domingo, 22 de agosto de 2010

As Sombras

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ㅤㅤ I
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ㅤㅤ E Corria! Hah! Como eu corria! Meu peito ia e voltava com uma constância enorme, buscando pelo máximo de ar que eu pudesse respirar. O peso da pequena Angie não ajudava muito, minha filhinha querida repousada nos meus braços, desmaiada. O corte aberto na barriga dela não ajudava em muito, o sangue, maldito sangue! Pelo que percebia, aquilo atiçava o maldito cada vez mais! A floresta não acabava, e quanto mais me embrenhava nela, menos certeza de que sairia eu tinha. Mas eu não podia simplesmente morrer. Entregar minha querida para aquele maldito.
ㅤㅤ A iluminação era cada vez mais escassa, os postes de luz colocados pelos guardas florestais agora estavam longe demais para atingir aquela área do mato. Maldito seja o momento em que decidi morar com minha família perto do campo, longe da cidade. Mas, acho que estou tão desesperado que nada ajudaria contar desta forma. O começo daquela noite foi tenso para mim, voltei do escritório extra que me faria trabalhar a noite toda. Pilhas e pilhas de relatórios a fazer. Saí do carro, carregando um maço de papéis debaixo de um braço, deixando os demais dentro do veículo. Caminhava lentamente pelo quintal vasto, já estava para subir o degrau que me separava da porta de casa, quando um mal estar percorreu todo meu corpo. Uma aura de frio apossou-se subitamente de meu corpo, mesmo que nenhuma brisa estivesse passando. Olhei em volta, sentia olhos em cima de mim. Nada. Nervosamente me voltei para a porta e abri-a, entrei e tranquei rapidamente. A sensação de terror se aquetou e a calma voltou ao meu estado. Abracei minha mulher e dei um beijo na testa da pequena Angie, que tinha completado cinco anos na semana anterior.
ㅤㅤ Jantar e o horário de dormir haviam passado a muito tempo, e eu ainda estava ali, debruçado sobre meu computador, digitando avidamente. Fones de ouvido me ajudavam a passar uma noite um pouco melhor, ao som de Ramones. Mas não chegava a amenizar tanto. Foi lá pelas três que meu horror começou.
ㅤㅤ – Charles! - Minha mulher chegou na porta da sala de estudos aos berros, tanto que pude ouvir por cima da música.
ㅤㅤ – O que foi, querida? - Respondi, enquanto retirava os fones.
ㅤㅤ – Angie! Não está no quarto dela! Também não está no resto da casa, Charles!
ㅤㅤ Subitamente eu senti novamente aquele frio sobrenatural sobre mim. Minhas pernas ficaram fracas, mas mesmo assim me levantei, correndo até minha esposa. Passei por ela, dizendo para ela vestir-se, nossa casa ficava longe por quilômetros de outras casas, ela não poderia estar longe. Peguei o telefone enquanto vestia um casaco por cima do pijama e descia as escadas, Angie passou na frente, disse já estar saindo para procurá-la.
ㅤㅤ Telefonei para a polícia e relatei rapidamente o ocorrido, logo indo para fora com o fone ainda no ouvido, preso com o ombro enquanto minhas mãos se preocupavam e pegar lanternas. Pisei para fora do gramado a tempo de ver minha mulher na divisória da floresta, bem afastada de nosso vasto quintal. Ela virou-se para falar comigo, quando finalmente o motivo de todo aquele terror que sentia veio à tona. Um vulto, acobertado pela noite se atracou a minha mulher, fincando garras tenebrosas em sua cabeça. Vi, com lágrimas e raiva nos olhos, minha amada ter a garganta rasgada por algo que não conseguia identificar.
ㅤㅤ Era completamente negro, sem silhuetas. O único ponto de destaque eram os olhos vermelho-brilhantes e malignos. Brasas de desespero na noite fria. Minha esposa estava morta, e me concentrei em tentar sair de meu estado de paralisia. Liguei a lanterna e percorri com o facho de luz a situação. O monstro ainda montado sobre ela, fixei-me na floresta e ali achei. Minha pequena estava caída, com o pijama rosa-bebê encharcado de sangue, escorado numa árvore.
ㅤㅤ Disparei em sua direção, e, não sei se por pura sorte, a criatura louca nem prestou atenção a minha presença. Deixando-me passar rapidamente por ela e agarrar minha filha. Olhei novamente para trás, minha esposa já tinha a face toda desfigurada e arrancada, dando lugar ao crânio e a carne exposta. O sacrifício dela rendeu-me a escapatória.
ㅤㅤ E lá estava eu, adentrando a floresta em sentido contrário à cidade. A próxima casa ficava longe demais para eu ter qualquer esperança de alcançá-la, mas gostaria, ao menos de salvar mina pequena. Tão inofensiva e frágil em meus braços. Foi mergulhado nesses sentimentos que ele veio. Senti garras geladas se encravarem nas minhas costas e presas se fincando em meu corpo. Caí, protegendo o corpo de minha filha.
ㅤㅤ Quando, inesperadamente, a voz veio.
ㅤㅤ – Um sopro de esperança e a presa se torna mais deliciosa.
ㅤㅤ Não! Deixara que nós escapássemos! Brincava com nossas vidas. Minha face se desfazia em lágrimas de rancor e medo enquanto ele retirava a pequena de meus braços. Fincou os dentes ferinos sobre o pequeno corpo dela e rasgou-o, mergulhando mais ainda sobre ela. Na minha frente. E dali, já não importava minha vida. Que tivesse a morte! O que não me foi negado, não por aquilo.
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ㅤㅤ II
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ㅤㅤ O tilintar da cota de malha em atrito com a couraça de bronze fazia altos chiados nos oito soldados. Lâminas e Lanças postas prontas para o ataque. O que restara de nosso batalhão agora respirava mais lentamente, nos focalizávamos em uma coisa: Sobrevivência.
ㅤㅤ A grandiosa construção que abrigava o Bispo Benedito agora se tornava nossa masmorra. As portas grossas de madeira estavam trancadas e bloqueadas, as janelas nos levariam a uma morte certa pela queda de dez metros até o fim do barranco onde se construíra a casa nobre e o próprio Bispo já jazia nas mãos daquelas criaturas. Terríveis e sanguinárias elas eram! Mataram todo meu batalhão que protegia o sacerdote de Deus, só aqueles bravos seis restaram. Lá estávamos nós, ao centro do grande Salão de entrada, aguardando a investida do demônio.
ㅤㅤ Henrique carregava uma das duas tochas numa mão enquanto a outra segurava firmemente o escudo largo. Luís portava a outra iluminação, junto de uma espada curta. Antônio e Manuel seguravam ambos espadas e escudos, enquanto Baptista e Guilherme usavam suas lanças. Eu, como capitão, segurava uma grande espada bastarda, companheira minha em tantas batalhas na época das Guerras Santas. Completávamos um círculo ao centro do salão, cobrindo visão para todos os lados, macabras eram aquelas criaturas. Sorrateiras e amigas da escuridão.
ㅤㅤ Um Baque. As armas se voltaram para o lado do som, assim como alguns olhares. Permaneci olhando para frente, junto de Guilherme. Éramos treinados, distrações não nos fariam abaixar a guarda como idiotas. Henrique levantou mais a tocha na direção do som, um objeto estava postado, fora da visão, acobertado pela penumbra. Outro baque, um vulto passou perto do objeto circular e o chutou em nossa direção. Arregalamos nossos olhos e eu perdi meu ponto de atenção por um segundo com a cena de horror. Rolava pelo chão, depois de ter trompado no escudo de Manuel, a cabeça de Tobia, um de nossos companheiros mais fiel, desaparecido nas sombras do castelo poucos minutos antes.
ㅤㅤ – Tolos.
ㅤㅤ A voz veio rouca e grave. E então notei meu erro de abandonar meu ponto de visão. Voltei a vista a ponto de ver o monstro sem silhueta arremessar um golpe na face de Guilherme, arrancando-lhe o elmo e rasgando de sua carne com largas feridas. Investi contra a fera, mas recebi um chute da fera que me jogou metros longe, afastando-me de meus guerreiros e me levando à escuridão dos demônios.
ㅤㅤ Meus homens gritaram meu nome e saíram da formação. TOLOS! A morte era o reservado para soldados que se deixam levar por emoção. Ia me levantar para voltar à briga, quando um braço envolveu-me pelo pescoço e me travou. Uma mão apertou minha cabeça e senti as garras fazerem sangue brotar no couro cabeludo.
ㅤㅤ – Observa, Guerreiro. - Sussurrou a voz para mim. - Observa a morte de seus homens.
ㅤㅤ – Homens! Retirada! Procurem um modo de escapar! Agora!
ㅤㅤ Meu grito foi recebido por uma dor inexplicavelmente aguda, uma mordida arrancara minha orelha fora. Tentei gritar, mas o braço conteve minha boca, fazendo apenas gemidos contidos surgirem. Meus homens olhavam para mim, para a direção de meus gritos, e meu desespero aumentava cada vez mais. Os desgraçados não notavam aquele par de olhos vermelhos na escuridão atrás deles. Guilherme foi o primeiro a sucumbir, o cheiro de sangue atraíra a criatura e ele aceitou a tentação. A garra entrou pelo vão da armadura sob os ombros e agarrou a carne, puxando-a para a escuridão, ignorando os gritos do soldado. Baptista disparou sua lança contra a escuridão da onde vinha o som dos gritos e sacou sua espada.
ㅤㅤ Sua investida no escuro de nada serviu, nem um grunhido arrancara da fera que devorava sangue e carne de meu homem. Até mesmo piorara a situação. Segundos depois uma lança carregada pelo vulto assassino surgiu a luz, fincando a arma no pescoço de Henrique, que deixou a tocha cair. Antônio abaixou-se para pegar a iluminação, e distraído deixou-se levar, a sombra passou novamente e levou agora seu corpo para o escuro salão. Manuel tentou acertá-la com a lâmina da espada, e conseguira! Mas sangue nenhum pingou de ferida alguma. Invencível!
ㅤㅤ A tocha rolou longe e foi parar, rolando, perto de mim. A luz foi a suficiente para me iluminar. Iluminar a mim e a criatura que me segurava. Meus homens arregalaram os olhos para mim, estava em terrível estado e domado. O grande capitão, derrotado. A figura de terror foi suficiente para a sombra aproveitar-se novamente, saltou sobre dois ao mesmo tempo. Luís e Baptista caíram com garras atreladas aos seus pescoços. Manuel, só, investiu contra o monstro, que imediatamente lhe direcionou o olhar assassino e vermelho. O soldado recuou, assustado, tempo suficiente para o monstro saltar sobre seu corpo e ouvir seus gritos enquanto ela lhe rasgava a cota de malha e metia a mão nas entranhas, para depois retirar e lamber de seu sangue. Meus guerreiros se silenciaram, todos mortos.
ㅤㅤ A voz novamente pronunciou-se.
ㅤㅤ – Fraco é o ser humano.
ㅤㅤ – E covarde são vocês, demônios! - Retruquei na mesma hora, tentando reagir ao abraço fatal da criatura. Ela segurou meus braços malhados de guerra e me conteve ao chão. Fora vencido completamente. A outra criatura se aproximava de mim, hora iluminada pela luz de tochas, podendo ver mais do que seu contorno maldito.
ㅤㅤ – Mata-o logo e partimos assim que saciarmos nossa sede eterna.
ㅤㅤ – Sim. - Respondeu o monstro friamente.
ㅤㅤ Senti outro rasgo, agora era meu pescoço o alvo do terror, senti as presas fincarem em minha pele e minha vida começou a esvair de meu corpo, junto do sangue mortal. Falhei, humilhado, vencido, acabado. Deus não me dera a benção da vitória.
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ㅤㅤ III
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ㅤㅤ – Consegui! Finalmente consegui, minha mãe! - Entrei sorridente na pequena casa de madeira e palha. Minha mãe, vestida como uma serva deveria portar-se abriu um sorriso e viera a me abraçar com força. Abençoado seria aquele dia se tudo fosse apenas da quela forma.
ㅤㅤ – O velho médico curador aceitara-me como discípulo. Partirei em breve, levando a ele o pagamento para ser meu tutor. Mas consegui! Finalmente serei aquilo que sempre quis ser, Mãe!
ㅤㅤ – Abençoado seja você, filho. Seu pai estaria orgulhoso. Mas em seu lugar, sua pobre mãe e seu irmão o saúdam.
ㅤㅤ Meu amado irmão estava à mesa com a mulher. Era o dono da casa, como irmão mais velho, e também o líder da pequena posse de terras que o Senhor nos dera para cuidar. Eu não poderia ficar ali por mais tempo, já era mais que hora de partir. Ele olhou para mim com sorriso na face.
ㅤㅤ – Pois finalmente partirá, Irmão. Encontra o caminho de sua vida e segue-o.
ㅤㅤ E meneei a cabeça para ele. Desde que meu amado pai morrera por falta de bens para pagar um médico e seus itens de cura, decidira ser um, para nunca mais recusar-me a atender alguém pela sua casa ser a menor dentre a dos servos. Soltei um grande suspiro e despedi-me de todos, indo a meu pequeno cômodo para arrumar minhas coisas. Morava no quarto mais afastado e pequeno, que tinha uma larga janela para a floresta.
ㅤㅤ Abri a bolsa de couro batido, e dentro comecei a colocar o pouco de pertences que tinha. E talvez, por isso, nem ao menos notara a sombra que adentrara o quarto. Notei apenas a último instante. Um forte soco atingiu minha pequena mesa, e eu saltei assustado, olhando atentamente ao invasor. Era um homem de feições fortes, pálido e aparentemente fraco. Era mais alto que eu e vestia-se de trapos piores que os escravos de guerra. Mas seu rosto exalava soberania.
ㅤㅤ – Quem... quem é? - Balbuciei.
ㅤㅤ – Então, agora se tornarás curador. - A criatura falou, caminhando pela penumbra do quarto. - Salvarás vidas, há de ser um bom homem.
ㅤㅤ – Sim... - Confirmei, perplexo. - Quem é você!?
ㅤㅤ – Apenas um observador de costumes, caro Servo.
ㅤㅤ – E o que tem a observar em uma humilde e pobre família.
ㅤㅤ – Você. - A resposta veio seca.
ㅤㅤ Respirei fundo e afastei-me um passo na direção do corredor. Provavelmente não ouviram nada, dado as altas gargalhadas e à voz grave e alta de meu irmão. Tinha e expulsar o maldito.
ㅤㅤ – O que?
ㅤㅤ – Fico pensando no que irá se tornar.
ㅤㅤ – Tornar?
ㅤㅤ – Sim. Vejamos se ainda almejará salvar vidas, servo Lien, quando ceifar a primeira delas!
ㅤㅤ As presas ferinas que saltaram da boca do monstro já estavam sobre minha jugular quando pensei em fazer algo. E, no instante seguinte, senti minha vida sendo drenada. O que estaria reservado à mim, afinal?
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ㅤㅤ IV
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ㅤㅤ Despertei, a noite havia caído sobre a terra, e era natural de mim acordar. Mas minha cabeça em muito latejava. Deixei-me cair sobre o solado podre da casa abandonada que era o covil. Meu mestre ainda estava de olhos fechados, em seu caixão. Segurei minha cabeça com as duas mãos e gritei de raiva. Por que não paravam!? As vozes do Empresário Charles, do Guerreiro Tomé, se somavam a milhares de outras. E, junto delas, flashes e visões do passado, presente, e até do futuro. Almas malditas que teimavam e atormentar aquele que lhes ceifara a vida. Fantasmas. Assombrações que não dependiam de lugar, hora ou situação. Assombrações que sempre me tomariam em horas que me eram para ser de tranquilidade. Horas de dia alto. O descanso dos vampiros.
ㅤㅤ Isto acontece pois ainda possui parte da alma humana em suas veias mortas, tolo Lien. Sempre diz o mestre-vampiro que por séculos sigo. As vozes vinham de todo lado e eu podia ver os fantasmas na minha frente. Sentia a dor deles no fundo do coração, a dor que eu mesmo causara. Uivei para a noite como um lupino, e me contorci no chão.
ㅤㅤ Aos poucos, as vozes diminuíram. Os fantasmas se acalmavam em meu antro sem-vida.
ㅤㅤ Silêncio. Abri os olhos vermelhos. Hora de matar.

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