quinta-feira, 24 de junho de 2010

A Liga dos Diamantes


ㅤㅤ A loja nem ao menos tinha nome. Estava caindo aos pedaços, e os seus produtos – sapatos e tênis empoeirados – estavam para todos os lados, em montes que pareciam cair na cabeça do primeiro cliente que entrasse. Por sorte, não caiu quando eu pisei no tablado velho. Mas, mesmo que eu fosse engolido por um mar de ácaros, nada mais importaria. Aquele era o lugar, só podia ser lá. Tinha de ser ali.
ㅤㅤ A rua Calógeras, fazia já parte da cultura de Campo Grande, sendo uma de suas primeiras ruas, lar da primeira agência dos correios e agora, detentora das lojas mais antigas e caídas do centro. Por alguns segundos me perguntei se valeria a pena todo o caminho que percorri até ali. Já estava na metade da pequena e escura loja, e ninguém tinha vindo me atender. Mas eu pude ver a figura dele, entre algumas caixas de sapatilhas velhas. O velho moreno tinha um chapéu de palha na cabeça e usava uma calça social surrada e uma camisa branca desabotoada, que mostrava a gordura que os anos acumularam nele. Justamente quem procurava.
ㅤㅤ – Pois não, rapaz? - Foi o máximo que consegui arrancar do dono da loja.
ㅤㅤ – B-Boa tarde, Senhor. E-eu... - O nervosismo me afetava demais.
ㅤㅤ – Você é gago ou tem problema de cabeça. - Ele falou bruscamente. - Quer o que?
ㅤㅤ – Não é isso, Senhor!
ㅤㅤ – Huh, falou certinho agora. Então, o que tu quer.
ㅤㅤ – O senhor é Tobias das Claras Neves, não é?
ㅤㅤ O velho estreitou os olhos na minha direção e eu pude me sentir nu ao seu olhar.
ㅤㅤ – É. Sou mesmo. Porque?
ㅤㅤ E eu, aos tropeços nas palavras, me expliquei para ele.
ㅤㅤ Vinha de Floreal, uma pequena cidade do Interior de São Paulo. E vinha até ali porque apenas uma coisa me movia a tanto: O Sobrenatural. Sempre fui fascinado por essas coisas tenebrosas, lia contos de terror e via fotos e vídeos de fantasmas na internet desde que a operadora pôde cobrir a área da minha cidade. Meu vício se superou quando eu comecei a pesquisar sobre magia e sobre caçadores de fantasmas, e coisas do tipo. Wicca, Macumba, Satanismo, Religião de Tribos. Comecei a engolir tudo e qualquer coisa que conseguia comprar ou ler na Rede. E quando menos notei; já estava magro, pálido e estranho. As pessoas me olhavam estranho e meus pais quase cancelaram a conta de internet umas trocentas vezes, por sorte eu sempre tinha algum argumento ao meu favor.
ㅤㅤ Na internet, participava de um fórum chamado Olhos Vermelhos. Que reunia um monte de caras como eu. Alguns falavam de alienígenas e contatos de quarto grau, outros falavam de fantasmas e anomalias em casas abandonadas, ou de magia e rituais. Mas de um modo geral, todos acreditavam em todos. Me aprofundei tanto no site, que, dois anos após meu primeiro login, me indicaram para moderador. Aceitei de imediato, e logo, o próprio dono, um homem de codinome Gárgula Negro, veio falar comigo sobre alguns tópicos exclusivos da moderação. Entre eles, o que mais me intrigou foi o da Liga de Diamantes.
ㅤㅤ Dizia de um antigo grupo de apreciadores de magia e paranormal, que vinham desde a época do Brasil colônia. Eram alguns negros escravos, e alguns lacaios de senhores de terras que tinham fundado o grupo. O nome vinha porque fora feito na época do ciclo do ouro e diamante, e cada um dos poucos membros da seita, possuíam para identificar-lhes, uma lasca de diamante.
ㅤㅤ Cada membro podia escolher apenas um discípulo, ao qual devia ensinar tudo o que sabia e o caminho que devia trilhar. Até o momento em que o jovem seguidor possa caminhar com seus próprios passos, levando consigo a lasca de diamante. Pesquisei à finco sobre a Liga, e meu sonho, daquele instante em diante, foi entrar para o grupo seleto.
ㅤㅤ Anos de pesquisa, e comecei a viver sozinho. E, quando estava com vinte e poucos anos, descobri finalmente a localização de um dos membros. Era Tobias Neves. Foi apenas questão de mais alguns meses para juntar dinheiro e viajar até ele.
ㅤㅤ E foi exatamente desse jeito que contei a vocês, que falei com ele. A resposta, entretanto, veio seca e grossa.
ㅤㅤ – Cai fora daqui, guri.
ㅤㅤ – Mas, Senhor Tobias...
ㅤㅤ – Sem mais, tá olhando pra mim? O que eu tenho de especial pra tu? Pesquisei sobre macumba, sobre satanismo e até sobre sacrifícios humanos realizados pelos índios Guaicuru, que foram escondidos no tempo. Sou um poço de conhecimento mágico, moleque, mas olha pra mim. Tô aqui, empoleirado e velho, no meio desse monte de merda. - E bateu distraidamente num monte de sapatos. - Some da minha vista que é melhor pra tu.
ㅤㅤ – Não vou.
ㅤㅤ E não me perguntem da onde veio minha determinação.
ㅤㅤ – Toda minha vida baseou-se no fora do padrão, Senhor. Tudo que já fui capaz de fazer foi graças a rituais Wicca e coisas do tipo. Tenho certeza que já falei com duendes e outras criaturas mágicas durante minhas sessões!
ㅤㅤ – Baboseira! Acha que esses livros de 39,90 que vendem por aí dizem alguma coisa com coisa!? Você é só mais um babaca.
ㅤㅤ – Não! Os livros foram transcritos por um fórum confiável! Já deve ter ouvido falar! O Olhos Vermelhos! Nunca ouviu?
ㅤㅤ – Nunca ouvi! Agora, suma da minha frente, antes que eu chame a polícia!
ㅤㅤ – Não moverei um pé.
ㅤㅤ – Mas que filho da... - E ele mordeu o próprio lábio se contendo para não levantar e me encarar. Mas sua feição, de alguma forma tornou-se mais passiva. Um garoto pálido e magérrimo. - Que seja! Se você passar no meu teste, deixarei fazer qualquer coisa! Te dou até o diamante.
ㅤㅤ E retirou a dentadura, mostrando que o último dos dentes dela emanava um brilho radiante, mesmo que ofuscado com o tempo e mal tratos.
ㅤㅤ – Teste? - Eu vacilei, mas logo me recompus. - Tá, eu aceito!
ㅤㅤ – Guri burro. - E ele esboçou um sorriso de escárnio sem dente algum. - Seguindo até o início da calógeras, tu vai achar a antiga estação rodoviária abandonada. Ela é assombrada por uma porrada de espíritos, que surgem por lá na hora que o trem de cargas fazia sua parada, de madrugada. Passe uma noite em claro lá e você passou no teste.
ㅤㅤ – Só isso? - Me vangloriei, afinal de contas, já havia feito coisas parecidas milhares de vezes.
ㅤㅤ – Só. Agora some daqui.
ㅤㅤ
ㅤㅤ O resto da tarde foi de visitas. Meus pais – com quem ainda mantinha um bom contato, depois que comecei a ocultar meus hábitos incomuns – me pediram para comprar algumas lembranças da minha suposta “viagem de negócios”. Passei na Feira Central, onde comprei algumas bugigangas que nem me lembro mais o que eram e comi o Sobá Okinawano, da barraca da família que começou a vendê-las na feira. Muito melhor que qualquer lamên ou macarrão que já tenha comido em São Paulo. Passei pela frente da estação abandonada e a olhei com calma, ela ficava praticamente ao lado do Armazém Cultural, o antigo depósito da ferrovia que foi reformado e agora era um centro de cultura, que por sua vez, ficava ao lado da Feira Central, praticamente a melhor atração da cidade.
ㅤㅤ Descansei o resto da tarde e início da noite no Hotel Gaspar, que também era próximo de ambos os lugares. Eram exatas onze da noite quando saí para meu teste de aceitação para a Liga dos Diamantes. A estação ferroviária, de noite, ficava um tanto mais assustadora. Era uma grande construção com uma entrada de porta dupla mal fechada, o muro branco contrastava com o relógio que ficava alguns metros acima da porta, indicando o horário em que parou, dezenas de anos antes. A única alma viva que havia por perto eram alguns drogados, jogados do outro lado da rua, e moradores curiosos que comentavam sobre mim.
ㅤㅤ Adentrei o local com calma e sem tanto problema. Estava vazio e aos pedaços, mas havia indícios de que pessoas às vezes paravam por ali. Como uma embalagem de salgadinho jogada num canto e uma latinha de cerveja em outro. Era silencioso e escuro, e ratos passavam a todo instante. Me sentei junto a bilheteria, e apoiei minha cabeça na parede. Não seria nada difícil.
ㅤㅤ
ㅤㅤ E, por incrível que pareça, não estava sendo nada difícil. As horas passavam demoradas, é óbvio, porque afinal, eu devia passar a noite toda em claro e sem fazer absolutamente nada, a não ser ver e ouvir. Os únicos sons que pareciam altos o bastante eram o de ratos fuçando coisas antigas. Ou o de baratas passando de um lado para outro. Só uma vez ou outra, eu parecia sentir ouvir um ruído, ou voz. Mas nada que já não tenha presenciado igual ou parecido. Cocei a face e bocejei. E esse bocejo, acho que foi o meu grande erro.
ㅤㅤ Ao final dele, apoiei a cabeça para trás e fechei os olhos para um leve descansar de vista. O horror começou a aí. Cochilei por cinco minutos, ou talvez por duas horas, ou eu não faço idéia de quanto tempo. Só sei que abri os olhos com uma sensação horrível passando por todo meu corpo. A temperatura em volta estava muito anormal, parecia um deserto! Olhei para fora pela janela e notei que havia uma iluminação que antes não estava ali, e então, saí. Lá, um sol gigantesco e ardente parecia quase engolir a terra, como se eu pudesse tocar seu calor terrível sobre mim. Havia ventos fortíssimos que levantavam a poeira que os paralelepípedos preservados pelo governo na frente do Armazém guardavam em seus vãos.
ㅤㅤ De modo que, até mesmo eu estava começando a ficar com medo. Eu, que sempre quis presenciar cenas como aquelas. Eu, que sempre sonhei com algo tão anormal. Parecia o fim do mundo, olhei para os lados e as construções, que antes eram recentes, agora pareciam sofrer com mais de duzentos anos de decomposição. Tremi nas bases e recuei aos poucos para dentro da estação. Mas não antes de ver meus algozes.
ㅤㅤ Ao longe, uma mancha começou a cobrir o céu. Uma mancha tão negra e assustadora que conseguia superar até mesmo ao Sol arrebatador. A única coisa que conseguia destruir a homogeneidade daquela escuridão eram os poucos pontos vermelhos que o furavam o negro. E a massa se aproximava, inteiramente para mim. Até que os distingui. Eram pequenos demônios, de escamas negras e garras assustadoramente afiadas, portando asas fortes de uma cartilagem de mesmo tom.
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ㅤㅤ Os meus gritos de nada serviram, assim como a estação. Eles destroçaram a janela e a porta e entraram furiosamente avançando sobre mim, e apenas sobre mim. Perdi o chão para me apoiar, e senti as lâminas começarem a perfurar minhas costas enquanto me levantavam para o resto dos monstros. Em menos de cinco minutos, a maior parte de minha pele havia sido comida, e eu sentia a pura e horrível dor de sentir meus ossos e carne serem bicados e arrancados. E só sentia, pois meus olhos foram um dos primeiros itens a me arrancarem. Me perdi num universo inimaginável de dor, tanto, que até me esqueci do meu sonho e de todo o resto.
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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~ㅤㅤ
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ㅤㅤ – E então? - A voz jovem soou, vinda da esquina próxima à estação.
ㅤㅤ – Gostei. Guri, até que tu não é qualquer merda. - Tobias respondeu.
ㅤㅤ – É. Será que com isso eu ganho sua confiança?
ㅤㅤ – Claro. Claro. Mas o Diamante, você só ganha depois que tu me matar. De algum jeito bem terrível.
ㅤㅤ – Pode deixar. Até lá, vou aprender mais sobre os rituais de transporte de planos. O rapaz ali, foi só um primeiro teste. Tem muitos de onde aquele veio. - O homem, de cerca de trinta anos deu risada. Acompanhado do próprio Tobias. Fazia frio naquela madrugada, o motivo pelo qual ele usava aquela jaqueta de couro com a estampa da figura horrenda nas costas, um Gárgula, do mesmo tipo que devorara o Jovem desiludido em outro mundo. Já o homem da jaqueta, o Gárgula Negro preparava seus Olhos Vermelhos para mais uma vítima.

Um comentário:

  1. Não gosto muito desse assunto, não me desperta interesse.
    Mas seu conto está muito bem escrito, prende a atenção de quem lê até o final.
    parabéns
    :)

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