o sangue que achava necessário, e depois as largava, caídas nos becos. Para acordar no dia seguinte com uma bela sensação de ressaca que nunca ocorreu. E talvez essa fosse a razão de nunca notícias se espalharem sobre seus atos.
ㅤㅤ Mas aqueles garotos mereceram o final que tiveram. Três estavam apenas desacordados, mas os dois mais abusados perderam tanto sangue que nunca mais abririam os olhos. Lambeu os lábios, limpando o último resquício de sangue que havia ali. E começou a caminhar, era hora de encontrar seu amado.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Quando subitamente, ouviu um barulho vindo do fundo do beco.
ㅤㅤ
ㅤㅤ
ㅤㅤ ㅤㅤ 5.
ㅤㅤ
ㅤㅤ O marcante dia em que tudo aconteceu nunca saiu da mente de nenhum dos dois. Carlo Alberto - ou Betinho, como era chamado. - tinha ido a escola como sempre fora, apenas sentindo falta de Letícia, sua amiga de infância, que tinha faltado à aula. Era por sua querida amiga que ele guardava sua paixão, a primeira paixão de um garoto.
ㅤㅤ Ele sempre foi um garoto quieto e sereno, nunca dando mais que poucas palavras para quem vinha conversar com ele. Mas, mesmo assim, ele ainda conseguia ser bem conhecido na sala e no colégio. Sempre o chamavam para jogar futebol, ir ao cinema, e outras coisas do tipo. E ele quase sempre ia, embora sempre optasse por ficar junto de Letícia. A paciência que ele tinha em ouvir todas as histórias da falante menina era incrível, ficava lá, sorrindo e meneando a cabeça em concordância. Era a parceira perfeita.
ㅤㅤ Tamanha era a ligação entre eles, que quando ela faltava, ele sentia-se solitário ao extremo.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Passou a tarde estudando, o que talvez fosse a única coisa que lhe interessava realmente. Era fascinado pelo mundo da leitura, e saltava entre os livros receitados pelo colégio para outras ficções medievais e histórias de terror. A irmã dizia que ele era doente por não querer atazanar todos da casa e saltar feito um louco pela sala. O que era típico de irmãos mais novos.
ㅤㅤ Ao início da noite, o telefone tocou. Dona Rita, trabalhadeira dona-de-casa, se apressou a atender. Falou apenas algumas poucas palavras, e finalmente chamou Carlo.
ㅤㅤ – Betinho! É a mãe da Lê! Quer falar com você.
ㅤㅤ Saltou por imediato dos livros e do sofá e pegou o telefone.
ㅤㅤ – Alô?
ㅤㅤ – Betinho. Oi, Betinho. Desculpa te ligar assim do nada. - Ela parecia nervosa. - Mas é que é meio urgente, sabe?
ㅤㅤ – Aconteceu algo com a Lê? - Sempre era direto, o jovem Carlo Alberto.
ㅤㅤ - ... - A mãe de sua amiga pareceu muda ao telefone. - Eu devia ter falado com você antes, até porque vocês dois vivem andando juntos por aí. Ela sumiu ontem de noite, e ainda não a achamos. Já falamos com a polícia e com as amiguinhas dela aqui por perto, mas ainda não a encontramos. Eu pensei que você poderia saber de algo... Você não viu ela ultimamente?
ㅤㅤ O garoto demorou um pouco até processar toda aquela informação.
ㅤㅤ – Vou procurar por ela. Agora. - Ele disse repentinamente, desligando o telefone a seguir.
ㅤㅤ Mas era lógico! A Letícia não faltaria aula sem contar para ele antecipadamente. Não iria também fugir de casa sem falar nada para ele. Alguma coisa muito mal estava acontecendo para ela ter desaparecido assim. Agindo por puro impulso, pegou um casaco seu jogado no sofá e saltou pela porta, ignorando os gritos da mãe atrás dele. Não era hora de ligar para a preocupação dos outros, era hora de se preocupar com sua amada.
ㅤㅤ Entretanto, não foi preciso ir muito. Mal virou a esquina e deparou-se com ela. Parou e assustou-se, o Carlo Alberto arfante. A menina parecia bem, as roupas dela estavam sujas, mas ela mesmo não parecia machucada. Foi apenas após alguns segundos que ele notava as mudanças nela. Sua pele estava mais pálida que o normal, assim como os olhos azuis agora pareciam reluzir no escuro; a pequena Letícia parecia carregar algo de anormal consigo. Algo de diferente que Carlo nunca antes vira.
ㅤㅤ A menina, com o olhar entristecido, não disse nada.
ㅤㅤ – Onde você estava? Sua mãe acabou de me ligar. - Falou ele em um tom acima do comum.
ㅤㅤ – ...
ㅤㅤ – Todos estão preocupados com você, Lê! Onde você foi?
ㅤㅤ – Eu...
ㅤㅤ – O que aconteceu? - Disse finalmente, e agora Carlo deu tempo para ela responder. A menina se aproximou com passos leves e o abraçou com força. Já fazia muito tempo desde a última vez que recebera um abraço dela, o garoto corou de leve com o ato repentino.
ㅤㅤ – Preciso de sua ajuda.
ㅤㅤ Foi tudo que ela falou.
ㅤㅤ – Tudo bem. Vou te ouvir.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Assim como combinado na noite anterior, Carlo se postava em frente a estação abandonada. Era a casa mais antiga de todo o bairro, e já estava inabitada fazia tempo. Era dito que a casa era assombrada, mas muitas vezes, mendigos dormiam ali em dias de frio. Estava quase para anoitecer, o horário combinado para o encontro dos dois.
ㅤㅤ Carlo passou pelo portão e avançou até a porta velha. Ela estava emperrada, e o garoto acabou por ter de fazer uma força enorme para movê-la o suficiente para poder adentrar. Ali dentro, tudo estava como deveria estar: Móveis velhos e empoeirados, Pinturas desgastadas e ratos e insetos se esgueirando com o som que ele tinha feito. Apenas um pouco de luz adentrava o local, fazendo-o ficar sombrio, mesmo que ainda houvesse sol lá fora.
ㅤㅤ Letícia não parecia estar ali. Ele deu mais alguns passos, com a madeira estalando a cada passo que ele dava sobre elas.
ㅤㅤ – Lê?
ㅤㅤ A resposta veio num sussurro.
ㅤㅤ – Beto.
ㅤㅤ – Lê? Cade você?
ㅤㅤ – Aqui em baixo, Beto.
ㅤㅤ O menino identificou o local da onde vinha a voz dela. Saia de uma pequena escadaria ao canto da recepção da estação, que provavelmente dava para um porão que servia de depósito, na época em que a ferrovia ainda passava por ali. Carlo correu até as escadas e dali avistou a garota.
ㅤㅤ Letícia estava lá, encolhida num canto escuro ao extremo, abraçando as pernas dobradas e afundando a face nelas, bem no final da escada. Ele nunca tinha visto sua amiga assim tão abalada, não a sorridente Letícia. Sentiu um aperto no coração e desceu as escadas para se sentar ao lado dela. Sua paciência era realmente algo de se admirar.
ㅤㅤ – Porque está aqui, Letícia?
ㅤㅤ – Eu... Não posso sair agora.
ㅤㅤ – Porque não?
ㅤㅤ – Porque não.
ㅤㅤ Carlo suspirou. A birra da menina parecia a mesma.
ㅤㅤ – Olha, Lê, eu vim aqui te ajudar. Então, eu acho que você precisa me falar o que tá acontecendo, não? Preciso saber porque está aqui, o que foi? Sua mãe brigou com você? Seu pai bateu em você? Tem que me contar.
ㅤㅤ – Eu... - E ela pareceu juntar coragem e as palavras certas. - Anteontem, quando eu voltava pra casa depois de ter brincado com você no parque, um homem tentou puxar assunto comigo na rua. Já era noite, e eu simplesmente ignorei ele, como a mamãe sempre dizia pra eu fazer com estranhos. Passei reto por ele e continuei os meus passos.
ㅤㅤ "Mas, quando ele notou que eu não daria bola para o que quer que ele dissesse, eu acho que se enfureceu comigo. Com uma rapidez que nunca vi antes, ele me agarrou e tampou minha boca enquanto me carregava. Eu quase não conseguia ver o que acontecia em volta, tudo passava muito rápido. E, quando menos notei, ele me jogou pra dentro da estação pela porta dos fundos. Foi ali que pude ver ele direito.
ㅤㅤ Era um sujeito de pele branca de morrer, tinha os olhos escuros fortes e uma expressão de dar medo em qualquer um. Ficou alguns segundos me observando, enquanto eu me levantava e tentava sair pela porta da frente. Mas ela estava emperrada, como você viu. Ele murmurou algumas coisas e eu não consegui entender nada. E no instante seguinte, ele estava em cima de mim, mordendo meu pescoço.”
ㅤㅤ – Mordendo seu pescoço? - Carlo perguntou, incrédulo.
ㅤㅤ – É. E não só mordeu, como começou a chupar meu sangue. - Ela movimentou o rosto e retirou as mechas loiras dos ombros, mostrando a marca roxa e os buracos na pele ainda presentes. - Foram minutos terríveis em que esperneei e gritei tentando me soltar dele. Mas nada foi possível. Depois, eu não me lembro direito o que aconteceu. Eu meio que desmaiei, e me lembro de algumas poucas coisas. Senti um gosto estranho na boca, parecia que bebia algo. E, quando acordei de novo, já era de manhã.
ㅤㅤ "Eu estava exatamente aqui. Onde estou agora, e a luz do sol começava a nascer. Dei graças a Deus por estar viva ainda e comecei a subir as escadas. Não havia sinal do homem pálido, mas, quando eu estava para passar pelos últimos degraus, a luz do sol veio pra cima de mim como nunca tinha vindo. Senti dor e não enxerguei nada. Fechei os olhos com força e rolei escada a baixo.
ㅤㅤ Foi então que eu notei, Beto. Eu virei uma vampira.”
ㅤㅤ – V... vampira? - Carlo Alberto ainda não conseguia falar muita coisa.
ㅤㅤ – É. Ou pelo menos, eu não consigo sair no sol sem me queimar feio. E estou preferindo muito mais a noite que o dia. Tanto que me dá sono apenas ao amanhecer. Acho que comecei a enxergar melhor de noite, e me sinto bem no escuro.
ㅤㅤ – Vampira? - Repetiu a pergunta.
ㅤㅤ – É! Beto! - Explodiu a menina que tentava conter seu desespero. - O que eu faço agora? Eu não posso simplesmente voltar pra casa e falar isso para os meus pais! Não dá! Nunca mais vou poder fazer nada que eu fazia!
ㅤㅤ As lágrimas começaram a rolar pelo rosto dela. E o choramingo cresceu até ela derramar lágrimas aos montes enquanto gritava seu desespero.
ㅤㅤ – O que eu faço, Beto? O que eu faço?
ㅤㅤ O garoto apenas a abraçava. Deixava-a em seus braços e notava como agora ela estava fria, parecia que o corpo dela realmente morrera. Mas isso não mudava o que sentia pela menina. Aninhou-a mais contra si, e sussurrou para ela.
ㅤㅤ – Sempre estarei com você.
ㅤㅤ – ... - Ela conteve um pouco dos berros, deixando apenas para chorar nele. E, depois de alguns minutos, finalmente falou. - Verdade?
ㅤㅤ – A mais pura verdade. Vou sempre estar com você. Eu vou continuar a viver por mais um tempo, eu tenho que crescer. Até uns trinta anos, eu acho. Para que você possa ter um adulto ao seu lado. Afinal, vampiros não crescem.
ㅤㅤ E a notícia pegou até Letícia de surpresa. Fazia sentido. Ele era o leitor assíduo de ficção.
ㅤㅤ – Vou crescer, e sempre virei ver você. E quando completar meus trinta anos, eu quero que me transforme em vampiro. E então, eu posso ficar do seu lado pra sempre. Tá bom?
ㅤㅤ – ...Tá. - Ela falou, hesitante.
ㅤㅤ – Lê.
ㅤㅤ – Oi?
ㅤㅤ – Eu te amo.
ㅤㅤ - ... - A garota, se ainda pudesse, provavelmente ficaria vermelha de tão envergonhada. Apenas sorriu e desviou o olhar para os braços do menino. - Bobo.
ㅤㅤ – Vamos sair daqui. Precisamos achar um lugar melhor pra você.
ㅤㅤ – Tá.
ㅤㅤ E, quando eles se levantaram e saíram daquele pequeno espaço entre o pé da escada e a porta, o sol estava quase se pondo no céu. De modo que Letícia apenas sentiu um leve incômodo ao passo que subia as escadas, até a grande estrela incandescente sumir no horizonte.
ㅤㅤ
ㅤㅤ
ㅤㅤ ㅤㅤ 6.
ㅤㅤ
ㅤㅤ O local combinado era o topo do morro dos Irmãos. Só uma pequena ruela escondida levava casais apaixonados para o topo da elevação de terra, da onde podiam ver todas as luzes da linda cidade. Mas aquela era uma terça-feira, e nenhum casal estava disposto a sair no meio da semana. O que fazia de Carlo Alberto, o único a estar por lá. Sentou no banco de ferro velho e ficou a esperar por sua amada Letícia.
ㅤㅤ As horas se passaram rapidamente. E já estava além do horário de sua pequena amante chegar. Podia ela se atrasar tanto num dia tão importante para eles? Custou muito para Carlo descobrir se as lendas sobre como ocorre a vampirização eram reais, e mesmo assim, ele ainda não tinha total certeza. Era uma noite muito importante para tentar o que tentavam. Olhou no relógio e constatou que a data de seu aniversário havia se passado. Respirou fundo e ficou apenas olhando para a cidade. Em breve a veria de outra forma.
ㅤㅤ Mal notou quando cochilou. Talvez um sono atrasado o tivesse abatido, das últimas noites que gastara conversando com Letícia horas a finco pelo celular. De modo que, quando acordou, pareceu realmente ter sido uma leve soneca. Letícia estava sentada ao seu lado, com um leve sorriso na face; A mão gelada da vampira estava sobre a sua, e seus corpos estavam bem juntos. A menina tinha a mesma aparência que a de tantos anos atrás. Carlo sorriu para ela e olhou no relógio. Já estava para amanhecer.
ㅤㅤ – Desculpe-me o atraso. - Ela disse, como se percebesse o que ele iria perguntar. Virou-se para ele e alargou um pouco mais o sorriso. - E feliz aniversário.
ㅤㅤ – Meu aniversário já passou. E acho que vamos precisar deixar nossas experiência para outra noite, Lê. Já vai amanhecer, acho que dormi demais aqui.
ㅤㅤ Ela permanece em silêncio, serena. Desde que se tornara uma vampira e vira tudo a sua volta mudar, enquanto ela ficava da mesma forma, ela tinha mudado de personalidade, embora sua essência fosse a mesma de sempre. Guardou para si toda a dor de não poder ver mais nenhum ente querido seu, e chorou suas mágoas apenas nos braços de Carlo. Durante tanto tempo.
ㅤㅤ – O que você viu de especial em mim, Beto?
ㅤㅤ – Como?
ㅤㅤ – É, isso mesmo. Só queria saber, depois de tanto tempo me bateu a curiosidade.
ㅤㅤ – Hah, entendo. - Ele riu, e pareceu pensar um pouco. - Eu acho que é por você ser justamente o oposto do que eu era, e mesmo assim ficar tão próximo de mim. Me intrigava em saber como você pensava, em como você agiria a cada ato meu. E isso acabou me conquistando. Quando menos pude notar, sorria pra você feito um abobado.
ㅤㅤ Letícia riu, deixando sua cabeça pender no peito dele.
ㅤㅤ – Acho que comigo foi bem parecido. Você sempre foi o misterioso de nós dois.
ㅤㅤ – Ei, você é a vampira, e eu sou o misterioso?
ㅤㅤ Riram juntos.
ㅤㅤ – É, realmente, somos um casal bem incomum. Mas eu não acho que está errado, esse nosso relacionamento, não é, Beto?
ㅤㅤ – Definitivamente não. Eu nasci pra te conhecer.
ㅤㅤ – Bobo. - Respondeu rapidamente.
ㅤㅤ Passaram mais alguns minutos em silêncio, apenas trocando as carícias de sempre. Carlo beijou-a como sempre beijava-a e ambos se amaram naquela madrugada. E então, com ambos deitados no banco de ferro – ela por cima dele –, que finalmente Carlo suspirou.
ㅤㅤ – Vamos deixar para amanhã a noite, Lê. Não dá mais tempo, preciso te colocar no porta-malas do carro pra esconder-te do sol. - E ele tentou se mover. Mas a sua amada não saiu do lugar. - Lê?
ㅤㅤ – Sabe, Beto. Eu matei uma criança e a mãe dela esta noite. Eles acabaram vendo tudo que eu fiz com meu alimento de hoje, eu não podia deixá-los vivos, observando da janela do prédio onde estavam.
ㅤㅤ Carlo não respondeu de imediato.
ㅤㅤ – Eu... Eu não quero essa vida pra mim, Beto. Acho que decidi isso agora.
ㅤㅤ – Como?
ㅤㅤ – É, meu amor. Isso mesmo, hoje vou ver o raiar do sol, como não vejo a muito tempo. E vou finalmente te deixar livre de todo esse sofrimento pelo qual você passou. Vai poder rever seus amigos, vai poder rever sua família, e vai conseguir achar um novo amor.
ㅤㅤ Carlo Alberto não respondeu. E Letícia compreendeu todo o silêncio dele. Afinal de contas, qualquer outro amante no mundo faria uma algazarra. Mas ele era diferente demais para fazer qualquer alarde. Finalmente, as mãos dele a abraçaram enquanto ele se colocava sentado, com ela no colo. Letícia se viu de frente ao seu amor, como se ambos fossem do mesmo tamanho. Beto a beijou novamente, com uma paixão imensa. Para finalmente terminar o carinho com um sussurro para ela.
ㅤㅤ – Eu disse que sempre estaria com você.
ㅤㅤ Letícia sorriu, em meio a um mar de lágrimas que ambos derramavam.
ㅤㅤ
ㅤㅤ
ㅤㅤ ㅤㅤ 7.
ㅤㅤ
ㅤㅤ A vampira beijou uma última vez seu amante, e logo depois trocou algumas poucas palavras com ele. Logo depois, aproximou seu rosto do pescoço dele e abriu o boca, revelando seus caninos matadores. Mordeu o pescoço dele gentilmente, enquanto ele a abraçava, e começou a tomar o sangue de seu amor. Aquela que seria sua última presa, o sangue de seu amado em suas veias. Não havia mais palavras, eles apenas trocavam os sentimentos que sentiam um pelo outro.
ㅤㅤ E então, começaram a surgir. O sol, resplandescente, surgiu no horizonte, lançando seus primeiros raios sobre a cidade toda. Beto sentiu seu corpo fraqueja, seu sangue estava quase todo indo embora, e sua amada parecia começar a sentir os efeitos também. O sol queimava-a lentamente pelas costas, e conforme a intensidade dos raios aumentava, ela parecia sentir mais seu poder. Mas nenhum dos dois sentia realmente dor, o amor deles prevalecia sobre aquele supérfluo sentimento.
ㅤㅤ Agora, Beto estava pálido e seus braços caíam sobre o banco. Ao mesmo tempo que sua amada, já estava quase toda em cinzas. O corpo dela se desfazia na sua frente, mas ele ainda podia senti-la junto de si. Fechou os olhos ao mesmo tempo que ela.
ㅤㅤ
ㅤㅤ E junto, eles se encontraram no paraíso. Porque ele sempre estaria junto dela.


FIM
Leia até o fim...

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Emoldurada




Num mar de pura e única beleza,
perdido? Jamais poderia estar.
Lá existia. Postava-se; ereta e coesa.

E delineado na face, o eterno sorriso,
lisa como a neve, o meu ser iluminava

Mesmo agora imóvel, de alguma maneira
meu peito, ainda por ela batia
Presa sobre a moldura, linda, afastava a poeira.

Com leves passos, o meu amor suplantado.
Emoldurada.
Leia até o fim...

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