quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Olhos Vermelhos - Capítulo 6



ㅤㅤ VI
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ㅤㅤ Melissa e Hiroshi se sentaram no degrau que separava o corredor do grande playground do clube Okinawa, onde o grupo de taiko Eisá tocava. Tarde tranquila de domingo. As batidas soavam altas dos tambores okinawanos dos dançarinos jovens e vigorosos. O grupo Kariyushi – cujo nome significa Felicidade, no dialeto okinawano – já estava ativo por alguns vários anos, nos quais os dois observadores também já tinham treinado e apresentado. Reconheceram entre os instrutores, vários antigos amigos, que foram devidamente cumprimentados com acenos de mão ou coisas do tipo.
ㅤㅤ Os tocadores dançavam ao som do Sanshin, delimitando tempos e ritmos com batidas vigorosas em seus tambores. Sejam eles os grandes oodaikos, ou os pequenos parankuns.
ㅤㅤ – Já ouviu falar de como o surgiu o Eisá, né, Hiro?
ㅤㅤ – Eu já li em algum lugar. E lembro de alguém ter me contado logo que entrei no grupo. Mas agora, não lembro ao certo.
ㅤㅤ Melissa desviou o olhar de uma fileira de tocadores de Oodaiko que treinavam sincronia. Tocavam kudaka bushi uma das tradicioanis, que exigia certa resistência e gritos altos e graves cortando a música.
ㅤㅤ – Dizem que o princípio do Eisá foi um grupo que dançava e tocava para dar repouso e tranquilidade aos mortos. - Ela virou-se novamente para os jovens. - Quando eles tocam, Hiro, e também quando eu tocava, eu nunca vi ou senti nada anormal aqui no clube. É como se isso acalmasse as almas. Não sei...
ㅤㅤ – Hm... - Hiroshi nunca havia pensado naquilo.
ㅤㅤ A tarde ia com rapidez, naquela calmaria de apenas observar os tocadores. Os dois haviam marcado de se encontrarem ali, para depois voltarem à estação para encarar os problemas. Melissa sentia-se segura ao lado do amigo, ele era o único que nunca caçoava de sua sensibilidade aguçada. Passaram alguns segundos mais observando o grupo, até finalmente Hiro se levantar.
ㅤㅤ – Bom, acho que precisamos ir logo, Lissa. Já vai escurecer, e, eu não gostaria de encarar a aquele breu abandonado de noite.
ㅤㅤ – Hm. Tudo bem. É só a gente se dar um tchau pro pessoal que já podemos ir.
ㅤㅤ A menina foi até os velhos amigos e companheiras para despedir-se, enquanto Hiro apenas acenava de longe. Alguns ali haviam treinado karate com ele também, culturas interligadas por uma mesma ilha. Lembrou-se mais uma vez dos ensinamentos da arte marcial. Lembrou-se do seu Sensei lhe dizendo que Karate não era um esporte, que era uma filosofia de vida. E aquilo não deixava de ser verdade. A disciplina que arte havia lhe dado, o inspirara de bom caráter e bondade. Fato que talvez explicasse sua compreensão dos problemas, tanto de Melissa, quanto de vários outros amigos. Desceram as escadas em passos lentos e saíram pelo portão automático com a mesma pouca pressa, e logo entraram na caminhonete do rapaz. O motor ligou e ele saíram. A calmaria antes da tempestade havia acabado, agora era hora de solucionar problemas com almas largadas no mundo. Ligou o som, Nada Sou Sou, outra música de Okinawa tocou, deixando o clima nipônico ainda presente no ar.
ㅤㅤ
ㅤㅤ A Estação estava exatamente do mesmo modo que antes. Hiroshi olhou para os lados, como se pudesse encontrar um fantasma saindo do local a qualquer instante. Melissa suspirou.
ㅤㅤ – Estranho...
ㅤㅤ – Que foi, Lissa?
ㅤㅤ – Geralmente, quando eu passava logo na entrada. Ele já se manifestava. Já me chamava feito louco. Mas agora... - E olhou para os lados. - Agora, não ouço. Só a estranha sensação de antes.
ㅤㅤ Hiroshi avançou um passo em direção à vidraça quebrada da entrada. Logo estava no topo, rente à porta dupla enferrujada.
ㅤㅤ – Só descobriremos entrando, né? Vamos logo acabar com isso.
ㅤㅤ Empurrou com força a porta, imaginou que estivesse trancada e tivesse de arrombar, mas para sua surpresa, estava aberta. De modo que o empurrão foi necessário apenas para que a velha porta não emperrasse. Uma pequena camada de poeira levantou-se do chão pela entrada de ar aberta, e o rapaz entrou no local, seguido de perto pela amiga. Hiroshi olhou em volta, sentindo uma estranha sensação tomar conta de seu corpo mais uma vez, assim como no dia em que o espírito o prendera no depósito debaixo do palco, só que pior.
ㅤㅤ A pequena recepção da estação ferroviária não era nada agradável. Móveis velhos mesclavam-se à alguns itens mais novos, colocados ali pela Polícia Militar que ali se instalara alguns anos antes. Uma larga porta de madeira estava do lado oposto à entrada, indicando por onde os passageiros entravam e saiam, décadas antes. Mas o que mais chamava a atenção dos dois eram os dois corredores laterais do local. Melissa, que até aquele momento não tinha sentido a presença sobrenatural no lugar, finalmente sentiu um frio percorrer sua espinha. Ele ainda estava ali, no fim das contas. Seus passos ecoaram pelo corredor estreito que levava à pequenas portas infestadas de mofo. O lugar parecia não receber iluminação devida há tempos. Sua concentração estava completamente voltada para a estranha sensação que dominava seu corpo a cada centímetro que avançava pelo corredor, era sempre assim que acontecia. Algo inexplicável para quem não tinha o dom, para quem não tinha a sensibilidade. Assemelha-se muito com as intuições e presságios, mas, impunham um tom de certeza tão grande nos dotados que não permitiam falhas.
ㅤㅤ Melissa, a mestiça nipônica, parou na frente de uma porta. Olhou-a severamente. Era dali que vinha a aura, aquela sensação de desespero misturada com raiva do espírito que se comunicara com ela. E, agora, aquele destroçado espírito parecia encontrar-se mais agressivo que o normal, algo pesado a rodeava, martelava sua consciência. Se pegou cantando aos murmúrios uma das tradicionais músicas de sua ilha.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Eu senti! Finalmente eu sentia! Acho que, depois que voltei a este mundo, aquela fora uma das únicas vezes que realmente me considerava feliz. O lacre fora quebrado, e com ele, todas minhas memórias, e grande parte da força que minha alma perdera voltava para dentro de mim. Como um turbilhão; eu me vi enfurnado em meu quarto, estudando horas e horas sobre ocultismo e outras ramificações de magia negra; eu me vi descrevendo e discutindo no grande chat Olhos Vermelhos, sobre tantas anomalias que o mundo registrava; assim como eu me vi ali, naquela cidade, procurando por Tobias. Minhas visões, que pareciam durar uma eternidade, passaram por mim revelando-me toda a intriga e mistério que circundavam minha morte naquele plano.
ㅤㅤ Mas, mesmo assim tão alterado. Eu não poderia esquecer, hah, não poderia. As duas figuras que entravam no meu local pagariam caro, elas eram atingíveis, diferente daquela outra estranha presença que habitava o local desde que eu estava mais acordado. Das duas, uma eu desconhecia, alma de caráter forte. Mas a outra, eu já havia encontrado tantas vezes, que seria impossível me esquecer. Era a silhueta negra que me ouvia, aquela que se focava em mim enquanto eu despejava minhas súplicas por ajuda, naquele últimos dias que eu estranhamente me sentia tão mais desperto. Tão mais forte. Mas ela não tinha feito nada, o que queria agora!? Não importava! Naquele momento, eu só queria me vingar. Primeiro ela. Depois, Tobias. Eles iriam conhecer toda a loucura de Macedo!

ㅤㅤ
ㅤㅤ Fez força para que a porta emperrada se movesse, seu esforço foi gratificado com um pequeno vão, o suficiente para seu corpo magro passar. A porta não mais ia, aparentemente, haviam tralhas atrás dela. A mestiça tomou fôlego, como que pudesse ajuntar coragem junto, e adentrou pela abertura estreita. Era um pequeno depósito, com as janelas do fundo bloqueadas por madeiras e papelão muito mal encaixadas, que deixavam apenas poucos fachos de luz daquele fim de tarde adentrar o lugar. Demorou alguns segundos para se acostumar com a penumbra que reinava ali, enxergava, em volta, caixas velhas de madeira com aparelhos antigos. Pôde achar ali uma máquina de datilografia, algumas pequenas caixas contendo tinta preta e seca, garrafas vazias e grandes postes de ferro acomodadas entre entulhos que mesclavam madeira, poeira e metal.
ㅤㅤ Mas nada daquilo a interessou tanto como o que palpitava dentro de seu coração. Ele batia acelerado no peito dela, sabia que o espírito estava ali, a poucos metros dela. Sabia que ele cruzava seu corpo. A alma penada não mais se comunicava, Melissa só ouvia leves gemidos aqui e acolá, e virava-se para encontrá-lo. Mas nada via, além de pequenos vultos em canto dos olhos. Mesmo sensitiva como era, de nada adiantava, caso o espírito não quisesse ser visto.
ㅤㅤ – Vim aqui para falar com você... - Disse ela, quase num sussurro.
ㅤㅤ A resposta veio agressiva, um baque forte às suas costas ressoou, e Melissa virou-se para ver que a porta havia se fechado, prendendo-a ali dentro. A montanha de coisas inúteis e velhas tinha caído sobre a porta, obstruindo a única saída do pequeno e abarrotado armazém. Ela sentiu as pernas falharem de medo, sabia que não tinha sido mera coincidência.
ㅤㅤ – Ei, o que foi? Quero saber dos seus problemas, não era isso que tinha me pedido? - E olhou para outro lado, sentindo a presença mudar de posição. - Não foi você que implorou por minha ajuda? Por que está tentando se afastar logo agora? Isso.... Você não era assim.
ㅤㅤ Uma das madeiras que bloqueava a janela quebrou-se repentinamente, como se um chute invisível o arrebentasse de fora para dentro, fazendo estilhaços voarem sobre a menina, que abaixou-se com um grito. Pôs os braços acima da cabeça, protegendo-se das farpas e pedaços maiores de madeira podre.
ㅤㅤ – Abandonado.... - Finalmente a menina escutou. - Fui abandonado!
ㅤㅤ A voz, que antes não passavam de súplicas agudas e chorosas, agora estava forte e grave. Um rangido alto fez-se atrás de Melissa, e ela olhou para encarar as barras de ferro pesadas, perigosamente cedendo a fragilidade das caixas que os sustentavam. Ela tremia de leve, sentia a fúria do espírito dentro da saleta.
ㅤㅤ – Não! Eu estou aqui! Pra te escutar! Pra tirar você daqui!
ㅤㅤ Ela sentiu o peso em sua consciência diminuir.
ㅤㅤ – Para que outro motivo viria aqui? Pense! Sou a única que te escutou... que te deu ouvidos quando todos te ignoravam. Não é assim que você deveria me tratar, droga!
ㅤㅤ Melissa disse em tom raivoso, deixando algumas lágrimas de medo escaparem de seus olhos puxados. O espírito estava cedendo, as barras de ferro atrás dela, permaneceram paradas desde que voltara a falar.
ㅤㅤ – Isso... Me entende, não é? Vamos tirar você daqui...
ㅤㅤ – Me livrar, desta prisão? - Macedo perguntou, agora num sussurro a ela. Vai mesmo me tirar daqui, não é, menina?
ㅤㅤ – Vou. Vou... Agora, vamos, me ajuda a te compreender. - Ela começava a recuperar a calma e a razão, quando lembrou-se de uma coisa importante: Onde estava Hiroshi? Ele provavelmente estaria aos berros do outro lado da porta, mas ela agora só escutava e sentia o movimento da alma penada. Aquilo sim era realmente estranho. Já ia levantar-se e perguntar do amigo para o fantasma, ver se ele havia feito algo com Hiroshi. Mas não houve tempo, um grito abafado saiu de sua boca e ela caiu para trás.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Gritos. Melissa estava em perigo, Hiroshi desejava muito ir ajudá-la. Mas seu corpo parecia não obedecer. Desde que pusera os pés dentro da estação ferroviária, parecia estar num estado de transe. Observava seu corpo agir, e queria impor suas ações, mas não eram as mesmas. Afastara-se de Melissa, tinha ido para o outro corredor, descumprindo a promessa que fizera a si próprio de proteger a amiga de infância. Venha... A voz rasgada e aguda vinha em sua cabeça, e ele não conseguia desobedecer. Seus passos ecoavam no silencioso corredor oposto ao que amiga fora.
ㅤㅤ Era a terceira porta à direita. Era nela que deveria entrar. Era para lá que seu corpo se movia. O porquê, nem ele sabia. Tocou a maçaneta da porta, girou-a e empurrou a porta. Ela deslizou sem problemas, dando espaço para uma sala iluminada pelo fraco pôr-do-sol que atravessava as janelas empoleiradas. Venha... Continuava dizendo aquela voz na sua mente, hipnotizante e persuasiva. Seus passos atravessaram a pequena distância que o separava da escrivaninha posta no canto oposto do lugar. O lugar estava limpo, como se alguém passasse por ali a pouco tempo.
ㅤㅤ Inexpressivo, observou a escrivaninha. Círculos com estranhos símbolos, códigos e diversas outras ilustrações acobertavam toda a mesa. Eram tingidas em preto e vermelho-sangue, e eram tão vívidas que pareciam ter sido feitas à poucos dias. Ao centro, uma lâmina de navalha fincada na mesa, deixando o fio da lâmina postar-se na vertical. Hiroshi tentava lutar contra seu próprio corpo, mas sua mente vacilava e ele, sem escolhas, deixava que o controlassem como quisessem. Suava frio, e as pernas relutavam em obedecer claramente, mas a mágica aura que agora o pregava àquele ato funesto era mais forte. Sua mão se projetou sobre a lâmina, e num instante, um fio de sangue formou-se do corte na palma da mão, escorrendo por toda a extensão da navalha.
ㅤㅤ Piscou. O que diabos fazia ali? Que quarto era aquele? Estava completamente desorientado, não sabia o que fizera nos últimos minutos. Olhou para a própria mão, para aquele corte dolorido aberto paralelo às riscas naturais. Fechou ela ao redor da blusa para secar e voltou-se para a saída. Estava ali para acompanhar Melissa, não devia estar sozinho naquele quarto. Correu pelo corredor, apressando-se e camando pela amiga. Mas estacou no fim do corredor, a amiga estava ali, do outro lado da sala de recepção da estação, escorada na parede, massageando uma das têmporas com a mão. O nipônico correu até ela.
ㅤㅤ – Melissa! Tudo bem? O que aconteceu? Eu... eu... Me distraí ali atrás e...
ㅤㅤ – Não, tudo bem, Hiro. Acho que o fantasma foi embora.
ㅤㅤ – Foi?
ㅤㅤ – É. Não sinto mais a presença dele. Ele tentou me matar agora pouco, mas acho que eu consegui convencer ele de que eu estava aqui pra ajudá-lo. Só não entendi porque partiu tão rápido, depois que entendeu o que eu queria.
ㅤㅤ – Te... Te matar? - E Hiro olhou para o corredor por onde ela entrava. A porta aberta estava cheia de entulho caído para fora. Voltou os olhos na garota com mais atenção, as mãos dela estavam surradas e sujas. Demorou pouco para notar que a deixou correndo perigo. Algo imperdoável para ele. Socou a parede. - Droga! Lissa, porque não me chamou!?
ㅤㅤ – Eu gritei pedindo ajuda mas...
ㅤㅤ – Eu não ouvi, porra!
ㅤㅤ – Calma, Hiro...
ㅤㅤ – Calma nada! O que diabos eu estava fazendo!? Olha, nunca mais me deixa ficar longe de você quando a gente for resolver umas coisas dessas, tá? Eu.. Sei lá, não sei o que faria se algo de ruim acontecesse com você.
ㅤㅤ A menina desviou o olhar, sem jeito.
ㅤㅤ – Tá, Hiro. Mas relaxa, não aconteceu nada.
ㅤㅤ – Sei... - E olhou novamente para o corredor. Fechou os punhos, sentia uma leve dor pelo corte na mão. E Melissa pareceu ter notado.
ㅤㅤ – O que fez na mão?
ㅤㅤ – Não sei. Acho que me cortei agora pouco, vendo as outras salas ali.
ㅤㅤ – Hiro! Tem que se cuidar você. Olha só quem saiu machucado! - Melissa riu, tentando descontrair-se um pouco com o amigo. Ele correspondeu com um sorriso e caminhou na direção da porta. Deu três passos e virou-se para ela.
ㅤㅤ – Vamos sair daqui. Já me deu nos nervos essa estação.
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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
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ㅤㅤ – Qual deles é a presa? - O Velho Tobias parecia impaciente.
ㅤㅤ – É o cara. Deve ter sido o primeiro a entrar na estação. - Disse Felipe com certeza. Ele que armara o rito de magia, e foi ele que pressentira quando o rito começou, meia hora antes. Agora, estava diretamente ligado a Hiroshi. A Presa. A Isca. Observavam os dois jovens saindo da estação, enfurnados dentro do velho carro de Tobias, parado na esquina. Felipe armou um belo sorriso na face, quase maior que o de Tobias. Agora sim, era a vez deles jogarem.

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