Em uma pequena vila, nasceu um garoto surdo. Ele tinha aprendido a conviver com sua deficiência e levava uma vida comum, sem maiores complicações. Entretanto, talvez por se subestimar demais, o garoto acabou por não ter nenhum sonho ou meta para a própria vida. Vivia por viver, deixando que cada dia que passasse fosse o máximo parecido com o anterior.
Até que um dia, chegou na pequena vila um jovem artista, um músico de sucesso que veio para o interior em busca de inspiração para novas melodias. A princípio, o garoto considerou aquela notícia como outra qualquer, afinal, já tinha se acostumado com o fato de não poder ouvir. De não saber como era a música. Mas um fato inesperado ocorreu quando ele foi assistir à uma apresentação do músico. Tinha ido por insistência dos amigos que quase o puxaram para fora de casa, e agora, estavam reunidos em volta de uma grande clareira que ficava na floresta ao lado do vilarejo. Pessoas se agrupavam, em volta de uma fogueira, e logo o músico apareceu, carregando seu belo Violino. O garoto, como não tinha um dos cinco sentidos, acabou por apurar todos os outros, e por causa disso, sua visão captava coisas que muitas outras pessoas não captavam. E talvez esse fora seu grande infortúnio. Quando o músico começou a tocar, o pequeno garoto pôde notar claramente as emoções do músico. Os sentimentos dele encheram seu coração de uma forma inesperada, como se uma aura de alegria exalasse do instrumento e do próprio músico. Mesmo não ouvindo, o garoto teve certeza: Aquela era a melhor canção que já ouviu em sua vida. E aí começa seu desespero, ele gostaria de ouvir a música. Uma curiosidade que nunca tinha tido apareceu em seu peito e começou a crescer de forma avassaladora, como era ouvir uma música daquelas? Certamente seria maravilhosa a sensação. Mas, ele nunca ouviria aquilo, certo?
Depois do dia do concerto do violinista, o jovem Garoto começou a vivenciar a tempestade mais violenta de sua vida. Começou com um simples e silencioso sofrimento, que não compartilhou com ninguém. Mas o sofrimento aumentou e expandiu-se, de modo que houve um momento, em que ele não conseguiu mais esconder sua angústia. A vontade de querer ouvir nasceu dentro dele e agora não queria voltar à adormecer. Perguntou aos pais sobre cura, algo que nunca havia perguntado antes. Sua resposta foi um triste balançar negativo com a cabeça.
Sem algo em que se apoiar, o garoto começou a andar pelas ruas com um grande fone de ouvido tocando músicas do violinista em volume máximo. Era a última palha de esperança do menino, caso não fizesse aquilo, não poderia seguir em frente, pois seu único sonho estaria destruído pela impossibilidade.
Irônico, não era? Pensou outro dia. O único sonho que tivera em sua vazia vida, era o único que não podia realizar.
A vida seguiu, e o garoto voltou a monotonia dos dias. Não estudava, e para compensar, ajudava o pai na plantação e a mãe, com as atividades domésticas. Mas nem por isso deixou de estar com o fone de ouvido junto dele. O brilho do seu olhar, que já era pouco, se tornou quase inexistente, tudo graças à uma vontade. Ele pensou naqueles dias consigo mesmo “ Porque sonhos e vontades existem? Para mim, só servem para sofrer. ”. Outono, Inverno, Primavera, Verão; o tempo passou num piscar de olhos para o vilarejo, embora para o garoto, pareceu cada dia ter durado uma eternidade. Os amigos, aos poucos, começaram a se afastar do garoto, ele não tinha mais graça. Tinha perdido o pouco que tinha e agora era chato e bobo, como diziam as crianças. Mas nem mesmo o garoto não se importava, adotou como amiga, a solidão do silêncio, como ele mesmo quis nomeá-la. E junto dela, aquela vontade de poder ouvir, que nunca desaparecia.
POW!
Enquanto tinha um de seus momentos de reflexão, após ajudar o pai a colher o milho, uma bola de futebol acertou sua cabeça em cheio. O fone saiu de seus ouvidos, voando longe e ele ficou meio desorientado por um segundo. Virou-se para encarar que havia chutado. Segundos depois, da direção para qual olhava surgiu uma garota de cabelos encaracolados castanhos vestindo um macacão todo sujo. O garoto fixou nela um olhar de raiva por um instante, para logo depois ir até seu fone e colocá-lo novamente no ouvido. A garota pegou a bola e foi até ele, falando algumas coisas. Mas ele não podia ouvir. No fim, a garota emburrou a cara, virou-se e correu para o meio do matagal novamente.
No outro dia, ele tinha feito a mesma coisa. Era época de colheita, e por isso, ele e o pai tinham de fazer a mesma coisa durante alguns bons dias, para garantir que o dinheiro entraria para eles no fim do mês. E novamente, quando o trabalho se encerrou, parou no meio do matagal, recostado no espantalho, deixando seus triste pensamentos fluírem. Já estava no meio de uma discussão assídua com a solidão do silêncio quando a mata à frente se moveu e logo, a garota do dia anterior apareceu, parecendo vestir o mesmo macacão. Só que agora estava sem a bola, no lugar dela, carregava um caderno nas mãos. O garoto moveu seus olhos para ela, e quando se fixou na garota, ela abriu o caderno, mostrando a primeira página.
“ Desculpe, não sabia que era Surdo. Pensava que tinha me ignorado ontem. ”
Ele apenas balançou a mão na direção dela. O que, por linguagem corporal significaria algo como:
“ Tudo bem. ”
A menina pareceu ter captado a mensagem dele, de modo que abriu um sorriso e se aproximou do garoto, sentando ao lado dele. Ficou em silêncio por um breve segundo, olhando para a direção que ele olhava. E então, pegou do bolso uma caneta tinteira, virou a página e escreveu na próxima:
“ Sem querer me intrometer, já me intrometendo, porque fica com o fone de ouvido? ”
Ele pediu a caneta dela e escreveu, usando o restante da folha.
“ Desejava poder ouvir. ”
A garota sentiu-se constrangida consigo mesmo, coisa que podia ser notada pelas bochechas que se avermelharam de vergonha. E desviou o olhar, tentando esconder a face. Afinal, tinha tocado num assunto delicado, ao qual ela não podia fazer nada. Ou podia? Ficou imóvel por alguns segundos, e nesse tempo, o garoto se levantou e foi caminhando em direção a casa dele. Virou-se para trás e acenou para a garota. Afobada, a garota levantou-se rapidamente e correu até ele, ficando parada à sua frente. Rabiscou algo no caderno com pressa e logo em seguida empurrou ele na cara do garoto.
“ Sou Sophia. E você? ”
Parou alguns instantes, e logo depois, pegou o caderno das mãos dela e respondeu.
“ Sou Thomas. ”
E antes que ele pudesse voltar a andar, ela escreveu novamente, e mostrou a ele.
“ Posso voltar aqui? Para conversar com você mais vezes? ”
A pergunta era inesperada, de maneira que o garoto não soube como responder. Sem que percebesse, meneou a cabeça positivamente para a garota, e em seguida, voltou a andar. Não viu mais ela naquele dia, pois saíra correndo após a resposta dele. Os passos de Thomas ficaram mais lentos enquanto pensava. Afinal, o que ela havia visto de interessante nele? Decidiu deixar para pensar naquilo outro dia. E entrou em sua casa.
Thomas já estava quase desistindo de esperar ali, sentado abaixo do espantalho. Ela não viria, pensou ele. O que diabos ele estava pensando, afinal de contas? Se desiludiu e levantou-se para ir embora. Começou a caminhar em direção à casa, quando uma pedrinha acertou seu ombro e caiu na sua frente. Virou para trás e lá estava ela, sorridente, com uma caixa de madeira em baixo de um dos braços. E com o caderno aberto no outro. Levantou a folha para ele.
“ Xadrez? ” - Disse ela com a folha, e logo depois levantou a caixa do outro braço.
“ Sim. Pode ser. ” - Ele fez com a cabeça. E voltou para sentar-se junto da garota.
Sophia era uma craque em jogar xadrez, pelo que parecia. Mas Thomas tinha ao seu lado um grande aliado, o silêncio. De modo que o jogo corria acirrado desde o primeiro segundo. Ninguém dizia nada, e não era porque Thomas era surdo. Eles estavam pensando mesmo. A cada jogada, um suspiro escapava de um deles e uma nova estratégia precisava ser bolada.
O jogo estava em um momento quase crítico, com Thomas possuindo dois peões, uma rainha e um cavalo. Enquanto Sophia tinha a rainha, um bispo e as duas torres. Ela olhou para ele enquanto ele pensava no movimento, e logo depois escreveu algo no caderno.
“ Gosta de Xadrez, certo? ” - Mostrou ela.
“ Não. ” - Respondeu claramente com a cabeça.
“ E como joga tão bem? ” - Outra folha.
“ Não sei. ” - Veio a resposta, com Thomas abrindo as mãos, inclinando a cabeça e levantando os ombros.
“ Então, o que gosta de fazer? ” - Disse ela. Enquanto via ele movimentar a rainha.
“ Não sei. Talvez escutar música. ” - Falou, fazendo o mesmo movimento de antes e apontando para o fone de ouvido jogado no canto.
“ Como assim, escutar música? Você não pode ouvir, certo? Que tipo de música você poderia escutar, então? ” - Escreveu ela, para depois movimentar o bispo, engolindo com gosto o cavalo de Thomas.
“ A solidão do silêncio.” - Respondeu ele, escrevendo rapidamente na folha dela. Para logo depois mover a rainha à frente. Não tinha gostado de perder o cavalo.
“ E isso é bom? ” - Escreveu ela, com um sorriso maroto na cara, por que logo em seguida uma torre se deu ao belo trabalho de devorar a rainha de Thomas por inteiro.
“ Não sei, não posso escutar. Mas ela é minha amiga. ” - Escreveu com uma cara emburrada, não previa que perderia seu Ás da manga assim tão facilmente.
“ Mais amiga que eu? ” - Escreveu. E Xeque-Mate.
Naquele momento, nem a derrota no jogo interessou Thomas. Uma coisa mais interessante encheu sua cabeça de conclusões sobre coisas que já conhecia e dúvidas que surgiram a partir dali. O garoto notou que em todo e qualquer momento que passava com Sophia, a Solidão do Silêncio deixava de existir, como se esquecesse dela completamente. Ficou pensando naquilo por um bom tempo, perdido em seu próprio mundo. Demorou para notar o caderno dela se agitando na frente dele.
“ Tenho que ir, Perdedor. Espero que seja melhor com Damas ou Gamão. ”
Dizia o caderno. Viu a garota sumir no meio do matagal da plantação,e respirou aliviado, enquanto sentia um peso sair das suas costas. Tinha feito uma amiga de verdade, certo? Uma que não o trairia por causa de sua depressão, certo? A resposta positiva daquelas duas perguntas o tentavam. De maneira que ele soltou um belo sorriso. Um, que não dava já fazia vários meses, talvez desde o dia em que viu o Violinista pela primeira vez. E, pensando nisso, a vontade de ouvir veio novamente. E a Solidão do Silêncio novamente pousou em seus ombros, voltando à dar a ele o fardo de sempre.
E daquela vez, a Solidão do Silêncio tinha vindo com força, como se quisesse tirar o atraso pelo tempo afastado do garoto. Thomas, depressivo e com o fone nos ouvidos, ficou sem sair de casa por alguns dias. Isolado do resto mundo. De modo que não foi se encontrar mais com Sophia. Talvez a única coisa que talvez o ligasse ao mundo fosse o sentimento de culpa por deixa-la esperando. O tempo continuou a passar, e, depois de duas semanas, parece que finalmente a Solidão do Silêncio deu uma tregua à ele. Ao mesmo tempo, a mãe pediu para ele ir comprar algumas coisas na conveniência da cidade. Saiu de casa com a lista no bolso e os fones no ouvido.
Não ficava tão longe, tanto que dez minutos depois de sair, Thomas já estava voltando com as compras nas sacolas. Andava sem pressa alguma, quando uma mão tocou seu ombro, virou-se e lá estava Sophia. Imaginou que estaria brava com ele, mas na face dela, viu uma expressão triste e de arrependimento. E de entender expressões, ninguém era melhor que ele. A garota não carregava nenhum caderno, provavelmente não esperava ver ele ali. Deixou os pés juntos e ficou balançando o corpo para frente e para trás com as mãos juntas nas costas, enquanto seu olhar fitava o chão.
“ O que foi? ” - Disse, com um movimento de cabeça rápido.
“ Porque não apareceu mais lá? ” - Veio da resposta, de um olhar de sobrancelhas arqueadas para ele.
“ Não sei. ” - Thomas respondeu com um balanço de ombro.
O que se seguiu foi um curto período de silêncio, que envolvia constrangimento e vergonha dos dois lados. Thomas, por não ter aparecido como combinado. E Sophia, talvez sentindo-se culpada por ter feito algo de errado da última vez que se viram. Os segundos pareciam durar minutos, até que Thomas suspirou, ele era o culpado e ela provavelmente estava chateada com ele. Recuou um passo, depois mais um. E virou-se de costas, começando a andar. Só parando depois de alguns dez passos para virar para trás e encarar a garota, ainda parada no mesmo lugar.
“ Até mais. ” - Fazia ele com um abano de mão. Ou seria um “ Adeus. ” ?
“ Não... ” - Disse ela, avançando um passo na direção do garoto que se afastava.
“ Não... ” - Mais um passo.
“ Por favor, se você partir, eu... ” - Começou a andar em um passo acelerado em direção a ele.
Talvez Thomas, naquele momento da sua vida, estivesse torcendo para que a garota continuasse aqueles passos rápidos. Talvez realmente tivesse pensado que era a última vez que se viam. Ou até mesmo, poderia estar pensando em encontrá-la no dia seguinte, agora que tinha se livrado da Solidão do Silêncio. O fato era que, independente do que ele estava pensando, tudo ocorreu tão rápido que o garoto não teve tempo de pensar em nada no momento. O que ela dizia através de seus gestos, nenhuma palavra no mundo poderia dizer mais claramente. Aquilo que ela fazia, não precisava de música, nem de melodia nem de qualquer coisa para se tornar mais forte que a Solidão do Silêncio.
“ Não se afaste de mim. ” - Dizia ela, abraçando seu braço com força.
“ ... ” - Ele a observava.
“ Porque eu... ” - Olhou-o nos olhos, com uma mescla de tristeza e felicidade.
“ ... ” - Continuou parado.
“ Porque eu acho que te amo, bobo. ” - Disse finalmente. Beijando o pequeno garoto na bochecha.
Pela primeira vez na vida dele, Thomas estava em dúvida sobre o que ela queria dizer com todos aqueles gestos. Toda a conversa mostrada acima para ele, era apenas uma das hipóteses no meio de muitas outras. Por causa disso, com a garota ainda grudada em seu braço, Thomas ficou pensando sobre o que e como deveria responder. Talvez deveria responder que não entendeu nada dos atos dela, mas não era aquilo que seu coração desejava. Uma daquelas hipóteses de todas que estavam em sua mente era a que ele mais desejava. Mas a dúvida o corria e ele não sabia o que fazer.
“ Mas o que é... ”
Numa sensação que Thomas nunca sentiu antes, uma onda de sentimentos invadiu seu corpo e mente de uma única vez. Eram pensamentos e expressões que esbanjavam amor, felicidade e alegria em cada parte deles. O garoto nunca tinha sentido aquilo, mas sabia que era uma belíssima sensação. Talvez fosse... Música? A doce melodia percorria sua mente, invadindo cada pequena porta dela mudando por completo a decoração de seus pensamentos. Sentiu aos poucos a presença da Solidão do Silêncio se esvair para nunca mais voltar e sentiu-se aliviado com o peso retirado por completo de suas costas. A melodia parecia ser tocada por um violino, mesmo que Thomas nunca tivesse ouvido um na vida, ele sabia de alguma forma. E inundava sua alma, revigorando cada parte de seu inteiro ser. Mas afinal, o que estava fazendo aquilo com ele? Piscou os olhos, e aos poucos a realidade foi voltando à ele. Piscou os olhos, e todo o jogo de luzes que pareciam iluminá-lo começou a se apagar. Piscou mais uma vez, e agora, o mundo ao seu redor foi tomando forma e cor, pouco a pouco. Piscou os olhos uma última vez, a música parou, e ele se viu de frente para Sophia, ela estava de olhos fechados com a face rosada como maçãs.
“ Também te amo. ” - Tinha sido sua resposta, com o beijo que tinha dado em Sophia. O beijo que revelou, que a verdadeira canção que Thomas estava destinado à ouvir era outra, uma bem mais forte e bela que qualquer outra que o violinista pudesse tocar. No fim das costas, sorriu para a garota, e jogou o fone de ouvido de lado, na estrada.
Fim.
Este foi meu primeiro conto. Pela minha auto-crítica, ainda preciso melhorar em muitos pontos, e agradeço à deus por pensar assim. Mas enfim, espero que leiam, e que, de coração, gostem do conto. Muitos outros virão. E a repostagem foi feita apenas para deixar o conto inteiro numa única postagem. Senão, gente problemática (Lê-se: Anne Véia) lê o conto do fim para o começo.
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