segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Destino Desatino


I – Cinzas do Passado

ㅤㅤ Depois de tanto desejar se ocultar na escuridão, lá estava Januário – de boca seca e olhos vidrados no nada – desejando, agonizante, por um feixe de luz. Mais a frente, na mesa suja e cheia de garrafas de pinga vazias, jazia ela.


II – Tentativas do Presente

ㅤㅤ Querida Mariana,


ㅤㅤ (Largou a caneta, respirou fundo. Havia pouca tinta e tinha certeza – ou queria ter a certeza – de que ela não terminaria aquele escrito. As folhas, amareladas, eram as últimas da gaveta. E, bem no fundo, Januário sentiu que não haveria mais cartas. Alcançou novamente o objeto e pôs-se a escrever.)


ㅤㅤ Esta será, provavelmente, a minha última chance de atar os nós que, há muito tempo, eu deixara soltos. Agora que já não reflito, reviso e reescrevo meus escritos; tenho a total certeza que tudo o que está escrito aqui sou simplesmente eu. Não minha máscara porca e imunda, não minha técnica na escrita; será simplesmente eu, Januário Lopes.

ㅤㅤ Para que possa entender com exatidão toda a complexidade das minhas palavras, Mari – se é que posso ainda chamá-la assim –, devo começar onde todos os romancistas tradicionais geralmente começam: Pelo início.
ㅤㅤ Será que você, por ventura, é capaz de se lembrar de como nos conhecemos? Da maneira com a qual, naquele bar de Jazz da zona norte, nós nos cumprimentamos e trocamos aqueles olhares tão íntimos, apresentados um ao outro pelo camarada Batista? Pois, se sim, eu posso dizer que estas memórias que carrega consigo, eu também levo dentro do que resta da minha alma. Aquela era uma época em que eu realmente era feliz. O Batista, hoje me pergunto se foi realmente uma benção na minha vida, estava arrumando tudo para mim com todas as editoras onde tinha contatos. O nome “Olive Golden” começava a aparecer cada vez mais nos cadernos B dos grandes jornais do país, meu pseudônimo virou uma febre entre os adolescentes que – tão crentes de lerem um célebre e jovem escritor norte-americano, que só fora descoberto no Brasil – faziam a questão de espalharem a minha literatura comercial de todas as formas possíveis.
ㅤㅤ E, depois de três livros entre os mais vendidos dos escritores nacionais da atualidade, você me surgiu. Uma luz na minha vida, que servia um café adocicado nas minhas madrugadas insólitas e me dava sorrisos em momentos que eu nunca cogitaria ter dado um. Casamo-nos um ano e meio depois de termos total certeza que fomos feitos um para o outro; e, três anos depois, tínhamos uma casa longe da correria da grande São Paulo, o carro do ano e uma poupança de dar inveja em muitos. Mesmo eu podendo bancar tudo, Mari, você ainda queria trabalhar. Seu ofício como bancária sempre fora um fardo para você, eu bem sei. Mas hoje eu agradeço por você não o ter parado por nada. Ao menos assim eu retirei um dos pesos dos meus ombros, em saber que, ao nos separarmos, você viveria bem.



ㅤㅤ Mais um ano destes segundos tão valiosos se sucedeu, meus livros já tinham perdido aquela fama – como toda boa febre adolescente –, mas mesmo assim vivíamos bem e ríamos. Eu me lembro bem daquela noite, minha querida, aquela na qual saí com Batista para uma prosa descontraída e algumas latinhas de cerveja. Cheguei em casa tarde, mais de onze da noite, tenho certeza, mas você me esperava na sala. Os cachos castanhos levemente caídos para a direita e os olhos selados num leve sono. Fechei a porta com cuidado para não acordá-la, sem sucesso algum. Você abriu os olhos e, quando eu pensava vir uma reprovação pela minha tentativa de vida boêmia, sorriu para mim de um jeito inesperado.
ㅤㅤ Não preciso dizer o quão desconsertado fiquei, preciso? Levantou-se do sofá com uma leveza com a qual nunca vira se mover, e, com um derradeiro amor, você me teve nos braços. “O que foi, Mari?” perguntei, provavelmente sentiu o hálito forte que tinha. Demorou-se a me responder, apenas aconchegando seu corpo tão pequeno ao meu. Num misto de serenidade e alegria, “Estou grávida”, você me disse. A notícia no início me veio como um tapa, pegou-me desprevenido. Mas, como todo tapa de um casal no auge de seu amor, o tapa veio seguido se um aconchego, de uma reconciliação e de uma confirmação: De que você viera para ficar para sempre na minha vida. Ah, Mari, como eu gostaria de novamente beijá-la como a beijei naquele momento. Com tanta emoção no peito.



ㅤㅤ (Deixou a cabeça cair sobre os braços, e, com toda a saudade do mundo, Januário se deixou chorar lágrimas de redenção. Mariana, como queria ter continuado a ficar com ela. O desalento aumentou e o escritor falido pouco notou das lágrimas que borraram o papel.
ㅤㅤ Conteve o grosso das gotas do passado e agruras do futuro e levantou a face. Precisava terminar o que se comprometera a começar mais uma vez.)



ㅤㅤ Meses se passaram rápido, eu vivia agora numa alternância entre cuidar de vocês duas e cuidar de mim mesmo, de meus escritos. Passávamos por uma fase um tanto difícil, economicamente falando, os contratos com algumas editoras se encerrara e elas não quiseram renová-los. Também as idéias pareciam não fluir tão bem como antes. Mas eu pouco percebia daquilo tudo. Para mim, só bastava amá-la. Mimá-la. Ríamos sem motivo e passamos muitas noites em claro, apenas deitados abraçados e conversando sobre nossa querida Amanda. Era um hábito que tínhamos ganho havia pouco tempo, uma vez que eu já não passava noites em claro na frente de um teclado.
ㅤㅤ Nos mudamos para um apartamento, vendemos nossa casa para podermos ter uma nova que se adaptasse para nossa filha. Na realidade, nós dois sabíamos que nos desfizéramos da casa para que pudéssemos devidamente comprar tudo o que fosse necessário para nossa pequena; Amanda seria filha de pais felizes e atenciosos.
ㅤㅤ E, foi só então que ela nasceu. De parto natural, numa madrugada de segunda, ela nasceu.



ㅤㅤ (Levantou-se um pouco e caminhou com passos pesados pela pequena sala. Por um momento, ele deu graças por toda a bebida alcoólica ter acabado. No momento seguinte, sentiu-se desgraçado em confessar para si mesmo que queria ter ao menos mais um copo de vodka.
ㅤㅤ Coçou a barba mal cuidada e sentou-se na cadeira novamente.)


ㅤㅤ Aquela foi a segunda época de ouro de nossa vida, não foi, Mari? Cada segundo após o nascimento de Amanda foi pensando apenas nela. As roupas, os móveis, o carinho, o amor. Ficávamos quase o dia todo juntos, tanto, que mal notara que já não escrevia nada que prestasse havia vários meses. As contas que se atrasavam, eu pensava na época, podiam ser resolvidas depois. Eu mal me lembrava que já não tinha mais contratos e que a comissão pelas vendas de meus livros já eram uma mixaria.
ㅤㅤ O pior, é que senti tudo isso da pior maneira, tudo de uma vez. Estávamos caminhando no parque, nossa Amanda tinha quase dois anos e agora dava seus primeiros passos livres, saltante e dançante. Nós caminhávamos todos os dias, era uma atividade tranquila e revigorante – além de não tão caro. A pequena correu um tanto para longe de nós, saindo de nossa vista momentaneamente, seu aviso de desaprovação de nada serviu. Quando corremos para acompanhá-la, lá estava ela. Amanda estava parada na frente de uma pequena loja no meio do parque, uma loja que vendia souvenirs e pequenos itens. Os olhos da pequena estavam presos num ursinho de pelúcia, olhos de quem se apaixona.
ㅤㅤ Alcançamos nossa filha e ela se virou para nós com uma calma espetacular, um segundo depois, apontou para o ursinho e tentou, naquelas palavras tão doces e carinhosas, dizer para nós que o desejava. Movido pelo puro impulso de alegrar minha garota, entrei na loja e apontei o item. A funcionária fora rápida em alcançá-la e logo estava pagando por ele no caixa.
ㅤㅤMari, como eu desejava que aquilo não tivesse acontecido. O cartão de crédito não foi aceito com um “limite estourado” piscando na tela do aparelho. Quando virei-me para fora da loja, lá estava ela, no meio de suas pernas, toda esperançosa. Eu nunca pude me esquecer do seu olhar de tristeza quando disse que não podíamos levá-lo naquele momento. Prometi a mim mesmo que viria outro dia só para pegá-lo para Amanda.
ㅤㅤ Todavia, querida, este dia não chegou.
ㅤㅤ Quando chegamos em casa, depois do passeio, descobrimos que a luz fora cortada pela falta de pagamento. O terceiro aviso de pagamento do aluguel do apartamento estava caída na entrada, e a montanha de contas nos recepcionou, com a caridosidade do vento da janela que deixamos aberta, jogada por toda a sala.



ㅤㅤ (Deixou seus olhos passearem pela sala, aquele pequeno quarto em que morava agora não era nada, comparado ao apartamento em que vivera com Mariana. Comparado à casa em que moravam, ainda antes. Olhou para a caneta, ainda havia bastante tinta. Teria de terminar.)


ㅤㅤ Por cerca de um mês inteiro, eu tentei voltar a escrever. Voltar a fazer dinheiro com a minha literatura, para que não pagássemos todas as contas com o seu puro esforço no banco. Fora um mês inteiro de frustração, e, quando eu notei que nada iria sair, vi-me com Batista novamente. O velho amigo, que agora raramente víamos, chamou-me para sair, para relaxar um pouco, por conta dele.
ㅤㅤ Carente de consolo, aceitei o convite de minha danação. Naquela noite, bebi tanto que Batista sentira-se culpado em chamar-me para sair. Minha cabeça girou, pensando em tudo que eu tentava não pensar, pensando em tudo que eu tentava pensar em, pensando em tudo. E, cambaleante, Batista me deixou há uma quadra de casa.
ㅤㅤ Foi exatamente ali que encontrei-o. Quando tentava discernir qual era a chave que abria a porta de entrada do bloco, deixei minha percepção porca notá-lo, um metros atrás de mim. O homem de pele branca e roupas desgastadas me observava com uma calma aterradora. Seu olhar tão cheio de nada me fez levemente estremecer, assim como toda a aura de terror que ele parecia emanar. Nervoso, esbravejei qualquer coisa.
ㅤㅤ "Vim porque nós podemos fazer bons momentos juntos”, ele respondeu. “Porque eu sei algo que aliviaria sua tensão”, ele respondeu. Naquele primeiro encontro, deixei-o falando sozinho e entrei em casa. Acabei discutindo com você, e tenho a leve impressão que Amanda vira tudo, do pequeno vão aberto na entrada de seu quarto. Dormi caído no sofá da sala.

ㅤㅤ Depois daquele dia, resolvera sair para beber sempre que me sobrava dinheiro. O pouco dinheiro que eu recebia de comissão por livros vendidos rendia-me a saída alternativa para os problemas em goladas doloridas e boas. E era sempre nesses momentos que ele aparecia, aquele homem pálido. “Me chamo Macedo”, disse um dia, “Sou um homem de mau com a vida, assim como você”. E, aos poucos, eu acabava dando corda para conversas com ele.
ㅤㅤ Pelo que me dizia, ele também já tivera muito e agora nada tinha. E insistia que agora era um homem feliz, por ter conseguido sua “válvula de escape”, como ele mesmo disse. Eu sei, Mariana, que nunca me ouviu falar nada de Macedo, mas eu realmente não sabia o que falar. Ele era diferente, os olhos dele eram hipnotizadores, incitavam-me para cair em sua ladainha.
ㅤㅤ Nossas conversas, querida, já eram sempre piores, sempre discussão, sempre brigas, e o choro alto de Amanda mostrava que ela sabia bem do horror em que estávamos entrando. E a dor de culpa por estar sendo um péssimo pai fazia-me sair de casa para esquecer dos problemas. E lá, sempre estava Macedo. Fui cedendo a suas persuasivas, a cada golada aquilo se tornava mais agradável, se tornava mais excitante. E foi numa noite de sexta feira que decidi aceitar o convite dele. Naquela noite, Macedo fez-me tomar uma garrafa a mais de pinga, que me fizera perder por completo a noção de espaço e tempo.



ㅤㅤ (Quando relembrara daquelas cenas, um calafrio cruel e cheio de espinhos lhe subiu o corpo.)


ㅤㅤ Quando o peso da sobriedade caíra sobre meus ombros, eu já tinha o feito. E, ao contrário do que imaginava – no antro de minha sensatez abalada –, não me sentira mal. Voltei para casa quase ao amanhecer, com um sorriso na face. Beijei você, Mari, contra a sua vontade e fedendo a álcool. Eu tirara toda a tensão de mim, e é difícil explicar o porque. Talvez, por eu ter feito algo tão pior do que simplesmente ser um mau marido e mau pai, eu agora me sentia disposto a encarar minha vida.
ㅤㅤ Naquele dia, quando acordei, barbeei-me como a muito tempo não fazia. Limpei a língua das camadas de álcool impregnadas nela e abracei-a com amor. “Que passarinho verde você viu?”, você me disse, ainda surpresa pelo bom humor que eu tinha. Ainda naquele dia, sentei-me na frente de minha escrivaninha e produzi como há muito tempo não fazia. Talvez meus atos me dessem idéias, talvez o fato de ter extravasado minhas angústias tivesse me dado a calma para produzir minha inspiração novamente. Tinha todo um romance pela frente. E, para todo ele, eu decidira fazer do uso de Macedo.
ㅤㅤ Assim que a irresponsabilidade debruçava-se sobre minha alma e eu sentia-me novamente um completo nada, ia ter com Macedo. Sempre o encontrava por lá, perto do boteco, com uma nova roupa velha e seu olhar penetrante. Todo aquele jeito nefasto e cativante, e a ilusão que ele fazia na mescla daquela dança de palavras com a dança das bebidas, me faziam a cabeça novamento. Novamente, via-me entretido com as maiores atrocidades que pensava nunca cometer, desgastando todo o meu prazer anormal e toda minha tensão em quem mal merecia. Macedo sempre estava por perto, sempre cuidava para que nada me interrompesse. Também, era ele quem limpava tudo e não deixava rastros para ninguém. Fazia tudo com uma perfeição milimétrica.
ㅤㅤ Mas, mesmo assim, eu sentia que ele próprio não estava satisfeito por completo. Seu olhar macabro parecia pedir por mais, sua pele branca contorcia-se num sorriso mal cuidado sempre que chegava no ápice de meu ato, mas não era um sorriso verdadeiro. Eu sabia que Macedo algum dia iria mandar-me fazer algo inusitado, iria convencer-me a fazer algo inusitado. E, com todos aqueles planos arquitetados, eu bem sabia que Macedo seria capaz de muito para atingir seus desejos.
ㅤㅤ Mas eu não ligava.
ㅤㅤ Mari, você se acostumou, lembra? Eu quase sempre estava feliz, e algumas editoras menores começaram a aceitar meus trabalhos. Meu pseudônimo americano foi deixado de lado e iniciava-me com meu próprio nome, Januário Lopes. Dois livros de contos e um romance já publicados e um bom dinheiro entrando. Parecia que estávamos reconstruindo nossa vida do zero.
ㅤㅤ E só naquele ponto eu notara o quanto Amanda pareceu diminuir no meu conceito. Não que eu não a amasse, claro que amava, era minha querida e amada filha. Mas, não sei porque, os momentos que passávamos com ela já não eram tão agradáveis e rápidos. Suas falas bonitinhas não me cativavam como antes. Naquela época, ela já tinha seis anos e ia para o colégio infantil.


ㅤㅤ Foi quando coloquei um “Fim”, num novo romance, que Macedo fizera o impensável. Os minutos que se sucediam aos meus escritos eram sempre os piores, os mais terríveis e carrascos. Para não cair na armadilha de ter de procurar Macedo, eu geralmente procurava dormir depois que digitava meus textos. Mas, naquele dia, a campainha tocou.
ㅤㅤ Era no meio da tarde, nossa pequena estava no colégio e você, Mari, estava trabalhando. Macedo entrou para dentro da casa logo que abri a porta. Era a primeira vez que ele estava ali, e por instinto, fechei a passagem. Ele não era digno de estar na minha casa. Na verdade, eu também não era, mas isso eu sempre ignorava. Contudo, mal pude pará-lo. Ele me segurou pelos braços e vi no seu rosto uma expressão alegre e diferente. “É hoje, Januário”, ele me disse com entusiasmo.
ㅤㅤ "Faremos mais uma vez, já preparei tudo para você. Vamos para o bar, nos distrair até dar o horário”, ele disse, “dessa vez é incrível, você vai amar de verdade. Vamos, Januário”. E, quase por pura pressão dele, saí de casa e entreguei-me aos tragos novamente. Duas horas depois estava bêbado e insensato de todos os meus atos, movendo-me puramente pela minha ânsia de ser ainda pior do que sempre era. O local que ele escolhera fora realmente incrível, um casebre de madeira discreto e um tanto isolado. Foi ali que aconteceu. Fiz novamente.



III – Agruras do Futuro


ㅤㅤ Depois de tanto desejar se ocultar na escuridão, lá estava Januário – de boca seca e olhos vidrados no nada – desejando, agonizante, por um feixe de luz. Mais a frente, na mesa suja e cheia de garrafas de pinga vazias, jazia ela. Amanda estava morta, as pernas abertas e o sêmen do próprio pai saindo de suas partes íntimas nunca antes violadas. O novo pseudônimo, Pedófilo Maníaco – que a mídia dera a ele desde seu segundo assassinato daquela forma –, nunca fora tão pesado. A marca de seus dedos envoltos na garganta de sua tão amada filhinha fizeram doer seu peito.
ㅤㅤ Agora não sentia-se aliviado. Não poderia mais viver sua vida miserável, não era o consolo de poder ser pior que o faria viver bem. Ele já era o pior, tanto para ele, quanto para sua família. A sobriedade, daquela vez, fora cruel ao extremo com o pobre Januário. Dera a ele a visão de sua filha, mostrara como ela debatia-se com um horror na face, horror provocado pelo próprio pai, bem na frente de seus olhos.


IV – Torturas do Sempre


ㅤㅤ ...foi por isso, Mariana, que eu nunca fui o mesmo depois que a encontraram naquele casebre. Eu já não tinha forças para continuar, a minha alma foi roubada, e apenas um resquício de culpa incrustado numa pequena faceta dela fora deixada para trás. Sou eu, Mariana, o assassino de nossa querida filha.
ㅤㅤ Nunca te dei o devido consolo, nunca apartei suas noites chorando na sala, nunca abracei-a quando, simplesmente do nada, você se ajoelhava e começava a chamar pela nossa filha. Mas, como eu podia? Seria hipocrisia minha, seria não ser quem sou. O vício pelo álcool aumentou dentro de mim, e, mais do que nunca, aquela parecia ser a saída mais fácil, mais simples.

ㅤㅤ Fiquei realmente feliz quando pediu o divórcio e saiu de casa. Fiquei feliz por você, por saber que estava tentando reconstruir sua vida de alguma forma. E, agora, é quase uma tortura para mim tentar te trazer de volta um sofrimento tão maior. Esse foi um dos motivos, Mari, por eu nunca ter conseguido enviar uma de minhas cartas para você. Todas minhas tentativas terminaram em chamas e, por conseguinte, cinzas. Já foram tantas que me perco na poeira do meu lixo que nunca tiro.
ㅤㅤ Já pensei em tantas formas de te contar que me dói pensar que usara de minha técnica literária para um eufemismo hipócrita. Uma música, sete poemas, incontáveis cartas anônimas; e agora eu me deparo com a primeira vez que tento escrever-lhe, sendo eu mesmo.
ㅤㅤ Mas ontem, quando fiquei sabendo que você e Marcos vão ter um novo bebê, algo em mim mudou. E, novamente, eu tento escrever para você. Esta é minha última tentativa de contar a verdade, e, caso eu realmente consiga enviar estar carta, saiba que agora que a lê, eu estarei morto. Tirarei minha vida de desgraça.

ㅤㅤ Peço sinceras desculpas por trazer à tona tanto horror. E espero que prossiga bem com sua vida. Ainda penso em você, sempre pensarei, como sendo meu eterno amor.

ㅤㅤ Ass. Januário Macedo Lopes.



V – Cartas do Nunca


ㅤㅤ Depois de tanto desejar se ocultar na escuridão, lá estava Januário – de boca seca e olhos vidrados no nada – desejando, agonizante, por um feixe de luz. Mais a frente, na mesa suja e cheia de garrafas de pinga vazias, jazia ela.
ㅤㅤ As cinzas foram levadas por um vento que entrou pela janela e a carta antes intacta desfez numa pequena nuvem cinza pelo quarto. Januário bebeu mais um gole da vodka barata, enquanto tinha os músculos dos ombros levemente massageados.
ㅤㅤ – Você fez bem, querido. - Dizia Macedo, para ele, em sua presença aparentemente espectral – Você fez bem.

ㅤㅤ Januário olhou para a gaveta e viu uma última folha de papel amarelado. Talvez, houvesse uma nova última tentativa em breve. Caso ainda houvesse tinta na caneta.

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