quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Olhos Vermelhos - Capítulo 5




ㅤㅤ V
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ㅤㅤ – Tem certeza que é só isso que precisa?
ㅤㅤ – Já não te disse uma vez? Ora! - E pegou o item dourado.
ㅤㅤ Dimitri analisou o relógio atentamente. Era um rolex bonito, mas que tinha já seus traços de velhice. Era realmente um objeto em potencial para o ritual todo. O contratante estava na sua frente, vestindo um terno barato e mal-cheiroso. Provavelmente, sua vida tinha sido destruída pelo dono do relógio, e agora queria devolver na mesma moeda. Não hesitando em gastar dinheiro e tempo com sua deliciosa vingança.
ㅤㅤ Eram realmente poucos os que vinham até ele. Mas, os que vinham, sempre pagavam o preço exigido. E era isso que o sustentava por todos aqueles anos. Seu filho, Romanov, estava ao canto da sala, a pele pálida em contraste com os olhos e cabelos escuros. Observava todo o rito com cuidado e atenção, sabia que em breve era ele quem sucederia o pai naquelas loucuras. Sabia que era apenas aquilo que fora destinado a fazer.
ㅤㅤ A sala era grandes, espaçosa e cheio de luxos desnecessários. Como o imenso candelabro postado acima da mesa circular ao centro da sala, ou como o tapete persa que forrava quase todo o tablado de madeira do local. Era, definitivamente, peculiar uma casa tão deslumbrante no meio da favela do Morro da Cachorra. Os traficantes não tinham coragem de mostrar sua superioridade para cima de Dimitri, temiam coisas bem piores que tiros ou alguns anos em cadeia.
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ㅤㅤ – Vai demorar muito? - Tarso perguntou, observando Dimitri brincar com o relógio dourado. O descendente de europeu, com nome russo, parecia emanar toda a calma e tranquilidade do mundo, exatamente o oposto do que sua profissão aparentava ser. Abriu um sorriso e finalmente abriu uma pequena gaveta embutida na mesa circular. Puxou dali uma pequena cerâmica de barro. Ela tinha um tronco central, quatro partes menores grudadas e uma pequena bola ao fim da parte principal, se assemelhando perfeitamente a um boneco de um homem.
ㅤㅤ Parecia ter sido confeccionado a pouco tempo, dado a cor viva do barro do qual era feito. Dimitri brincou com ele entre os dedos e até ameaçou jogá-lo no ar, para pegar quando quase se espatifava na mesa.
ㅤㅤ – Vou começar. A quantia combinada já foi depositava na minha conta, sim?
ㅤㅤ – Sim! Sim! - Respondeu Tarso, a sede de vingança secando sua face.
ㅤㅤ – Certo.
ㅤㅤ Dimitri sinalizou para o filho. Romanov levantou-se e foi até o interruptor de luz, começando a desligar as luzes da grande sala lentamente, até que apenas a luz do candelabro central ficasse a vista de todos. Dimitri parou de brincar e sua face virou uma tábua de tão inexpressiva, agora segurava, com uma mão o boneco, e com outra, o relógio. Tarso sentiu calafrios passarem pela espinha, agora o negócio estava começando a ficar tenebroso como era de ser.
ㅤㅤ O pálido Bruxo, como Dimitri gostava de ser chamado, começou a murmurar palavra atrás de palavra numa língua incompreendível, parecendo primitiva e africana. Em poucos segundos o corpo de Dimitri agora tremia, indo de um lado para o outro como um pêndulo de relógio de ponta-cabeça. Seus braços seguravam com firmeza os dois itens enquanto ele aproximava um do outro aos poucos.
ㅤㅤ Tarso agora tinha completa certeza que não estavam para brincadeira quando lhe indicaram o nome daquele cara estranho que morava dentro da favela. Sentiu um vento gelado lhe passar pelo corpo, e começar a envolvê-lo como uma aura. Tremia de frio subitamente, e jurava ver vultos negros passando pela penumbra que agora acobertava grande parte da sala. O tapete persa, com os desenhos abstratos e simétricos, deixava tudo ainda mais assustador, ao tempo que a luz parecia demonstrar leves falhas, piscando e voltando a funcionar repetidamente. O local estava terrível, e o próprio Dimitri ajudava a deixar as coisas ainda mais aterrorizantes. Agora ele tinha o relógio de ouro preso em diagonal sobre o boneco de barro, deixado sobre uma almofada negra posta a sua frente, sobre a mesa. Seu falatório, antes baixo agora parecia um cântico demoníaco e incessante, o Mago falava sem precisar de pausas para respirar. Ou pelo menos era o que parecia. Até mesmo na figura de Romanov, ao canto da sala, não podia encontrar sossego. O garoto, quieto e calado, o observava com grandes olhos negros, inexpressivos e tenebrosos. Chegou a afastar um pouco a sua cadeira da mesa com as mãos trêmulas, quando...
ㅤㅤ O nome do acobertado pelo mal, o nome deve dizer.
ㅤㅤ Podia jurar que ouvira a voz suave e fria de Dimitri soar dentro de sua própria cabeça. Olhou para ele, o albino o observava com os olhos fixo nas órbitas. Sentiu sua alma ser trespassada pelo olhar macabro daquele que contratou.
ㅤㅤ O nome do acobertado pelo mal deve ser dito!
ㅤㅤ A voz elevou-se em sua mente. Tarso fechou os olhos, comprimindo a cabeça entre as mãos.
ㅤㅤ O NOME! OU O SEU PRÓPRIO SERÁ USADO!
ㅤㅤ O tom elevou-se e pareceu uma trovoada na mente de Tarso, que, agora inundado em lágrimas, puxou ar para seus pulmões e gritou.
ㅤㅤ – TOMÉ! TOMÉ AQUINO!
ㅤㅤ Dimitri levantou ambas as mãos acima da cabeça. Segurava, entre os dedos, uma grande e grossa agulha, que poderia ser facilmente segurada por um palmo de mão. Era todo negro e feito de metal, tendo, em sua cabeça, uma pedra brilhante. Seu diamante. O de Vicente ficava dentro de uma caixa de couro, o de Azaias ficava incrustado no anel, o de Tobias ficava jogado em qualquer lugar. Ele era o único que usava a brilhante pedra em suas cerimônias macabras. Desceu o item com tudo. A ponta da agulha anormal atravessou o relógio, arrebentando seu ligamento, e estacou-se sobre o boneco de barro, no lugar que deveria ser o coração do homem de cerâmica. Leves rachaduras se manifestaram pelo buraco repentino.
ㅤㅤ Tarso sentiu o frio repentino passar, e a sensação da voz de Dimitri dentro de sua mente desapareceu. Romanov, no canto da sala, acendeu a luz novamente, deixando o luxuoso local de volta a sua forma normal. Estava tudo tranquilo mais uma vez.
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ㅤㅤ Tomé estava desconsertado, revirou todo o gigantesco apartamento e nada. Os cômodos da cobertura onde morava eram de dar inveja a qualquer empresário de inicio de carreira, ele já era um cachorro velho das ações. A filha jurou não ter visto o precioso relógio, e ele ligou mais de duas vezes para a ex-mulher, perguntando se esquecera no meio das coisas dela. Mas nada. O rolex de ouro valia uma boa quantia, mas não era por isso que ele o caçava incessante. Aquele item havia sido de seu pai, de seu avô, de seu bisavô. Era uma herança de família. Jogou a lanterna com a qual procurou nos cantos do armário no sofá e se jogou na poltrona acolchoada. Onde estava?
ㅤㅤ Pensou em ligar novamente para Angela. Mas, naquela altura do campeonato, ela nem mesmo atenderia ao seu telefonema novamente, já prevendo a pergunta pelo relógio precioso. Vagou a mente por onde poderia ter deixado o item. Lembrou-se de levá-lo para a Bolsa. Lembrou-se de ter levado para a reunião com os figurões da empresa. Abriu um leve sorriso ao recordar da discussão sobre economia que fez aquele funcionário idiota ser despedido. Engraçado como as pessoas que teimavam em contrariá-lo acabavam mal. Sua pequena Sofia ainda não tinha voltado do colégio. Quem dera ela estivesse ali, o tempo dos dois juntos era sempre curto. Talvez por isso a guarda tenha ficado com a mãe. Mas nunca escondeu o apreço que tinha pela garota.
ㅤㅤ Chega de prender-se ao passado, foi o que pensou. Ainda precisava visitar três empresas antes das cinco da tarde. Tomar banho, estudar o sobe-e-desce das ações, arrumar a papelada do trabalho, pegar a filha na escola. Levantou-se num impulso da poltrona, mas não por muito tempo ficou de pé. Uma tontura o assolou e ele caiu pra frente, ficando apoiado sobre os joelhos. O que estava acontecendo? Estava zonzo, e parecia suar frio. Podia ouvir as batidas de seu coração, rápidas. Rápidas demais. Pôs a mão sobre o peito enquanto sentia ele queimar. Tentou fechar a mão sobre o coração, mas falhou, caindo no chão agonizante. Gemidos e gritos demonstravam a dor para ninguém, havia dispensado a diarista e o resto dos funcionários, Angela provavelmente estava com seu novo namorado, e a pequena Sofia aprendendo contas de multiplicação. Hah! Como queria que a filha seguisse seus passos! Mas ele estava morrendo. Morria e sentia isso. Não tinha colesterol, pressão alta e nenhuma doença cardíaca. Por que, então? Agora o peito parecia explodir com as batidas descoordenadas e ele mal conseguia distinguir o que era chão ou teto. Rolava de dor. Uma dor latente e incessante.
ㅤㅤ Até que o coração parou de súbito. Faltou ar. Faltou vida. Tomé estava morto.
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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
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ㅤㅤ – Pois não? - A voz de Romanov saiu pelo interfone. Baixa e suave, quase como a do pai.
ㅤㅤ – Sou Marco. Marco de Vicente. - Falou, olhando para os lados. Era engraçado ver aquele gigantesco sobrado no meio de tantos barracos e gente pobre e mal-cheirosa. - Vamos, Romanov, preciso falar com seu pai.
ㅤㅤ – Um segundo.
ㅤㅤ A porta da frente destravou, e Marco pensou que fosse para sua entrada. Já ia empurrando o portão de ferro, quando da porta, saiu um homem grisalho. Ele estava suado ao extremo, e os olhos estavam arregalados, indo de um lado para o outro. Tarso passou ao lado de Marco sem notar sua existência e seguiu, quase correndo, morro abaixo. Romanov surgiu na porta, vestindo sua camisa e gravata, com o colete de lã por cima da roupa social.
ㅤㅤ – Vamos, meu pai está cansado, mas vai lhe receber.
ㅤㅤ – Ainda bem. - Disse Marco, avançando. - Eu que não voltaria aqui novamente.
ㅤㅤ Entrou pela porta para um hall de entrada iluminando ao extremo, com lâmpadas instaladas a centímetros uma das outras. Romanov fechou a porta atrás do jovem Marco, que alisou o cabelo.
ㅤㅤ – Me siga, por favor.
ㅤㅤ Avançaram pelo grande hall e entraram num corredor estreito. Não foi preciso avançar muito pela luxuosa mansão para encontrarem a sala de cerimônia, logo na segunda porta a direita. A porta dupla abriu-se, dando lugar a sala circular na qual Dimitri estava. O senhor, de cerca de quarenta anos, estava folgado sobre sua cadeira adornada e decorada com pedras preciosas. Olhou Marco com o canto dos olhos e sorriu.
ㅤㅤ – Marco! Da última vez que o vi, ainda era um molecote da idade de Romanov. Vicente anda lhe treinando bem? Ou a magia do nosso Figurão Cultural reduziu-se?
ㅤㅤ – Te aquieta, Dimitri. Não vim falar sobre meus treinos. Vim entregar uma mensagem do Vicente. Me pediu pra entregar com urgência, acho que pode te interessar, é sobre Tobias.
ㅤㅤ O sorriso sumiu da cara de Dimitri. Aquele nome sempre lhe irritava.
ㅤㅤ – Pois diga, Marco.
ㅤㅤ – Descobrimos a localização de Tobias e seu discípulo. E também, parte do que está tramando. Vicente já deve ter falado com Izaias, me pediu pra vim dizer a você que estamos partindo. Tobias está faz uns seis anos em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
ㅤㅤ – E o que ele está tramando?
ㅤㅤ – Vicente só me permitiu dizer duas palavras.
ㅤㅤ – Estou ouvindo.
ㅤㅤ – Olhos Vermelhos.
ㅤㅤ Dimitri respirou fundo, pensando naquelas palavras. Não era possível que Tobias tramava algo tão grande. Sim, estava dentro de sua área de estudo, dentro de sua especialização mágica. Mas nunca pensaria que o Mago gordo e fedido pudesse fazer algo tão mirabolante. Capaz de desestabilizar todas as estruturas das ligas de magia do mundo. Era preciso partir logo. Parar Tobias.
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ㅤㅤ Não! Faça parar! Afaste-o de mim! Eu gritava, sem resposta contundente. Aquela sombra estava ali novamente. A sombra maldosa de aura de terror, aquelas grandes brasas vermelhas cada vez mais próximo da vidraça que me libertava. Não era ele que eu queria! Não! Onde estava aquela outra boa sombra? Aquela que me ouvia silenciosa e parecia compartilhar de pena comigo? Nunca mais aparecera! Abandonou-me! Desgraçada! Vou fazê-la pagar por todo horror que me fizera passar! Todo! Todo!
ㅤㅤ Era assim que minha mente conturbada pensava. Minha mente cega pelo ódio e pelo desespero. Eles estavam me usando para conseguirem o que queriam. E forçavam a odiar a única silhueta que me dera atenção. Tremia de medo e minha alma vibrava de ranco ao mesmo tempo. Não era daquele jeito que eu era normalmente. Não o velho Macedo.... Espere, Macedo? Sim! Era esse meu nome! Começava a lembrar! Macedo! Naquele dia jurei, que eu, Macedo, iria me vingar de todos aqueles ignorantes que nada faziam para me ajudar, de aqueles que me maltravam e davam altar gargalhadas desconexas, daquela que me abandonara quando eu mais precisava.

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2 comentários:

  1. vc escreve muito bem e como já falei, muito detalhadamente, o que é legal e enriquece o texto!
    Eu ainda acho que vc deveria tem uma pagina no recanto das letras.
    Eu queria ver textos curtos seus também, porque esses textões, eu sei que são capítulos do seu conto, mas não é o ideal para um blog, esses dias comecei a ler o capitulo 1 e já lí até o 3, esse eu ainda não lí porque quero ir seguindo!

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  2. uia, que história cabulosa!

    é muito inteligente a forma como voce vai unindo os personagens!

    só quero ver onde isso vai dar... :B

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