terça-feira, 18 de maio de 2010

Rumos do Conhecimento

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ㅤㅤ As minhas mãos já estavam cheias de feridas abertas na época. Os professores eram, como sempre, severos ao extremo e a palmatória era fichinha perto do que eu sofria. Ainda mais comigo, o filho do grande Sir Grandford. Mas que diabos eu poderia fazer? Simplesmente não conseguia me manter acordado durante as oito horas de aula diárias que eles davam na escola para filhos de Influentes da sociedade.
ㅤㅤ Era lógico que tudo aquilo tinha um motivo, e mesmo com meu pai e toda minha família sabendo, eu não tinha nenhum privilégio. E toda noite era sempre o mesmo sofrimento, como se sempre eu fosse o mesmo louco. Sofria de insônia, a doença criava no antro da noite os maiores pesadelos para meus sentidos, não me deixando descansar em paz. E foi numa daquelas noites que eu conheci a alforria para tudo que me fazia mal.
ㅤㅤ Chovia forte e os trovões cruzavam os céus. Para pessoas normais, era simplesmente uma boa noite de sono, mas para mim, aquilo era a pior das noites da minha vida. As sombras feitas pelos trovões criavam fantasmas no meu quarto e eu só temia. No meu desespero, me encolhi no canto da cama e levantei a vela próxima ao corpo, junto da primeira coisa que havia ali. Folheava as palavras do livro quase sem sentido, tentando achar ali uma escapatória. E, de fato, ali estava ela.
ㅤㅤ As vozes sumiram, assim como todas as imagens que eu via de madrugada. Tudo porque eu gastava as horas de todas as noites debruçadas sobre os livros. Viajando em histórias mitológicas e fantásticas sobre grandes guerreiros e heróis. Também começava a usar a madrugada para estudar, e assim, com as notas altas, os professores não mais reclamavam de minhas sonecas durante a aula. Os livros me trouxeram a paz, e eu, aos poucos, abracei meu vício. Olheiras eram cada vez maiores, assim como minha pele se tornava frágil e pálida pela ausência da luz. Comia e bebia pouco, apenas me dedicando a leituras cada vez mais complexas.
ㅤㅤ Foi neste com este contexto que entraram no castelo Grandford. Membros da inquisição, abriram meu quarto e me prenderam, sobre acusações de magia negra e vampirismo. Diziam que eu estava cultuando o negro e o diabo, e o fato de eu já não conseguir olhar para o sol normalmente – devido à falta de costume, e unicamente a isso – assegurou mais ainda os fatos. Eu ouvi gritos de “Vampiro!” direcionados a mim enquanto ardia e agoniava na fogueira. E talvez, fosse isso mesmo. Não é o vampiro que transcende o tempo e o espaço com ajuda de um néctar sagrado chamado sangue? Era eu uma pessoa que transcendia qualquer barreira, com ajuda do meu néctar sagrado: A Leitura.

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ㅤㅤ Não que eu não fosse capaz de sobreviver do jeito que eu era antes. É só que... eu descobri um modo melhor. Meus antigos anos de ouro vieram na época em que eu era tão gentil quanto uma serra elétrica. Em menos de duas semanas meu pseudônimo e meu apelido ficaram conhecidos por todo o Brasil. Eu era nada mais que o “Curupira”. Nunca entendi direito, mas gostava do apelido e me lembrava dele sempre que eu dilacerava uma vítima minha no meio do mato.
ㅤㅤ Mas todos meus dias de glória terminaram quando o Delegado Prado e seus puxa-sacos conseguiram me encontrar. Pensei que minha posição social pudesse me salvar, afinal de contas. Me jogaram numa sala individual e a prisão se tornou um inferno. Cheio dos gritos de tortura que os presos continham em suas celas cheias. Minha felicidade decaiu. Nunca mais consegui dilacerar ninguém e o prazer por dissecar os órgãos de um ser humano vivo iam aos poucos perecendo, assim como a fúria de um leão que é preso em cativeiro.
ㅤㅤ Continuaria pura e simplesmente assim, por muito e muito tempo. Se não fosse por aquele milagroso dia. O horário de almoço era sempre algo tenso para os presos de celas individuais. Era um horário em que nós estávamos juntos dos outros presos. Todos sedentos por te matar por seus crimes lá fora. A gororoba era a mesma de sempre, mas já estava me acostumando com aquilo. Estava me acostumando demais com tudo aquilo, tanto que nem percebi quando o ser do meu lado começou a cochichar xingamentos a mim. Os primeiros foram tão baixos que eu nem pude notar, mas conforme passaram os poucos minutos, a intensidade e deboche com a qual ele falava começou a me perturbar exageradamente. Tanto que, enraivecido, ataquei-o. Vocês não sabem como é ótimo ver uma colher de plástico enfiada no olho de alguém que você odeia.
ㅤㅤ Achei divino a cena e aquilo acendeu quase todos meus ânimos. Até os agentes chegarem, me espancarem e me jogarem na solitária. O cubículo não tinha nada, e um dos guardas, dando risada jogou um livro para dentro da cela, dizendo que seria meu único companheiro por toda minha estadia na cela. Nutrido pelos meus ânimos despertos pelo sangue do outro, peguei o livro e dei risadas enquanto o lia com o pequeno faixo de luz que adentrava a cela. A primeira semana se passou daquela forma, só lia. Lia e Relia “O Mágico de Oz”. Animado. A segunda se passou com eu admirando cada palavra do livro, a loucura tomou conta, impulsionada pela solidão e pela recente matança. E foi com ela que comecei a amar o tal livro. O restos dos dias se passaram da mesma forma, até que fora libertado.
ㅤㅤ Novamente livre, lia todos os livros que me eram dados com um prazer imensurável. Esqueci do tempo, do meu corpo e do resto de minha vida. E quando menos notei, estava livre. Pronto para ler histórias de livros para homens com sangue no lugar dos olhos e da língua. Minha nova época de ouro havia chegado.

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ㅤㅤ Dois registros me interessaram muito hoje. Quero dizer, para alguém cujo trabalho é ler sobre o passado para criar soluções para o futuro, não é tão raro descobrir coisas interessantes. Mas mesmo assim, estas merecem registros em minha lente eletrônica:
ㅤㅤ Completamente averso a nosso atual mundo de carros flutuantes e cidades debaixo da terra, o primeiro dos registro trata da época em que cavalos ainda eram os meios de transporte. Deus, faz décadas que não vejo um animal desses. Eram registros do antigo Vaticano, da época da Inquisição. Registro antigos de registros antigos.
ㅤㅤ Conta a história de um homem que fora acusado de uso de magia negra a tal ponto que se tornou um vampiro. Falava de toda sua história de vida. Desde o momento em que deixou de surgir para a luz do sol para se manter incubado em sua biblioteca, até os anos em que os boatos começaram a surgir de que morte cercava seu castelo em noites sem lua. O filho de um Lorde foi queimado na fogueira, por simplesmente ler livros de madrugada. Atos que o salvavam de uma insônia terrível que lhe causava alucinações. Mas esta, com certeza fora amena, em relação a seguinte.
ㅤㅤ Francisco Del Montenegro foi preso depois de cinco meses solto, matando mulheres depois de torturas terríveis que se resumiam tirar toda a pele e deixar sangrar até a morte. Ele era filho de um grande empresário, de modo que foi difícil chegar até seu nome, ainda mais com o governo cheio de conspirações que reinava na época. Isso faz uns duzentos anos.
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ㅤㅤ A prisão só lhe serviu para uma coisa: Aumentar sua criatividade doentia.
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ㅤㅤ Depois de algumas encrencas que arrumou ali dentro, surpreendentemente se envolveu com livros. Devorava as páginas com os olhos quase o dia todo, de modo que até quase o internaram num hospício. Lia pelo menos seis livros por semana, e os guardas se cansaram de contar sobre as vezes que ficava contando as histórias em voz alta no meio da noite. Pelo menos, ele ficou manso durante todos os seus anos de pena.
ㅤㅤ Quarenta anos depois foi solto, com a mente perturbada e pronto para fazer mais loucuras. Se isto fosse nos dias de hoje, estaria trancafiado na prisão mais próxima do centro da terra possível até o dia de sua morte. Mas enfim, não deu uma semana até que novos registros dele surgiram. Mortes horríveis. As próximas doze pessoas que ele matou tinham sido desmembradas, com olhos arrancados e bocas cortados fora. Tudo isso enquanto ele lia em voz alta e em tom melódico suas histórias preferidas. Ele foi novamente preso, desta vez nos Estados Unidos da América, assim chamado na época. E lá, foi condenado a morte.
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ㅤㅤ Agora... O porque de eu registrar estes dois fatos como um historiador da FyCNet? É porque estes foram os primeiros registros que eu li, nesse meu trabalho promissor para o Sistema de Defesa da Terra, em que a leitura só serviu para aumentar a desgraça do mundo.
A primeira vez que o conhecimento nutriu morte, horror e sofrimento. Fico pensando se realmente a sabedoria é o caminho certo, talve ser ignorante seja a melhor coisa a se fazer numa vida. Assim você fecha os olhos para o óbvio horrível. Eu? Eu já estou viciado demais nas letras para parar com elas. Meu trabalho continua, e passo a maior parte do dia fazendo exatamente o que eles faziam: Lendo. Não livros, obviamente. Mas minha cadeira de conexão à rede com acesso aos registros históricos de Nível Y é a maior biblioteca do mundo.
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ㅤㅤ Maldição! Maldição! Mas que máquinas malditas! Maldição! Desgraça foi o dia em que decidi virar um historiador de registros! E Desgraça também foi a minha maldita curiosidade! Vou relatar isto da melhor maneira possível em menos de alguns segundos: O Nível Y tinha uma brecha com uma senha simples para entrar para o Nível Z do setor de registros. E lá estavam os fatos que as máquinas ocultaram de nós, humanos. Fatos que aconteceram durante a ascensão e que ainda ocorriam. Notícias de jornais publicados por gente, dizendo sobre como a FyCNet dominou o mundo com o horror e ameaças e de como eles manipularam a mente dos grandes políticos com sua inteligência artificial criada por nós mesmos. Também, ocultava registros e vídeos de rebeldes que lutam acima da superfície, rebeldes que eram e são humanos como eu. Usando armas de pólvora contra o terror dos lasers do Sistema de Defesa!
ㅤㅤ Alguns meses atrás digitei sobre a maldição do conhecimento exacerbado. E aqui, retifico isto: Sejam ignorantes! Pois a leitura me trouxe somente a desgraça! ....Ho, meu deus. Estão quebrando a senha de entrada que fiz para a porta da cadeira de Leitura! Não me resta muito! Isto é um registro que ocultarei num programa secreto que desenvolvi nas últimas semanas. Para os que ficam, saibam: As letras revelam sentimentos, mas ocultam muito! A senha para o Nível Z dos registro, se quiser é... ADIUEG@(G#YHRH*FO*HE#*OIEDaSXxsssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss.....


ㅤㅤ Conexão do Setor de Historiadores cortada. Analisando dados perdidos e deletando erros.


ㅤㅤ FIM
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Este conto foi produzido no improviso. A partir das duas idéias antes citadas, numa tentativa de uni-las numa mesma história. Agradeço a Thiemi e a Akina por me fazerem escrever os textos com o tema "Como um Livro mudou minha vida", que resultou em "Prazeres Devaneios" e "Durante Madrugadas". :D

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