segunda-feira, 12 de abril de 2010

Chaves, Reflexos, Sentimentos

Não. Definitivamente não era ali que ele estava antes. Olhou para si mesmo e estranhou: Não eram aquelas roupas que ele estava vestindo. Não aqueles trapos velhos. Por um segundo, seu antigo problema mental quase o aturdiu: Pânico. Quando ele se desesperava, não havia quase nada a fazê-lo parar de tremer e implorar por ajuda.

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Mas aquilo era tão antigo que não teve forças para se manifestar. Esfregou os olhos. Concentre-se, Daniel! E após pronunciar a frase para si mesmo, ele reganhou a sanidade para raciocinar. Daniel estava num corredor escuro, tinha pouco mais de um metro de largura, e parecia se estender quase que infinitamente num breu que aumentava conforme seus passos o deslocavam para frente.

Não havia saída atrás dele, apenas o muro do corredor – feito com tijolos marrons e argamassa – que o obrigava a seguir em frente rumo ao que a escuridão lhe ocultava. Ou melhor, até havia luz. O local estava fracamente iluminado por lâmpadas incandescentes presas ao teto que ficavam falhando a todo momento. Aquilo e nada eram quase a mesma coisa.

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Por fim da análise; percebeu que, preso no cinto surrado de couro que segurava as maltratadas calças que vestia, havia uma argola de ferro com pequenas peças metálicas articuladas a ela. Um molho de chaves com exatas treze chaves. As chaves eram feitas à moda antiga, com detalhes e relevos que as enfeitavam. Seis tinham uma pedra vermelha brilhante fincada no apoio para os dedos, outras seis tinham pedras verdes. E uma, última, tinha um cristal negro acoplado a ele.

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Treze.

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Um calafrio lhe subiu pela espinha ao pensar no número. Lembrando-se vagamente da adolescência, onde ele acreditava piamente em números da sorte e do azar. Novamente, conteve uma crise de pânico e respirou fundo. Ele não tinha idéia de como chegou ali, assim como não se lembrava de nada, mas não poderia ficar ali para sempre.

Começou a andar.

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Minutos, horas, dias. Ele parecia ter perdido completamente a noção do tempo enquanto caminhava, com seus sapatos esfolados se arrastando pelo chão. Já estava para parar, quando avistou um diferencial: Ao longe, pareciam haver pequenos borrões negros nas paredes de ambos os lados. Portas! Pensou ele e disparou.

De fato, ali haviam portas. Eram seis de cada lado do corredor todas simples, e uma numa parede que bloqueava o caminho. Daniel chegou ao fim do corredor. Poderia simplesmente se dirigir a qualquer uma delas e abri-la, para descobrir o que o futuro lhe reservava. Mas algo lhe dizia para abrir todas. Uma a uma.

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A primeira porta foi aberta com uma chave de Pedra Verde. Ela se alongou para dentro sem fazer ruído algum. Ali, havia um espelho. Daniel olhou sua imagem por apenas um segundo, vendo como estava deplorável. No instante seguinte, a imagem refletida mudou.

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Viu sorrisos e sentiu a alegria o inundar. E, num piscar de olhos, ele não estava mais no corredor escuro. Agora estava no seu quarto. Um peso considerável estava sobre seu corpo e ele retirou o cobertor para dar de cara com Laura. Sua queria esposa estava ali, deitada sobre seu peitoral com um sorriso a lhe receber.

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- Demorou para acordar, amor. - Disse ela.

- É, os processos me matam. - Ele respondeu, mesmo que na realidade, Daniel nada tenha dito.

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A imagem mudou no segundo seguinte, e assim prosseguiu por minutos indeterminados. Imagens de felicidade com sua mulher. Viu a cena do casamento, sua primeira noite de amor com ela e até mesmo o dia em que ele fora conversar com os pais dela sobre seu compromisso com a mulher de sua vida.

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Mas os minutos são cruéis e passam rápido na beleza. E logo, num seguinte piscar de olhos, Daniel estava ali novamente, no corredor escuro, olhando para um espelho que apenas refletia um negro que inexistia na realidade.

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Foi para a porta do outro lado. E ali colocou outra chave de Pedra Verde. A porta foi destrancada. Ela se alongou para dentro sem fazer ruído algum. Ali, havia um espelho. Daniel olhou sua imagem por apenas um segundo, vendo como estava deplorável, mas agora resguardando um sorriso pelas imagens relembradas. No instante seguinte, a imagem refletida mudou.

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- Um grande viva para nosso grande Daniel aqui!

E seguido ao grito, vários urros soaram. Daniel estava agora num outro lugar familiar, o pub que sempre ia com os amigos surgiu a sua frente. Ao seu lado, um homem com as mãos enfaixadas devido a um acidente recente, era aquele que gritava em sua homenagem: Thomas, seu melhor amigo estava feliz, mesmo quando deveria não estar tanto assim. Ambos competiram para a mesma vaga na empresa, mas Daniel venceu Thomas por um número quase irrelevante de pontos. Ainda sim, Daniel havia ganho. E lá estavam eles comemorando sua vitória junto de mais uma dúzia de amigos.

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A imagem trocou no instante seguinte, mostrando cenas das noitadas que Daniel teve com seus companheiros, sobretudo com Thomas, que conhecera desde a faculdade. A época da liberdade de ser solteiro e das aventuras de uma só noite. Thomas era um dos únicos testemunhos de muitas de suas loucuras.

E assim mais longos minutos tomaram forma com as imagens. Sólidas, quase como se Daniel pudesse tocá-las. Mas ao mesmo tempo, ilusórias, como se Daniel soubesse que voltaria para o terror de um metro e meio silencioso do corredor.

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Como que lendo aos pensamentos de Daniel, a imagem se despedaçou e ele voltou a realidade – se é que era real – das portas que lhe mostravam a vida. Sentiu-se um pouco mais revigorado, talvez eu tenha interpretado mal todo esse lugar surreal, pensou ele.

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Avançou para o parde portas seguintes, desta vez, usando uma chave de pedra vermelha. A porta foi destrancada. Ela se alongou para dentro sem fazer ruído algum. Ali, havia um espelho. Daniel olhou sua imagem por apenas um segundo, vendo como estava deplorável, mas agora resguardando um nostálgico ar de lembranças antigas. No instante seguinte, a imagem refletida mudou.

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Um mal-estar cobriu completamente toda sua aura. E, mesmo sem a imagem ainda não ter mostrado nada, ele sabia que odiaria o que estava para ver. Algo sinistro, algo aterrorizante. Algo que ele não deveria ter visto. Contudo, não teve tempo de pensar mais nada, a escuridão continuou a cobrir tudo e só então notou que a visão já tinha começado.

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Estava tudo escuro, porque era noite e luzes não estavam acesas. Mesmo assim, Daniel podia ouvir ruídos e baixos gemidos. Demorou poucos segundos para sua visão se acostumar com a baixa iluminação e ele pôde ter um vislumbre do que assistia. Ele via uma orgia carnal.

Sobre uma cama, estavam uma mulher, amontoada no meio de dois grandes corpos que não paravam de se mover. A mente de Daniel tentou arrumar alguma explicação para a cena, mas era quase impossível saber o que estava acontecendo ali. Tentou, então, apenas observar. O brutamontes montado sobre a mulher não parecia ser ninguém que conhecia, não pela estatura física do homem. Também, o que estava abaixo tinha cabelos negros longos que se destacavam sobre as almofadas brancas, ninguém que conhecia era daquela forma. Mas a mulher tinha algo de familiar. Seus cachos amontoados sobre os ombros pareciam de... Não. Não pode ser.

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A perna de alguém esbarrou sobre o criado-mudo acendendo a cena que Daniel não gostaria de acreditar. Laura estava delirando de prazer com gemidos que se faziam mais altos a cada segundo, ela tinha um sorriso estampado na face enquanto suas mãos arranhavam os largos ombros do homem montado sobre ela. E, o que era incrível para o trio, era o terror de Daniel.

Sentiu o ar escapar de seus pulmões, assim como sua vontade de fechar os olhos para aquilo se fez presente. Mas era impossível, os minutos, novamente cruéis o obrigavam a alongar a cena por uma eternidade.

Minutos estes que o fizeram notar mais cenas que fizeram sua raiva e desprazer crescerem: Aquela, era sua casa. A mesma almofada branca aonde Laura e eles se amaram tantas vezes era o berço da traição da mulher. Notara também a aliança, jogada ao lado do Criado-mudo, como se nunca realmente desejasse aquilo, mesmo tendo uma linda filha e filho com Daniel.

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Já estava para notar mais detalhes doloridos, quando o espelho o salvara do sacrifício.

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Mais uma vez voltara ao corredor. Mas agora, sentia-se fraco e despreparado, frente ao espelho enegrecido. As mãos tremiam em volta do molho de chaves, desviou o olhar para frente: Haviam mais dez portas. E ele mal sabia o que poderia esperar por ele em cada uma delas. Respirou fundo e, abatido, foi para a próxima das portas, do outro lado do corredor.

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Sobre a tranca, novamente uma chave de pedra vermelha. A porta foi destrancada. Ela se alongou para dentro sem fazer ruído algum. Ali, havia um espelho. Daniel olhou sua imagem por apenas um segundo, vendo como estava deplorável, agora com lágrimas na face triste. No instante seguinte, a imagem refletida mudou.

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Um estrondoso barulho soou, junto a imagem de um grande vaso sendo jogado furiosamente ao chão. Thomas, arfava pesadamente enquanto procurava mais itens nos quais descontar sua raiva. Seus olhos pareciam pegar fogo enquanto ele agora chutava com toda a sua força algumas vassouras que estavam no canto de sua garagem.

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- Como o desgraçado filho-da-puta conseguiu!? Argh!

E desferiu um chute no carro. Um chute furioso, que fez o alarme acionar. Mas Thomas pareceu não ligar para o barulho altíssimo e irritante, sentou-se no canto da garagem e tomou fôlego.

- Que diabos! O que o maldito tem a mais que eu!? - Vociferou para o nada. - Desde a faculdade era assim! Ele sempre pegava as melhores garotas! Era o preferido dos professores! Sempre! Argh! E agora isso!? Aquela promoção era minha! Minha!

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E só então, Daniel pôde entender o que estava acontecendo ali. Sentiu um aperto no coração e uma mágoa o recheou, uma mágoa que crescia ainda maior por causa da dupla cena de traição, uma seguida da outra. O seu melhor amigo estava lá, esbanjando ódio após perder para ele. E não só isso, o que Daniel observava era uma raiva contida, como se todas as horas que eles passavam juntos fossem apenas sacrifícios irremediáveis.

Ficou observando-o; calado, incrédulo. Thomas balbuciava palavras a torto e a direito, sempre denegrindo e esmagando a imagem de Daniel. Cada palavra parecia pesar mais e mais sobre os ombros do amigo.

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Depois de algum tempo na cena, Thomas levantou-se e virou-se para a parede. Pareceu ter se acalmado a ponto de agora respirar regularmente. Quando, de súbito ele desferiu dois socos contra a parede da garagem. Sangue escorreu dos punhos, mas ele pareceu não ligar.

Finalmente, entrou na casa e voltou em instantes, com as mãos enfaixadas. Desligou o alarme do carro e entrou no mesmo. Tinha uma comemoração para ir, para resguardar mais do seu ódio.

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Aquela fora uma cena que passou rapidamente. Talvez, pela intensidade de cada ação que Thomas havia feito. Daniel sentiu-se sozinho, sentiu-se cansado e com vontade alguma de voltar para o meio daqueles que uma vez ele considerou o maior marco de Paixão e Companheirismo em sua – agora mísera – vida. Foi quando um aperto lhe fustigou o coração, e ele raciocinou algo que deveria ter pensado muito antes. Haviam mais oito portas paralelas, assim como mais quatro chaves enfeitadas de verde e quatro de vermelho. Olhou para trás, para as portas que já passaram e depois voltou-se para frente. Meu deus, não. Não faça isso comigo.

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Tinha uma teoria a testar. Com certa urgência, Daniel se apressou para a próxima porta e enfiou nela a chave de pedra verde. E, ao contrário dele, ela se alongou para dentro sem pressa alguma. Ali, havia um espelho. Daniel olhou sua imagem por apenas um segundo, vendo como estava desesperado. No instante seguinte, a imagem refletida mudou.

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Via-se diante de um quarto, como se fosse um observador invisível. O pequeno cubículo era branco e parecia ser completamente confortável. Ele conhecia aquele lugar, mesmo estando vazio. Contemplou-o com certos suspiros, enquanto sua mente ainda não se preocupava com o que estava por vir depois da visão. Pensou sobre ele pelos segundos que pôde, até ouvir passos no corredor. ㅤㅤUma voz familiar: A dele.

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- ...Afinal, hoje foi um incrível dia, não?

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Daniel entrou no quarto sorridente, levava com as mãos uma cadeira de rodas que carregava uma idosa mulher. A velha parecia, mesmo estando no tão arejado lugar, como se estivesse na mais terrível masmorra. Tinha os mesmos cabelos castanhos de Daniel e os traços dos rostos também era familiares.

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A face dela era enrugada, tanta que os olhos triste quase se perdiam no meio de tantas dobraduras da velha pele. Mas Daniel, ali, não parecia nem ligar. Afinal, estava feliz. Estava com aquela que o pôs no mundo. Mãe. Pensou o Daniel observador enquanto fitava a cena toda com olhos marejados.

O Daniel das lembranças acariciou a face da velha e foi para a janela, abrindo as cortinas para deixar a luz entrar com mais intensidade na pequena sala. Sua velha mãe sempre estava daquela forma, inerte e quase vegetativa. Fora assim desde que nascera e fora criada pela assistente social, fazendo apenas poucas visitas a mãe. Mesmo assim, Daniel não se deixara levar por qualquer outra coisa, após ser de maior, tomou responsabilidade por tomar conta e bancar as contas que a mãe acumulava com o governo enquanto internada naquele centro de reabilitação. E ia lá, sempre que podia.

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De súbito, a imagem se contorceu e mudou, agora mostrando a primeira vez que ele encontrara a mãe, cinco anos depois de nascer. Com lágrimas nos olhos, o pequeno Daniel abraçou a mulher opaca deitada na cama. Ela, só pôde soletrar uma palavra.

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- A...

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Nem notou quanto tempo havia se passado naquelas curtas visões do passado. Uma brisa fria saiu por debaixo da décima terceira porta e trouxe de volta todas as preocupações e angústias de Daniel. O encanto fora quebrado e agora ele sabia que deveria seguir em frente. Tomou coragem na imagem da mãe, que não via já fazia muito tempo e seguiu para a porta do outro lado, deixando para trás o espelho, que assim como os outros se tornara negro.

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Botou novamente uma chave de pedra verde nela. Ela se alongou para dentro sem fazer ruído algum. Ali, havia um espelho. Daniel olhou sua imagem por apenas um segundo, notando o receoso e hesitante traço de preocupação na cara carcomida por leves maltratos. No instante seguinte, a imagem refletida mudou.

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- ...!!!

Daniel assustou-se, sendo recepcionado pelo choro de um bebê. A visão se clareou e ele se viu na sala de parto do hospital. Novamente, via a si mesmo no passado, com os músculos rijos de nervosismo ao lado da mulher, Laura, deitava na cama. Sentiu um desgosto ao vê-la, mas o som do choro se fez mais alto e ele deu a este, a atenção devida.

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Marco, seu primeiro filho nascia naquele momento. E desta vez Daniel não esboçou nenhum sorriso vendo a cena de suas memórias. Ao invés disso, uma maré de preocupação o cercou, uma maré de medo e desespero. A visão do paraíso se distorceu para se tornar uma cena do inferno, ele queria que aquilo acabasse para ele finalmente sanar a dúvida que lhe matava. Precisava testar a próxima chave. Uma chave verde na próxima porta. Com Marco e sua mãe, ele não gostaria de se arriscar.

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De modo que assim, todas as cenas de felicidade; como os primeiros passos de Marco e sua primeira palavra, foram inundadas em uma pressa bárbara. Não que Daniel não deixou de observar: Ele até tentava sorrir, mas sua preocupação era tamanha que os minutos da visão daquele espelho se passaram rapidamente. Embora para Daniel, uma eternidade seja o tempo mais definido.

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Quando sentiu-se novamente no corredor de tijolos marrons, ele prendeu a respiração, tentando conter uma crise de pânico que se abrandava dentro dele. Com ela contida, foi para próximo par de portas viradas uma para a outra. Era ali que ele queria mudar as leis do jogo. Desde o seu início, algo o dizia para colocar a chave, não era simplesmente sua intuição. Era como se Algo estivesse dentro de sua mente, lhe sussurrando o que deveria fazer. Cada escolha, cada chave. Mas agora seria diferente.

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Contrariou o pedido desconhecido e avançou para a próxima porta, colocando sobre sua fechadura uma chave de pedra verde que já usara antes. O item destravou a porta e ela se abriu lentamente, assim como todas as outras. Mas o espelho agora se alterara. Não estava mais refletindo sua imagem. Distorcido, seu novo eu que aparecia sobre o utensílio parecia destruído e arregaçado de vermelho. De sangue. Daniel olhou para a imagem por um segundo, antes de desviar seu olhar. Neste exato instante, a pedra verde da chave pendurada na porta começou a deformar-se. Assim como uma gota de sangue manchando um copo d'água, um fluido vermelho surgiu e envolveu o antes verde ornamento. Daniel nem havia notado, quando voltou-se a virar para o espelho e encontrou-o refletindo sua imagem assustada. No instante seguinte, a imagem refletida mudou.

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O som de uma festa alegre e divertida podia ser ouvida de longe, mesmo que Daniel observasse agora um pequeno beco escuro e úmido. Os fogos podiam ser ouvidos ao longe, talvez fosse ano novo, talvez fosse qualquer outra comemoração digna. Contudo, os ruídos de alegria logo foram substituídos por passos. Passos apressados vindos de um salto digno a se fazer o barulho.

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Uma mulher surgiu na calçada, desesperada e arfante, entrou no beco sem hesitar, enquanto olhava para trás a cada segundo. Tensa, ela se escondeu atrás de caixotes de lixo e tentou controlar a respiração, sem sucesso. Mesmo no escuro, Daniel conseguiu notar alguns poucos detalhes dela. Estava com uma maquiagem borrada na face e vestia-se como que para a festa cujo os sons ouvira, seu peito enchia e e esvaziava a cada meio segundo, mostrando o desregulado resultado de uma fuga. Olhou para a entrada do beco novamente enquanto pegava o celular na bolsa prateada, temia alguém.

Discou números freneticamente com os dedos trêmulos e pôs o celular no ouvido enquanto deixava a cabeça pender sobre um monte de lixo. Talvez tivesse finalmente encontrado segurança ali. Neste meio tempo, Daniel pôde observar mais traços dela. Tinha um cabelo liso, cujo a cor ainda não conseguia definir devido a baixa luminosidade. Devia ter pouco mais de vinte e cinco anos, e definitivamente não era feia.

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Seus pensamentos foram interrompidos. Não só os seus, como os da mulher. Uma mão segurou o celular e jogou-o no chão com força. Um brutamontes embriagado estava sobre ela, segurando seus braços com tanta força que Daniel podia notar. E foi então que sentiu um aperto no coração. Já era mais que claro. Aquele monstro que violava sua mãe era seu pai. Ele simplesmente soube, como se algo soprasse as palavras ao vento. E Daniel, num estado de choque, ficou a observar a noite em que fora gerado.

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Dali em diante, seus sentimentos murcharam com tal rapidez que ele sentiu-se desnorteado, e por isso, não emanou mais nenhum tipo de manifesto. Só ficou observando a imagem mudar. Agora vendo sua mãe, chorando sentada à maca de um médico. Abraçava a barriga com força, quase fincando as unhas por cima do vestido que usava. Os olhos estavam turvos e ela soletrava palavras baixas, mas que Daniel – por algum motivo – fora capaz de ouvir.

- Não... Não quero essa aberração. Filho de um monstro!

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Já não havia muito ao que Daniel se prender. Tentou fechar os olhos novamente, mas era como se algo o direcionasse para ver tudo aquilo. As cenas seguintes foram umas mais chocantes que as anterior. Uma discussão de sua mãe com seus avós – que alias, nunca conhecera – sobre ter ou não o filho lhe salvou a vida antes mesmo dela brotar.

Daniel pôde sentir na pele a raiva e o rancor que sua mãe tinha dele. Um ódio de um filho que nunca deveria ter existido. E assim as cenas mudavam, mostrando cada sofrimento solitário da mulher, até a cena do parto. Daniel nascera de cesariana, e sua mãe estava jogada na cama, com os olhos vidrados no nada, opacos. Como os que conhecia ao vê-la no quarto do centro de reabilitação. E enfim, a cartada final:

- A... - Disse sua mãe. Como ela dizia a anos para ele, mas nunca completava a frase ou sequer a palavra. - Afaste-o de mim. Afaste o inferno.

Cada palavra veio como uma lança no coração dele. Como se imaginasse cada segundo que passara dedicado a sua mãe fosse em vão. Como que cada segundo que passara com ela, não passasse de um terror na vida daquela que lhe deu a vida. Como se seria muito melhor se ele não existisse.

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Caiu no chão, os joelhos falharam e lágrimas silenciosas caíram sobre sua face. Não era aquilo que ele queria ter visto ali. A chave que ele colocara era com uma pedra verde. Como se tornara vermelho? As perguntas rondaram a sua cabeça por pouco mais que um segundo. Quando ele mesmo soube a resposta: Não havia como mudar a ordem dos fatos. Por mais sofrido que seja, ele teria de ir até o fim.

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Levantou-se e virou para a outra porta. Ali estaria algo terrível relacionado a Marco. Já tinha certeza. Puxou o último resquício de coragem que tinha e afundou sobre a fechadura a chave certa: Uma com pedra vermelha. Ela se alongou para dentro sem fazer ruído algum. Ali, havia um espelho. Daniel olhou sua imagem por apenas um segundo, vendo o quão opaco ele parecia estar. No instante seguinte, a imagem refletida mudou.

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Aquela talvez fora a cena mais rápida de todas as portas, ou talvez seja porque Daniel se recusou a gastar os cruéis minutos vendo aquela cena tão maldita para ele. Daquela vez, o tempo tinha avançado.

Vira Marco mais velho, provavelmente tinha ali dezoito anos ou mais. Já era um homem e Daniel, em alguma parte de sua já desgastada alma, sentiu orgulho daquele homem com os mesmo cabelos castanhos que os dele. Mas, qualquer orgulho desmoronou no instante seguinte.

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Como um turbilhão de terror, Marco – que estava sentado na cama de seu quarto – puxou de debaixo do travesseiro uma pistola. Colocou-a dentro da boca e disparou um único tiro. Daniel não podia acreditar. Ele não sabia de nada. Não sabia o que tinha acontecido. Não sabia do que Marco estava sofrendo. Não sabia se podia ajudá-lo. Simplesmente viu se filho se matar na sua frente.

Os miolos explodiram dentro da boca de seu filho e espirraram, tanto para frente, sujando a camiseta branca, quanto para trás, abrindo um buraco acima da nuca dele.

Sangue começou a jorrar incessante enquanto o corpo, aparentemente inerte tombava sobre a cama de lençóis limpos. Daniel não tinha mais lágrimas e mais forças. Toda sua esperança se desfragmentou ao ver tal cena bem a frente de seu olhar. Já não podia aguentar. Haviam ainda mais dois sofrimentos antes da porta do fim do corredor, e ele não tinha certeza se aguentaria ambos. Sua mente divagou, quando os olhos lhe chamaram a atenção para a cena de seu filho sobre a cama.

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O pé dele tremia, assim como a mão mexia de leve e o peito mexia-se num ritmo lento e sofrido. Marco piscou. A tentativa de suicídio não funcionara como devido. Uma dor fustigante veio a Daniel, imaginando o quanto seu filho estaria sofrendo naquela situação. E assim novas lágrimas brotaram enquanto ele estava mergulhado na visão do espelho.

Agora, ele tinha de esperar. Tinha de ver seu filho morrer e seu sofrimento acabar. Precisava ter certeza que ele iria em paz. E foi exatamente nessa hora, que a imagem falhou e sumiu.

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Retirou a chave da porta e foi em direção a próxima. Decidiu que, já não valia a pena tentar expressar-se. Todo o sentimento que tinha fora esmagado, estraçalhado e incinerado. Ele agora era um corpo sem vida. Uma alma sem sentidos. Já não valia mais nada, e deveria terminar aquilo da maneira mais rápida possível, para finalmente saber do que se tratava tudo aquilo.

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Colocou a chave de pedra verde na fechadura da próxima porta, assim como pedia aquele corredor maldito que sugava sua existência. Ela se alongou para dentro sem fazer ruído algum. Ali, havia um espelho. Daniel olhou sua imagem por apenas um segundo, dando de cara com sua desamparada feição pela vida. No instante seguinte, a imagem refletida mudou.

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E daquela vez, as cenas passaram tão rápido que nem vale a pena narrar em detalhes. Preparado para a dor e para o sofrimento, Daniel apenas deixou circular as figuras de sua vida. Aquela porta lhe mostrou seus momentos solitários. Suas horas de leitura e suas reflexões que fazia, vez ou outra, consigo mesmo. Mostrou os minutos que esperava na volta do trabalho durante um engarrafamento, assim como horas de lazer ouvindo a música de seu agrado. Aquela fora a mais leve visão dos espelhos. Daniel já não ligava para si mesmo. Aquilo já não importava.

Quando o espelho se tornou negro e as visões terminaram, ele simplesmente se dirigiu para a próxima porta, e ali enfiou a última chave verde. Girou, abriu a porta e esperou para ver mais alguma cena de sua vida que valesse a pena perder.

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Daniel estava bem vestido. Usava seu melhor terno e se portava ao lado de Laura. Ambos sentados no meio de uma platéia grandiosa. Ao lado deles, só haviam homens notórios em trajes de gala e mulheres recheadas de peças de ouro. E mesmo assim, eles estavam no melhor camarote da festa.

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Ele parecia alguns anos mais velho do que lembrava ser, então supôs que aquela visão fosse de algo que ainda não acontecera. Algo que ele sentiria prazer ao ver, mas que odiaria por saber que por trás disso, o terror esticava suas garras. E foi então que uma salva de palmas recheou o auditório luxuoso, junto do abaixar das luzes. Escuro ficou por apenas alguns segundos, e Daniel sentiu a mão de Laura apertar a sua.

- Lá está.

- Sim.

- Ela está linda.

- Sim.

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Aquele fora o maior misto de prazer e desprazer já feito na mente de Daniel. Que explodiu por dentro ao mesmo tempo em que se retraía para seu excluso mundo. Ana estava lá, no meio do palco com um vestido preto que não combinava com sua idade, mas que mesmo assim estava lindo. A jovem prodígio de oito anos segurava, entre o queixo e o peito, um violino ornamentado e envernizado. Ela sorriu para a platéia, e após um leve aceno para Daniel e Laura, começou a tocar.

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A filha de Daniel surgiu em todo mundo como sendo o novo nome da música clássica. A menina simplesmente tinha o dom para as cordas e o usava ao seu bel prazer. A música soou por todo o lugar e encheu os ouvidos de Daniel com sua melodia. E assim, seu olhos encheram de lágrimas. Sua filha, com os cachos da mãe e os cabelos castanhos do pai, havia se tornado seu maior orgulho e a melodia do violino era o que transmitia aquilo. Aquele misto de Raiva e Amor. De Ódio e Paixão. De Morte e Vida.

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Daniel gritou, gritou e gritou. Clamava para fazer parar aquela cena, aquela era era sua pior cena. Abraçou sua crise de pânico e usou dela como um viciado usa de craque. Para se destruir com prazer. Ele balbuciou e vociferou alternadamente, xingando a si próprio, xingando a filha e a todo resto enquanto via a belíssima melodia. Mas como sempre, os minutos eram cruéis nas horas mais oportunas. E aquela, no ponto de vista de Daniel, foi a visão mais demorada de todas.

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- NÃO! NÃO PODE SER!

Ele gritou, enquanto esmurrava o vidro negro que nada refletia a sua frente. Fluido escorria de seu nariz, ele babava e chorava ao mesmo tempo também. Pânico e horror se juntaram enquanto ele tentava destruir aquele instrumento do diabo. Ficou minutos espancando o espelho, sem sucesso, até finalmente, com o punho em carne viva e sangrando, parar e respirar fundo.

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- Não... Não... Não.... - Repetiu para si, enquanto lembrava-se da cena do espelho anterior. Ele tinha vistos cenas de si próprio. E se morresse? E se não estivesse presente quando sua filha precisasse dele, igual acontecera com Marco? E se o próximo espelho que abrisse fosse o seu fim? Ele não conseguiria salvar Ana.

Desejou viver. Desejou com todas as suas forças viver.

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Levantou-se e correu até o último par de portas. Segurou as duas últimas chaves de pedra vermelha e puxou-as em direções opostas, arrebentando o molho de chaves. Cobriu a fechadura das duas últimas portas e abriu-as, juntas. Não aguentaria ver uma por uma. Elas se alongaram para dentro, fazendo um forte baque ao se chocarem com a parede de trás. Ali, haviam dois espelhos o refletindo. Daniel olhou sua imagem por apenas um segundo, ela estava desfigurada, como imaginava. No instante seguinte, a imagem refletida dos espelhos mudaram.

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Voltava para casa, como sempre fizera nos últimos três anos, pela avenida central da cidade. Daniel se lembrava daquela cena. Se lembrava com perfeição da memória que lhe era fresca na mente, embora não lembrasse como acabava.

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Aquele dia em especial, não havia engarrafamento. Ou melhor, já havia tido, mas Daniel ficara até tarde no trabalho, prestando hora extra. E agora quando voltava encontrara um transito livre. De modo que ele podia acelerar enquanto ouvia a boa música que o rádio tocava. No banco de trás, presentes para as crianças. Ele sempre trazia algo quando vinha tarde para casa. Como uma forma de compensá-los pela preocupação.

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Virou-se para ver se estavam todos bem. E no instante em que voltou o olhar para frente, míseros segundos, deu de cara com uma caminhonete a engolir seu carro. O monstruoso veículo engoliu se carro e ao amassou até se tornar irreconhecível com apenas uma única batida que fez ele capotar. ㅤㅤDaniel pôde sentir todas as dores daquele dia. Pode notar como o para-choque da caminhonete afundou sobre seu ombro após romper a porta sem dificuldade alguma. E notou quando, ainda dentro do carro, sentiu-se vivo o bastante para sofrer com barras de ferro atravessadas em seu corpo. Era claro. O Corredor maldito preparara tudo com a atenção devida. Eu morro aqui. E não verei o conserto da minha filha. Eu morro aqui e não a salvarei do que quer que ocorra. Eu morro aqui.

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Repetiu-se para si mesmo enquanto os minutos cruéis se passavam aumentando sua dor e reduzindo seu brilho.

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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~

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Sua sala de estar nunca pareceu mais assombrosa que aquela que ele via. Daniel já tinha perdido completamente a esperança perante o que iria ver, mas mesmo assim, não deixava de tentar contrariar o destino. Gritava, Clamava, Implorava, Ameaçava, Xingava e Açoitava com as palavras enquanto era obrigado a ver a cena mais marcante de sua vida – se bem que, ele já estava morto.

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Não havia nenhuma luz ligada no cômodo, mas a luz dos postas da rua entravam pela janela após trespassarem a cortina fina e avermelhada, dando um tom ainda mais sombrio para o lugar. Mesmo não tentando prestar atenção, era impossível deixar de notar. Ele já via uma parte do horror que provavelmente estava para acontecer: Demoraria poucos segundos para uma pessoa notar que houve um grande tumultuo ali.

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O sofá estava fora do lugar normal, lampadas estavam tombadas assim como diversos móveis do lugar. Todo o armário de louças estava caído, espalhando cacos de vidro e cerâmica para toda a sala. Daniel sentiu um aperto maior ainda quando, de súbito, a imagem começou a caminhar pela sala. Como se ele pudesse sentir suas pernas tocando o chão, mas sem que tivesse controle algum sobre elas.

Agora também acostumado com a falta de iluminação podia ver melhor. Piscou os olhos, como que para ver se ajudasse, e viu com o canto do olho um vulto tombado no chão. Não! Espere! Uma intensa vontade de voltar e olhar o que era aquilo lhe veio a mente. Mas a imagem não voltou. Sua angústia aumentou enquanto ele tremia torcendo para – mesmo que sem utilidade alguma – não ver sua filha.

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Virou-se para a escada e ali, mais o horror acentuou-se, evidenciando-se pela trilha de sangue que percorria cada um dos degraus e ia para sala. Foi então que voltou o olhar para a sala e mostrou o vulto caído no chão. A silhueta era clara: Havia um corpo jorrando de sangue capotado perto à parede.

Era muito pequeno para ser um homem, e – felizmente – muito grande para ser o de uma menina. Ia tomar um ar de suspiro quando o vento entrou pela janela aberta e balançou os cabelos do morto. Cachos. Cachos arredondados e perfeitos. Era Laura. E, mesmo que ela o tivesse traído, ele sentiu-se mal por ver a cena. Ainda a amava.

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A visão do espelho pareceu se dar conta dos sentimentos de Daniel e abruptamente virou-se para a escada, começando a subi-la em passos acelerados. Acelerados, assim como ficou o coração de Daniel, que parecia saltar pela boca. Queria refrear seus pés, mas eles simplesmente não o obedeciam. Queria, pela centésima vez, fechar os olhos, mas eles nem piscavam mais. Desejava apenas sair dali, quando finalmente sua visão virou-se para uma porta rosa.

Ana. Sussurrou ele enquanto o pânico abraçava toda sua existência.

Uma mão foi a fechadura e abriu-a sem fazer barulho algum. Ali dentro, o silêncio parecia reinar, assim como todo o ar de um quarto de menina. Não havia barulho algum e Ana dormia, tranquila, na cama. Milagrosamente, toda a confusão no andar de baixo não acarretou no distúrbio de seu sono, que continuava pesado como Daniel lembrava-se. Aproximou-se da filha e, por um momento, apreciou vê-la. Pois ver a filha era sempre uma benção. Apenas por um momento.

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Mãos surgiram, e Daniel podia sentir o que elas sentiam. Elas foram sem dó contra a garota. E só então percebeu: Aquelas não eram suas mãos. Grandes demais para serem elas. A imagem que via não era a de Daniel. Ele estava vendo o que o carrasco de sua filha via.

Segurou os dois braços da garota, aproveitando que dormia tranquilamente. Forçou-os para cima e ali, amarrou rapidamente com uma corda, que parecia estar pendurada em seu pescoço, especialmente para aquela ocasião. Quando Ana despertou, ela já estava com as mãos presas na quina da cama, com o gigantesco homem a observando por cima.

- O... o que é isso!? Quem é você!? - E forçou os braços. - Me tire daqui! Socorro! Socorro!

A angústia de Daniel aumentou ao ouvir a filha clamando por ajuda. Aquela voz ainda fina e suave de uma garota que nem na adolescência havia ainda entrado. Ela debatia-se com todas as suas forças, chacoalhando as pernas e movendo o corpo na direção contrária dos braços enquanto gritava pela mãe ou pelo irmão. Mas ninguém além da pobre mente de Daniel respondia aos seus pedidos.

O maníaco passou em frente ao espelho do quarto da menina e Daniel teve um vislumbre da pessoa. Um monstro contido num corpo comum. O homem tinha mais de quarenta anos e pele escura, não era grande ou musculoso, só tinha mãos grandes e uma mentalidade engenhosamente maléfica. Ele foi até a escrivaninha da garota e sentou-se sobre a cadeira, para observá-la se debater.

- Socorro! Mamãe! Marco! Socorro!

Filha! Por favor! Não faça nada com ela! Por favor! Implorava Daniel. Mas o homem simplesmente desviou o olhar, vendo o quão organizado era a mesa onde a filha de Daniel fazia suas lições. Passou sua mão sobre os materiais dela, como se tivesse a escolher qual lhe fosse melhor. Até que arrancou um item do estojo rosa e levantou-se, voltando na direção da garota. Inútil, Daniel agonizava com seus olhos ardendo de desespero e loucura: O homem carregava consigo uma pequena tesoura sem ponta.

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- O que você... Não! Não! Pare! Socorro!

Monstro! Suma daqui ou juro que vou persegui-lo e destrui-lo! Pare! Pare com isso! Pare agora! Entretanto ele não era ouvido e o maníaco sentou-se sobre a cama, com uma perna sobre cada lado da garota, ele arfava de prazer pelo seu ato e parecia não ter sequer uma hesitação em cada movimento seu. Enfiou as mãos sobre a abertura entre os botões que fechavam o pijama de Ana e deu um forte puxão arrebentando e abrindo o homem para o peito da garotinha que soltava gritos agudos entrecortados entre um choro altíssimo. O homem esboçou um sorriso e estapeou a garota, tirando dela um gemido.

- Grite mais. Grite o quanto puder! GRITE PARA TODOS OUVIREM!

NÃO! POR FAVOR! PAREM-NO! PAREM-NO!

E dizendo isso, o homem forçou a parte laminada da tesoura sobre a barriga da menina e puxou para a esquerda, abrindo um rasgo sobre a pele dela. A menina contraiu o abdômen, o que fez a dor aumentar enquanto o sangue esbanjava-se aos montes. Daniel rompera a barreira da sanidade e agora gritava, chorava e ria ao mesmo tempo enquanto sentia tudo que as mãos do homem sentia, como se fossem suas próprias mãos. Como se ele estivesse esfolando sua filha.

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- Não! Pare! Por favor! Pare!

E sem dó, ele desenhou mais quatro cortes sobre a barriga da garota. O líquido vermelho que antes circulava pelas veias e artérias dela agora corriam, incessantes pelo decorrer da pele até o lençol. Pelo fato da garota ser pequena, o peso do homem era mais do que suficiente para deixá-la imobilizada o suficiente. Daniel não vira, mas aquele maldito tinha um sorriso amaldiçoado na face que suava aos montes diante de suas mãos trêmulas.

Depois de doze cortes, os gritos de Ana ficavam cada vez mais fracos. Como se ela notasse que não importava o quanto gritasse, ninguém viria salvá-la. O homem parou por alguns segundos e depois soltou um rugido, seguido de um tapa na face dela.

- PORQUE PAROU!? Grite! Implore por sua mísera vida!

E assim, passou a lâmina da tesoura infantil sobre o seio da garota. O fascínio pela desgraça era óbvio quando ele riu junto do horror que a garota expressou no mais alto grito. Quebrou a tesoura em duas, e usando as duas lâminas fraquíssimas começou a criar dezenas de cortes pelo decorrer dos braços dela fazendo questão de exigir gritos com cada um deles. Ao chegar perto dos ombros, ele novamente parou, tentando regular sua descontrolada respiração.

- Não... Isto ainda não é seu sofrimento.

- Por favor... Eu.... - Ela dizia com os olhos vermelhos de tanto choro.

Não pôde terminar a fala. O maníaco largou uma lâmina sobre a cama e segurou o queixo dela, enquanto sua outra mão aproximou a outra parte da tesoura sobre a boca. Uma nova gargalhada omitiu completamente os gritos de terror de Ana quando ele passou a lâmina sobre a divisão dos lábios dela. Ela voltou a debater-se com tudo.

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Já chega... Por favor... Daniel quase não conseguiu falar. Mate-a. Não. Pare de dar este sofrimento a ela. Não.. Mate-a. Por favor. Mate-a. E, como se estivesse respondendo as perguntas de Daniel, o maníaco falou.

- Quero que guarde muito desse terrror. - O tom de escárnio era supremo na voz dele. - Temos toda esta madrugada de diversão.

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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~

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Piscou. E respirou fundo. Porque ele ainda tinha pulso? Porque ele ainda respirava? Todas as coisas que tinha de importante em sua vida lhe foram tiradas. Não havia mais porque viver. Daniel estava agora, sem alma.

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Deu as costas aos dois espelhos que agora estavam negros e avançou para a porta Treze. Arrastou do chão a chave com o cristal negro ornamentada nela e abriu a porta. A porta foi destrancada. Ela se alongou para dentro sem fazer ruído algum. Ali, não havia nada além da escuridão. Daniel avançou sobre ela. Abraçou-a como se fosse um filho. A morte o aguardava.

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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~

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Piscou os olhos uma única vez. Estava na cama de um hospital, podia definir pela predominância de itens brancos a sua volta e pelo fato de estar deitado numa perfeita cama inclinada. Tentou olhar em volta. Mas nada aconteceu. Seu olho não se moveu, assim como não mais piscou. Com medo, tentou levantar-se para chamar uma enfermeira. Saber que tudo aquilo fora só um sonho. Mas ele não se moveu. Seu corpo não o comandava. Exatamente como antes. E, mal havia recuperado suas forças, sentiu que o seu maior terror não era a morte, ele até a desejava depois de ver tantas cenas. A décima terceira porta lhe mostrava a realidade.


Como ele passaria o resto de sua vida. Uma alma viva preso dentro de um corpo que não o responde. Estado Vegetativo.

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- ... - Observou a prancheta presa ao lado de sua cama. E novamente algo lhe indicou a verdade. Ele era o paciente do quarto Treze da ala Treze. Treze minutos fora o tempo de cada uma de suas cruéis visões. Treze seria o número de vezes que sua mulher, sádica e pervertida, faria amor com seus amantes em frente ao marido vegetativo. Treze fora o número de coisas que Thomas mais odiava por Daniel ter lhe tomado. Treze foram as vezes que sua mãe tentara abortá-lo antes mesmo de nascer. Treze seria o número de vezes que seu filho, Marco, iria ser vítima de mal-tratos ao extremo no colégio e na faculdade, causando seu suicídio. Treze horas seria o tempo que Ana sofrera nas mãos do maníaco. Sabia de tudo aquilo. E sabia que viveria para presenciar tudo aquilo, que a morte não o libertara. E por fim, é mais que óbvio, Treze é o número de anos que ele viveria naquela prisão angustiante.

E, mais que óbvio, aquilo que falava com Daniel, aquele ALGO, era nada mais que o Treze. Assim como o dia de seu fatídico acidente, Sexta Feira 13, um maldito dia para sua alma ser destinada a morte.

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