terça-feira, 31 de agosto de 2010

Olhos Vermelhos - Capítulo 9



ㅤㅤ IX
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ㅤㅤ Hideki ouviu a campainha na porta, afastou-se da sua grande escrivaninha com um impulso das pernas, fazendo sua cadeira presidencial rolar pelo pequeno quarto. Já fazia alguns bons meses desde que decidira morar sozinho, os pais acabaram o apoiando. Afinal de contas, Hideki já tinha o trabalho de programação de sistemas e o bico com os tios.
ㅤㅤ Levantou-se, deixando a sua querida companheira de todas as noites para trás. Era um complexo de três computadores e um laptop. Haviam cerca de quatro monitores no local, fora o embutido no computador portátil. Nas diversas telas, imagens diferentes, todas ligadas pela rede poderosa que ele portava. Descalço, o magro nipônico cruzou a sala da kitnet e foi até a porta, abrindo-a sem precisar conferir quem era. Naquela hora da noite, só podia ser uma pessoa.
ㅤㅤ – Oi, Hideki. - Melissa o cumprimentou rapidamente com um beijo e passou por ele. Sua face não estava nada boa. A garota, na verdade, não estava muito bem desde a tarde do dia anterior. Sentia-se pesada e com uma estranha sensação de incômodo dentro de sua própria mente. Mas, o rapaz tinha outra suposição para o porquê daquele mal-estar que a fizera marcar com ele ali.
ㅤㅤ – O Hiro tá estranho....
ㅤㅤ Confirmada a hipótese. Realmente, Melissa sempre vinha ter com ele, quando o assunto eram as fases mal dormidas de Hiroshi. Ele fechou a porta atrás dela, e sentou-se na pequena banqueta de madeira, ao lado da entrada.
ㅤㅤ – A Tia Yumi me disse a mesma coisa. Perguntou pra mim sobre ele, alias. E, desculpe por quebrar sua confiança, Lissa, mas eu não estou sabendo de nada.
ㅤㅤ A face da garota desmontou. Esperava que o primo, tão companheiro de Hiroshi, soubesse de alguma coisa. Ela deixou o corpo cair sobre o sofá, e relaxou, realmente, algo estava muito errado em toda aquela história.
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ㅤㅤ Voltando um pouco no tempo. Aquele fora realmente um dos piores dias de Hiroshi. Seus olhos abriram vacilantes naquela manhã. A mente estava trabalhando a mil por hora, segundos atrás estava transformando demônios em fumaça negra, e agora lá estava ele em sua cama. Levantou-se lentamente, e observou o corpo: nenhuma marca ou arranhão. Deixou o corpo pender para trás. Podia estar livre de qualquer ferida física, mas sentia seu psicológico frágil. Carregava toneladas na mente, era como se todo o terror que vivera agora se incrustasse no que restava de são em seus pensamentos. Estava duro manter-se lúcido o suficiente para começar a distinguir realidade de novas alucinações, e também, havia aquilo.
ㅤㅤ Uma sensação incômoda o circundava, uma aura de baixo astral e mal estar. Era como se estivesse sendo observado, como se olhos estivessem montados em suas costas e rissem de cada sofrimento e confusão que seu cérebro gerava. Ele sentia-se como se não estivesse sozinho nem dentro de sua alma, estava junto de uma má companhia, que mexia com todas as suas ações.
ㅤㅤ Manteve-se olhando para o teto do quarto por alguns segundos, e depois deitou o rosto, observando a janela do quarto. Estava intacta, mesmo sendo por ali que o primeiro demônio investira contra ele. Ficou perturbado com as lembranças, e subitamente desejou afastar-se dali, para encontrar qualquer outra coisa. Tudo a sua volta começou a causar irritações em seu ser. Vestiu a primeira roupa decente que achou e desceu as escadas com pés pesados.
ㅤㅤ – Hiro! Já acordou? Mas que rarida...
ㅤㅤ A voz da Senhorita Yumi se calou quando o filho passou reto pela cozinha, sem nem ao menos lhe dirigir um olhar. Estava estranho. O pai, sentado à mesa da cozinha, observou o gesto de descaso de seu garoto com maus olhos.
ㅤㅤ – Volta aqui, Moleque! Cumprimenta sua mãe direito! - Bradou.
ㅤㅤ Mas, como resposta, só conseguiu ouvir os passos se afastando cada vez mais. Enervado, levantou-se aos berros indo atrás do filho. Hiroshi parecia inerte a tudo que lhe ocorria a sua volta. A mãe lhe irritava, o pai também; por que nunca percebeu isso antes? Seria tão melhor que eles morressem de uma vez por todas! Os gritos do seu velho ficaram distantes de sua mente, ele abriu a porta da frente enquanto olhava para os bolsos, verificando se celular e carteira estavam ali. Quando foi avançar, deu de cara com Melissa.
ㅤㅤ Estacou na entrada.
ㅤㅤ – Oi, Hiro! - Ela disse, sorrindo.
ㅤㅤ – .... - Desviou o olhar, fechando o punho para conter aquela personalidade tão diferente.
ㅤㅤ – Que foi? Não vai me cumprimentar direito não? Vim ver como está a ferida na sua mão... Hah, seu pai está te chamando.
ㅤㅤ Foram os gritos do Senhor Hideo que o trazeram de volta àquela insanidade. Afastou Melissa com um empurrão e saiu pela porta da frente, deixando a garota abobada para trás, junto de seus pais, visivelmente preocupados com a atitude revoltosa do filho.
ㅤㅤ Que todos fossem para os ares! Quem pensavam que eram para gritar com ele!? Nem sabiam pelo que ele estava passando. E Melissa? O que diabos ela vinha fazer ali? Só de lembrar dela sentia os nervos aflorarem, afinal de contas, se não tivesse entrado na maldita estação ferroviária, talvez nada daqueles estranhos sonhos viessem a ele. Sentia que estava tudo interligado, simplesmente sabia. Garota persistente e chata, não entendia o porquê de tê-la como amiga, seria melhor se estivesse morta também!
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ㅤㅤ Hiroshi respirou fundo.
ㅤㅤ Já estava a tantas quadras distantes da casa que não ouvira nada da algazarra que ele criou no portão. O que ele estava dizendo? O que era toda aquela fúria? O garoto não era daquilo, não aquele que treinou por onze anos a filosofia de vida do Karatê, que aprendeu os cinco lemas e tentou segui-los tão fielmente. Era um homem disciplinado, de caráter e boa índole. Como pensou tão mal dos pais... e de Melissa? Ele era apaixonado pela garota! Vivera com ela por tantos anos e nunca se confessou por puro medo de perder a amizade que construíram com tanta perfeição.
ㅤㅤ Deixou o corpo apoiar-se no muro: Precisava relaxar. Esfriar a cabeça. Caminhou até o próximo ponto de ônibus que achou, e subiu na primeira condução que estacou-se a frente dele. Agora, um pouco mais relaxado, tentava ligar os fatos, compreender o que estava acontecendo com ele e um modo de voltar à normalidade. Percebeu que sempre que deixava a mente fluir livremente, os pensamentos começavam a se tornar malévolos e raivosos, como se tudo que ele era fosse por água abaixo. Tinha de se policiar. E, mais que isso, encontrar algo que o tirasse daquela pseudo-loucura. Olhou para a mão, o corte feito com a navalha dentro do quarto sujo estava estancado e envolto por gaze. O nipônico sentia extremo mal estar, sempre que direcionava os pensamentos para a cena, ou sempre que se concentrava demais na ferida.
ㅤㅤ Como fora companheiro de Melissa por todos estes anos, ele não duvidava de algo místico. De alguma coisa além do normal estando apossado nele, fora isso, ele não tinha nem certeza que Melissa estava bem. Ela não parecia na melhor das condições quando a deixou em casa. E, somado ao tormento que vivia, ainda havia aquela sensação de estar sendo observado. Como se os grandes olhos flutuassem a sua volta, olhando-o com graça e desdém.
ㅤㅤ Tinha de entender o que estava se passando. Mas agora, só se preocupava em tentar esfriar a mente das visões, das dúvidas, dos sonhos e da insanidade.
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ㅤㅤ Era uma plena segunda-feira de manhã, de modo que Hiroshi pegou um ônibus abarrotado de gente. Mas, conforme o veículo passava pelo centro e pelos pontos próximos às escolas, houve espaço suficiente para Hiro se acomodar num banco e apreciar a paisagem urbana que passava por seus olhos.
ㅤㅤ Achou impressionante como o sul mato-grossense tinha uma tranquilidade para certas coisas. Mal havia começado a semana, e ele encontrara algumas rodas de amigos recém-despertas, sentadas na frente das casas, desfrutando da boa erva-mate gelada, popularmente chamada de Teréré. Apoiou a testa no vidro e deixou que a imagem trocasse diversas vezes na frente de seus olhos. Até que finalmente, sentiu-se cansado demais para qualquer coisa. Um peso desceu sobre sua mente e o forçou a dormir novamente. A entrar no mundo dos pesadelos, no mundo cercado de Olhos Vermelhos.
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ㅤㅤ Tobias enchia a boca com o pão quente que comprara no supermercado Comper, passava manteiga rudemente sobre as bordas, mordendo-a em seguida, e fazendo questão de mastigar com a boca aberta. A outra mão brincava com a pequena lasca de diamante suja e empoleirada, símbolo que pertencia à Liga. Seus olhares, que normalmente estavam voltados para a televisão, estavam fixos no seu discípulo aplicado. Havia poucos segundos, ele havia ligado novamente para um advogado da família. Já tinham sido inúmeras ligações naquela semana, alguns para o advogado dele, e algumas para alguém que Felipe chamava de Risada.
ㅤㅤ Mas agora, o jovem aprendiz de magia negra se encontrava sentado no sofá, com a cabeça pendendo para trás, apoiada no acosto do móvel. Seus olhos novamente brilhavam num vermelho intenso, e um sorriso novo era esboçado nos lábios.
ㅤㅤ – Olá, minha presa. Hora de provocá-los com o que tem a oferecer novamente.
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ㅤㅤ Não! De novo não! Mas o que diabos estava acontecendo com minha mente!? Não conseguia mais compreender nada! Meus pés se moviam sem que eu precisasse fazer muito, eles se afastavam do nada para ir ao nada por puro desespero. Correr no meio daquele deserto sem fim, para onde já tinha ido uma vez. Tudo por causa de uma maldita assombração ou coisa do tipo! Não... Eu não queria vê-las novamente.
ㅤㅤ Ouvi um riso e um sussurro dentro da minha mente, algo como um “Hora de provocá-los... novamente”. Tremi nas bases, era aquela voz que assoprava em seu ouvido e atiçava sua raiva, era aquela presença que o irritava, que o enchia de pavor e rancor. A terra tremeu e um chiado eu pude ouvir a distância. Não... eles estavam vindo novamente...

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ㅤㅤ – Ei! Garoto, acorda!
ㅤㅤ Hiroshi levantou-se de súbito com o cutucão. O cobrador estava de pé ao seu lado, parecia que já estava tentando acordá-lo faz um bom tempo, dado a cara enraivecida que tinha. Mas Hiroshi não adormeceu, tinha certeza de que aquele súbito sono não era algo normal. Afinal de contas, mal fechou os olhos para a realidade e entrou naquele mundo surreal, onde fora novamente torturado e dilacerado pela presença das criaturas macabras. Naquele momento, parecia até mesmo que o cobrador lhe era um salvador, que o tirara das garras do mal.
ㅤㅤ – Já demos duas voltas de rotina. Vamos voltar para a cooperativa agora, guri. Você dormiu o tempo todo, sorte que ficou do lado da catraca, e eu pude cuidar pra que ninguém botasse a mão nos seus bolsos. Até tentei de acordar umas vezes, mas você pareceu ter morrido aí! Desce agora que é o último ponto.
ㅤㅤ Uma fagulha de raiva lhe subiu o peito, aquele velho senhor de pele escura estava o expulsando do ônibus. Aquela raiva anormal, ele começava a notar agora as anomalias que lhe atarracavam desde a aventura com Melissa: Sonhos loucos, Ódio incontrolável e aquela sensação de que alguém o estava espiando a cada passo. Conteve e apagou o fogo de rancor em seu peito e desceu do veículo de cabeça baixa. Demorou alguns segundos até a curiosidade lhe tomar contar, e ele levantar o rosto para ver onde estava.
ㅤㅤ A estrada estava destruída, grandes rachaduras rompiam o cimento, junto das falhas tentativas de tapar alguns dos grandes buracos que se seguiam na pista. A calçada era de terra marrom e ele podia ouvir os gritos aqui e acolá. Acabou parando num bairro pobre de Campo Grande. Um sorriso lhe envolveu a face quando viu os casebres em volta. O prefeito ainda dizia que aquela era uma cidade sem favelas. Ótimo, não haviam favelas, mas a situação continuava precária. O Sorriso esmoreceu segundos depois, quando parou para analisar a própria situação. Estava largado num bairro que, até o momento, nem fazia idéia de qual era. A recepção dos marginais de regiões como aquela com gente de fora – fora o fato de ser nipônico e usar roupas boas – não era das mais apreciadas. Loucura! Tinha que falar com a Melissa logo, perguntar para a desgraçada o que ela tinha feito com ele naquela tarde. Vai ver o fantasma que ela procurava tava estava montado em seus ombros. A raiva tomou conta de sua mente novamente, o deixando isento de raciocinar.
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ㅤㅤ As duas senhoras passaram de cabeça rápida e passos rápidos por ele. Alcides sorriu com a reação delas, aquilo mostrava o quanto já era respeitado pelos arredores do Tiradentes. Também, não era para menos, não passava dos quarenta, e era conhecido como o matador de maior eficiência. Ele tinha prazer na profissão que exercia; sendo contratado por traficantes, ameaçando vidas, extorquindo dinheiro e matando pessoas. Era experiente, não matava com pistola, dava muita trela. O facão que sempre usava era sua companheira fazia mais de dez anos, já tinha passado ela pela garganta de tanta gente que sangue seco já era decoração da lâmina. Por sorte, também, os jornalistas e policiais eram burros ou subornados; só a família dava por falta de um filho ou um marido que não voltou nunca mais. Dias depois, os entes apareciam na televisão, dando-os como desaparecidos.
ㅤㅤ Nunca esperavam que eles já estivessem em cinzas e jogados em algum canto da mata alta, acabavam sendo mal-interpretados. “Fugiu com a vizinha”, falavam uns. “Foi se droga por aí”, falavam outros. Mas mal sabiam que todos tiveram o fim no mesmo facão.
ㅤㅤ Alcides ainda não tinha entendido o porque de ter acordado cedo, talvez fosse por não ter bebido na noite passada, ou por não ter traçado alguma garota charmosa do bairro. Agora estava ele ali, sentado com as pernas esticadas em frente à sua casa. A construção era a maior das quadras ao redor, única com um quintal e sobrado até bem cuidados, embora ainda demonstrando precariedade de cuidados. O movimento era murcho, a maioria das pessoas do bairro tinham ido para o centro, ou seja lá para onde, tirar o ganha-pão. Ficando ali apenas os aposentados, as donas de casa e os vagabundos. Nada muito bom a se apreciar.
ㅤㅤ Já estava para fechar os olhos e tirar um breve cochilo, quando a figura lhe chamou a atenção. Um japonês cruzava a calçada, do outro lado da rua. Em toda a sua vida, Alcides só tinha visto um ou dois nipônicos no bairro, e nunca a pé. O jovem parecia rico, tinha roupas bonitas e falava ao celular, também aparentemente caro. Mas o que mais chamava a atenção nele, exceto o fato de ele simplesmente estar ali, era a feição. Ele esbanjava raiva e indignação a tudo em volta, uma face fechada que fazia as pessoas desviarem dele na rua. Alcides sentiu um calafrio lhe passar pela espinha, a primeira vez em muito tempo. Era... Medo? Impossível. Pousou a mão na cintura, onde estava o facão e agradou saber que estava ali. Hora de brincar.
ㅤㅤ O sono e o tédio haviam partido, levantou-se e cruzou a rua em passos mais que rápidos.
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ㅤㅤ – Mas que porra toda é essa? - Tobias, truco como era, observava abismado àqueles homens parados na frente dos carros estacionados na avenida Calógeras, em pleno horário de pico. Eram três vans, duas brancas e uma preta; e, na frente delas, vários trogloditas e mau-encarados olhando para Felipe. O garoto, por sua vez sorria. Voltou-se para o seu mestre.
ㅤㅤ – Contratei-os. Eu acho que em breve os magos da Liga estarão por aqui. Não quero arriscar nada. Eu sei que eles serão a próxima refeição após a Isca se esvair, mas são perigosos demais para simplesmente ignorarmos a existência deles até chegada a hora.
ㅤㅤ O velho gordo coçou a barriga.
ㅤㅤ – Tu acha que esses palermas seguram aqueles caras? Tá muito louco. Só cara de bandido não faz nada, Guri. Já te falei deles, te falei muito, antes de a gente bolar essa joça toda. Sabe quem são.
ㅤㅤ – As vans estão cheias de munição de alto nível, trazidas do Paraguai. - Ele disse num sussurro para Tobias. - Podem não ser o suficiente, mas vão quebrar um belo galho caso qualquer coisa acontecer. Não concorda com isso?
ㅤㅤ Apertava insistentemente a lasca de diamante no bolso do short velho e abarrotado com a outra mão. Deu alguns passos de um lado para o outro, como se imaginasse as estratégias do menino que ele ensinara. Ali estava a explicação de tantos telefonemas nos últimos dias, antes mesmo de marcada a Isca, a Presa.
ㅤㅤ – Como conseguiu grana pra juntar isso tudo?
ㅤㅤ – Meus pais curiosamente entraram em estado vegetativo durante um passeio. - Ele sorriu, desviando o olhar para a rua que agora borbulhava de carros. - O advogado me ligou, e, como único herdeiro, assumir temporariamente o controle das finanças.
ㅤㅤ Tobias sorriu. Realmente, apenas Felipe servia para ser seu aluno.
ㅤㅤ – Aproveitou do laço espiritual entre você e seus pais para mandar eles pra outro plano, mantendo os corpos. Mas que filho-da-puta você é.
ㅤㅤ – Não tanto. Estão no limbo, perdidos, largados. Melhor que se mandasse-os para o inferno. Aquilo deve estar uma algazarra ainda pior com a liberação da Isca. E, também, não quero assombrações em cima de mim, por causa do destino que dei a eles.
ㅤㅤ O velho se dirigia para dentro da pobre loja de calçados velhos e sentou-se na cadeira de cordas de plástico no fundo, mantinha um sorriso torto e amarelo na face.
ㅤㅤ – Tá ótimo, então, guri. Faz o que tu quiser por enquanto.
ㅤㅤ Felipe avançou no meio dos trogloditas contratados e acomodou-se no passageiro da primeira van. Os homens entraram em seguida, cada um tomando sua posição nos carros alugados.
ㅤㅤ – Vou atrás da Isca, agora. Chega de deixar ela solta por aí. Ele morto agora não ajuda em nada, só vai atrasar nossos planos em alguns meses ou anos. Precisamos agir agora, ou os malditos da Liga podem querer interferir no meio termo.
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ㅤㅤ Azaias já estava naquele estado por mais de meia hora. Seus olhos abertos com as órbitas viradas eram inconstantes, assim como os lábios tremiam enquanto palavras baixas e sem nexo soavam dele. Vez ou outra, soltava um grito ou dois. Gente sensitiva, veria em volta do grande negro, uma aura púrpura tão densa que quase engolia-o por completo. Dimitri dirigia o carro alugado por Vicente antecipadamente. A van estava esperando no pequeno aeroporto de Campo Grande, fora questão de minutos até que ali estivessem. Seguido pelo GPS embutido no carro, Dimitri seguia rumo ao centro da cidade, o Jandaia Hotel marcado num ponto vermelho piscando na pequena tela.
ㅤㅤ O terno negro do mais alto da liga estava impecável, assim como ele permanecia imóvel, deitado na última fileira de bancos da Van. Vicente estava na primeira fileira de bancos, logo atrás do pálido russo, que dirigia. Seus dedos batucavam com cerca velocidade o couro do assento ao lado. Ele parecia o mais tenso, perto da inexpressão normal de Azaias, ou da tranquilidade incrível de Dimitri. Respirou fundo e olhou para trás, Marco mexia no laptop concentrado em algo interessante para ele; ao lado estava o pequeno Romanov, deliciando-se com um suco de caixinha que Dimitri comprara para ele no aeroporto.
ㅤㅤ As batucadas dos dedos aumentaram de ritmo e então pararam subitamente. Vicente deu um tapa no assento e decidiu livrar-se logo de toda aquela tensão. Só tinha de fazer algo, pressentia que precisava agir. Tobias e seu discípulo faziam alguma coisa.
ㅤㅤ Bateu no ombro de Dimitri.
ㅤㅤ – Pare o carro assim que puder, Dimitri. - A fala tragou a atenção de todos na van, exceto de Azaias, ainda em transe.
ㅤㅤ – O que pretende? - Rebateu o motorista.
ㅤㅤ – Eu e Marco vamos ir atrás de Tobias, assim poupamos tempo. Eu sei de um jeito com o qual podemos localizar o velho gordo. Acho que ainda estamos na cola dele. - Vicente olhou para trás, vendo os pés para fora do assento no último banco. - Também tenho total certeza que eles já marcaram a Isca. A Presa. Só esperem a confirmação e as informações que Azaias tenta extrair com os espíritos.
ㅤㅤ A van estacionou num espaço vago na avenida Afonso Pena.
ㅤㅤ – Assim que souberem onde está a Isca, vão até ela. Dêem proteção e vigilância, e tentem fazer algo para retardar o processo de consumo da alma dele; mas, não soltem mais informações do que o necessário. Eu e Marco, assim que acharmos o velho, tentaremos descobrir qual dos dois foi o invocador do rito. Tendo essa certeza, tentaremos um rapto.
ㅤㅤ – Rapto!? - Marco quase deixou seu aparelho cair.
ㅤㅤ – Sim. - Disse olhando o discípulo. E logo em seguida voltando seus olhares para Dimitri, antes observando a inexpressão de seu filho. - Precisamos agir em conjunto, em tempo ágil. Acho que estamos em cima da hora, enrolamos demais para nos reunirmos para vir aqui. Eu vou indo então...
ㅤㅤ Pegou uma maleta prateada grande abaixo do banco, foi em direção a porta de passageiros da van e tentou abri-la. Trancada. Olhou para Dimitri, que lhe devolvia com um olhar um tanto mais sério que o comum.
ㅤㅤ – O que foi?
ㅤㅤ – Vicente, o que descobriu e está escondendo?
ㅤㅤ – Nada, é apenas pressentimento...
ㅤㅤ – Não me engana. Diga logo.
ㅤㅤ O grisalho fitou o descendente de russo por alguns bons segundos, sem alterar a séria expressão que sempre lhe tomava a face. Entretanto, subitamente soltou um suspiro e desviou o olhar, colocando sobre o banco onde estivera sentado.
ㅤㅤ – Invoquei um deles dentro de minha alma, quando cochilava no avião. Ele estava tão cheio de energia e empolgado que quase não consegui contê-lo dentro de mim. Olhos Vermelhos, Dimitri, eles já estão com o rito em andamento. E, presumo, que a Isca já deva estar bem fraca. Chuto que é o discípulo quem está fazendo o rito. Uma vez que, quanto maior a jovialidade e a energia, mais rápido o rito procede. O velho Tobias tem mais experiência, mas o rito demoraria bem mais para ser feito, se ele usasse de seu corpo acabado.
ㅤㅤ Romanov ajeitou-se em seu banco, dando passagem para Marco, que carregava a mochila com seu laptop nas costas. O discípulo parou ao lado do mestre, com as costas encurvadas, e olhou para Dimitri, que parecia processar os fatos.
ㅤㅤ – Precisamos agir, Dimitri. - Vicente finalizou o monólogo.
ㅤㅤ A porta destravou.
ㅤㅤ – Vê se não cai na cilada deles, Vicente. - Disse Dimitri.
ㅤㅤ – Até logo. - Romanov emendou.
ㅤㅤ – Fiquem atentos aos seus celulares, ligarei a qualquer momento para pedir ou mandar informações. Quero terminar isso em menos de dois dias, embora acho que tenhamos menos tempo que isso para nos virarmos.
ㅤㅤ Vicente saiu, carregando a maleta prateada e Marco desceu atrás dele. Olhou uma última vez para Dimitri e acenou com a cabeça, antes de fechar a porta.
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ㅤㅤ Mal se passaram cinco minutos desde que saíra da vaga na Afonso Pena, a voz ecoou vinda do fundo do veículo. Romanov, quase sempre quieto e calmo, aparentemente assustou-se com a voz.
ㅤㅤ – Esqueçam o hotel. Precisamos agir.
ㅤㅤ Azaias levantou-se, passando a mão pelo cabelo raspado.
ㅤㅤ – Onde está Vicente e o garoto dele?
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ㅤㅤ Tentou ligar pela trigésima vez para alguém pelo celular. Aparentemente, estava fora de área, o que contribuía para o rancor do jovem aumentasse ainda mais. Hiroshi virou a esquina, nem observava por onde andava com sua caminhada apressada, talvez estivesse andando em círculos e nem sabia. Estava mergulhado em pensamentos, que vinham um após o outro, sem dar a ele tempo para fazer mais nada direito. Imaginava como sairia dali, por onde começaria a achar a solução para a perturbação que sentia, que tipo de esporro daria em Melissa pelo grande presente que ela lhe dera, que tipo de assombração estava montada em cima dele.
ㅤㅤ Tão compenetrado em suas dúvidas, mescladas à raiva, ele estava, que nem ao menos percebia os gritos do homem que estava quase aos seu calcanhares. Quando finalmente pôde voltar um pouco para a realidade e encarar a sombra que se formava às suas costas, virou-se, dando atenção as berros nada suaves.
ㅤㅤ – Garoto filho-da-puta! Não me ouve não!?
ㅤㅤ A figura de Alcides assustaria qualquer um; era um moreno alto e de musculatura definida, olhos de gente sofrida ele tinha, além das duras feições que lhe esculturavam a face. Entretanto, o medo pareceu minguar dentro dos sentimentos de Hiroshi, só havia espaço para raiva, rancor e ódio.
ㅤㅤ O rapaz observou Alcides de cima abaixo, com desdém, e logo em seguida virou-se, voltando a caminhar, mergulhando nos próprios pensamentos mais uma vez. Estava claramente perturbado. O matador de aluguel sentiu o sangue subir o corpo e sua face esquentou de uma única vez: Ninguém nunca o tratava daquela forma. Segurou o garoto pelo ombro e deu um forte puxão, enquanto a outra mão pousava sobre o facão. Mas não teve tempo de reagir, Hiroshi virou-se, usando da força do próprio Alcidez como impulso e virou com o braço já se projetando para frente. O soco encaixou-se perfeitamente no nariz do matador, que tombou para trás de uma única vez.
ㅤㅤ – Filho da....
ㅤㅤ Agora, ele também parecia mover-se por ódio. A situação invertera-se de um modo completamente inesperado para Alcides; era ele quem devia estar ameaçando, causando dor e medo ao garoto, não o contrário. Pelo único soco bem colocado e doloroso que sentira, definiu que o japonês não era um alguém qualquer, ele sabia lutar e usava disso sem escrúpulo algum. Já estava para se colocar de pé, já com o facão em mãos, quando o chute acertou seu estômago, tirando-lhe o fôlego e o fazendo cair novamente no asfalto de terra.
ㅤㅤ Para Hiroshi, agora estava num mundo completamente surreal. Tudo o que podia ver eram flashes de visões que ele era para estar vendo nitidamente. Novamente perdera o controle do corpo, novamente sentia sua alma definhar e perder a força para assumir o mundo material. Mas o que mais o assustava era o pouco que enxergava. Via-se batendo num mulato grande e parrudo, de relance, pudera ver que carregava uma arma, algum tipo de faca. Hiroshi nunca reagiria assim, o Karate lhe ensinara a saber quando reagir: Apenas em situações de extremo risco. Ele poderia ter fugido do grandalhão, claramente era mais leve e rápido que o gigante, mas lá estava, montado sobre o corpo pesado dele, o contendo e enchendo o maluco de golpes atrás de golpes.
ㅤㅤ Alcides urrava de raiva, seus olhos percorriam rapidamente o que acontecia a volta. E podia ver a face de donas-de-casa assustadas com a posição humilhante na qual o maior matador das redondezas se encontrava. E realmente, sentia-se humilhado. Queria esmigalhar o japonês ninja que achara, mas o peso dos joelhos dele estavam caídos sobre seus braços, e o corpo dele pressionava o do mulato, o impedindo de fazer mutia coisa senão levar golpe atrás de golpe. Seu rosto já sangrava aos montes e o nariz estava quebrado, imaginava até se algum dente tinha saído do lugar. Pelo menos, o nipônico não estava ileso. Hiroshi sangrava no braço e na perna com dois grandes cortes do facão de Alcides, além de vários pequenos arranhões e cortes num pequeno combate antes de domá-lo. O assassino entendeu que estava naquela posição pela sua própria burrice, por ter subestimado e ter feito graça do moleque sem ter se precavido. Em situações normais, já teria desmembrado o rapaz e enterrado cada parte dele em lugares separados.
ㅤㅤ Mas, mesmo tentando sobrepor a lógica por cima da humilhação que sentia, ele ainda tinha de confessar uma única coisa: A feição do moleque não era normal. Os olhos dele expressavam pura raiva e ódio, como se ele nunca tivesse amado nada em sua curta vida. E Alcides conhecia olhos de rancor, ele mesmo tinha os dele; mas nada eram perto da raiva contida no garoto, em cada soco que ele disparava.
ㅤㅤ Apagou aqueles pensamentos, não era hora de filosofar sobre os pesadelos da vida. Mexeu as mãos dormentes pela falta de sangue bloqueada pelos joelhos pesados de Hiroshi, o facão não estava mais ali. Contudo, ainda tinha seu último recurso, ainda podia pegar o coldre da pistola enganchada no seu short, na parte de trás. Só uma bobeira de Hiroshi, e fim de jogo. Até lá, ficava resistindo aos golpes dele. Parecia que, quanto mais raiva ele continha, menor era a técnica nos socos. Os primeiros eram raivosos e precisos, socos de artistas marciais, mas agora, socava pior que os moleques de rua, só se aproveitando dos músculos dos braços. Sentiu o joelho esquerdo do garoto levantar-se um pouco, num ato de fúria para um soco que o pegou na têmpora, aquela tinha era sua chance.
ㅤㅤ Puxou com tudo seu braço e deixou o garoto desequilibrar-se em cima de seu corpo. Tempo suficiente para puxar agora o outro braço e ver-se livre do moleque montado em seu peito. Fechou os punhos e desferiu dois potentes socos contra ele, fazendo Hiroshi cair para trás e rolar no chão, ralando braços e pernas. Alcides levantou-se com velocidade, já puxando a pistola do coldre e apontando para o nipônico. Os olhos arregalaram-se quando viram que ele já não estava onde tinha caído. Ouviu um barulho na esquerda, virou-se apontando a arma, mas não houve tempo. Hiroshi salto para cima dele, afundando o facão no peito de Alcides, que disparou as armas para pontos desconexos do céu. Sentiu o corpo perder a força, ao mesmo tempo que uma dor que nunca antes sentira assomava seu corpo. Estava morrendo.
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ㅤㅤ A clareza começou a voltar à mente de Hiroshi. Via-se caído sentado sobre o peitoral de um homem gigantesco, fitou o rosto do homem com calma, enquanto seu próprio peito arfava loucamente. Começou a recordar-se das visões que estava tendo no seu momento de fúria, aquele era o mulato contra quem lutava. Levantou as mãos, colocando-as em seu campo de visão. Estavam empapadas de sangue. Sangue que não era dele. Mais uma vez, um cansaço descomunal tomou-lhe a mente. O sono terrível que o levaria para o terror do deserto dos demônios. Seu corpo bambeou de um lado para o outro; até cair, cansado e sem os sentidos na terra da calçada.
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ㅤㅤ A moto já tinha ido para a oficina por causa de um problema no motor. Mas não havia do que Carlos reclamar, afinal, pagara uma pechincha no veículo. A tarde de segunda sempre era agradável para ele, um dia de descanso após a loucura de três dias trabalhando incessante na Feira Central. E, naquela tarde em especial, lá estava ele, andando com sua moto recém-adquirida. Deixava o vento passar no rosto, deixando a sensação de frescor levar embora os minutos gastos no pequeno passeio pelo bairro. Alguns conhecidos gritavam ao longe, acenando para ele e dando-lhes os parabéns pela nova moto; pessoas queridas, amigos de infância com quem vivera muitas das loucuras que os moleques daquela classe social aprontavam.
ㅤㅤ Virou a esquina, para voltar para casa. Em breve, o almoço já estaria na mesa. Passou de relance por uma ruela aonde não entrava muito e viu, ao longe, algumas pessoas aos berros e outras correndo em direção a um mesmo ponto na calçada, no meio da quadra. Movido pela pura curiosidade, virou na ruela e aproximou-se diminuindo a velocidade. Pôde distinguir dois corpos caídos no chão. Um sobre o outro. O de baixo, parecia ter uma faca enfiada no peito e criava uma grande poça de sangue abaixo dele, enquanto o de cima, mais peculiar ainda, tinha pele branca e não parecia nem de longe daquelas redondezas. Desceu da moto e abriu caminho pelo pouco de gente que crescia a cada novo berro dado. Estacou imóvel e sem reação ao ver o rapaz ali. O grande mulato caído era o Alcidão, matador de aluguel temido na região, morto pelo próprio facão que usava como ferramenta de trabalho. Entretanto, não era nem o velho alcides que lhe chamava a atenção. O pior, era aquele que estava desacordado acima dele. O que diabos Hiroshi, o filho do patrão e amigo de conversas rápidas, fazia ali!?
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