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sexta-feira, 24 de junho de 2011

O mundo que já acabou


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ㅤㅤ(Leia acompanhado da música.)
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ㅤㅤOlá.
ㅤㅤComo vai você?

ㅤㅤSim, eu sou a única pessoa que vive por aqui.
ㅤㅤUma moça, apenas.

ㅤㅤNão, nunca me cansei desse lugar, é lindo. Você não vê? Cada pequena lasca das madeiras dessa velha casa retratam minhas frágeis e intangíveis memórias; prestes a rachar, quebradas, estão todas prontas para ruir. E mesmo assim, da fragilidade de cada uma delas, do estalo que se faz quando eu arranco uma única partezinha dessa casa; me vem a nostalgia. E eu choro pelos tempos que já passaram.
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ㅤㅤNão, não é triste. Pelo menos, eu não sou uma pessoa que pode compreender este sentimento. Sabe, esse é um lugar onde não existe mais nada, eu... Eu não tenho por quem sentir nada. Não é preciso para mim ter tristeza, se nunca me houve nada mais. Seria... Injustiça caso isso acontecesse, não é mesmo?
ㅤㅤAli, você consegue ver aquele gramado, lá longe? Quando eu era uma criança, passavam por lá alguns pássaros, vez ou outra, e eu naquela época eu ainda tinha esperanças que alguém poderia vir me buscar. Afinal de contas, se os pássaros voam e somem por certo tempo, eu fico pensando que eles tem lugares melhores para ir, não é mesmo? E esses lugares melhores, poderiam estar lotadas de pessoas... Não, não, me desculpe. Apenas uma só estaria de muito bom tamanho. É aquela palavra, sabe? Companhia.

ㅤㅤSó que, conforme os anos foram passando e eu cresci, eu pude entender que não existia mais ninguém no mundo. Só eu. Via-me naquele espelho dentro do meu quarto, e via uma mulher onde antes havia uma menininha. Eu via meus cabelos cacheados e castanhos brincarem deslizando pelos meus ombros, e gostava de me sentir bonita. Mesmo que fosse só para mim.
ㅤㅤTambém tem aquela pequena cadeira de balanço na sacada. Consegue ver daqui? Quando eu me sentava nela e deixava meu peso balançá-la para frente e para trás, ela fazia um leve rangido. Era um rangido monótono, o tom nunca mudava e o máximo que eu conseguia fazer era deixá-lo mais alto e longo, conforme eu regulava na força. Mas eu gostava, porque era como se a cadeira me desse um Olá.
ㅤㅤEsse meu vestido também, nunca mudei nada nele. Gosto de comparar ele com minha alma, porque, quando eu me lembro de tê-lo em meu corpo pela primeira vez, eu sei bem que ele era branco. Branco e puro, assim como meu coração, cheio de sentimentos transbordando. Mas que, com o tempo, foi ficando mais amarelado. E a pouca esperança que eu tinha, se esvaiu.

ㅤㅤHm? Não, eu não estou me contradizendo.

ㅤㅤA ida da esperança é acompanhada da vinda da Satisfação. A tristeza, eu nunca senti. E a partir daquele dia, comecei a viver comigo mesmo, sendo minha própria amiga. E eu corria por estes vastos campos de grama rala, esses campos de solidão infinita, onde o crespar da terra entre meus dedos me traziam uma sensação acolhedora.
ㅤㅤE eu comecei a montar minhas próprias coisas, para brincar. Sabia que eu já consegui empilhar dez pedras daquelas ali? Sim, uma em cima da outra. Ficou intacta por uns pouquinhos segundos, mas é meu recorde. Já escalei aquele monte mais ao longe umas dez vezes, também. Eu me machucava, mas com certeza, não era nada perto das pequenas feridas que eu tenho dentro de mim.

ㅤㅤQuando você não tem por onde se orientar, eu acho que você acaba se perdendo nas suas próprias tangíveis rememorações do que já passou, e das prévias do que ainda pode vir. Eu, por exemplo, nunca parei para ver quando as flores desabrochavam, quando as folhas caíam, ou quando a neve começava a pintar a paisagem. Mas, eu sempre me peguei pensando se, num desses dias, algo diferente aconteceria. Ou tentando me recordar da última vez que os pássaros vieram me visitar. E vendo eles baterem asas para longe para numa mais voltarem, eu deixo novas lágrimas caírem. Me dá um aperto no coração, sabe? É como se a vida que eu tivesse, não valesse muita coisa sem algo mais.
ㅤㅤHm? Então, isso é tristeza?
ㅤㅤTem certeza?

ㅤㅤSe for assim, eu acho que... Bom, eu acho que, então...
ㅤㅤEu..
ㅤㅤEu...
ㅤㅤPor que?
ㅤㅤPor que, agora, as lágrimas não param de cair?
ㅤㅤPor que eu estou chorando na sua frente?

ㅤㅤ...

ㅤㅤ...

ㅤㅤ...

ㅤㅤEntão, é assim que é a sensação de ser abraçada? Sim, é bom. É caloroso, se parece com a lareira que eu acendo nas noites de frio. Como se a vida te desse um sopro de vontade. Será que eu posso ficar assim mais um tempo, abraçada com você? ...Obrigada.
É, então, se a tristeza é isso o que você diz, me parece que vivi um mundo triste. Uma vida inteira triste. Mas isso não importa, não é mesmo? Afinal de contas, você veio me buscar. Não veio? Você veio aqui por mim, não veio? Se é assim, tudo bem. Eu te dou a minha mão.

ㅤㅤNão, eu não preciso carregar nada.
ㅤㅤVamos.
Leia até o fim...

sábado, 11 de junho de 2011

A Guarda - A Casa dos Tilintares

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ㅤㅤ Ei, ei! Ei, você! É, isso mesmo, estou falando com sua pessoa. Desculpe-me por acabar me intrometendo assim numa de suas noites solitárias, mas muitas vezes já te vi por aqui, sempre a beber só e de cabeça baixa. E, justamente por meus olhos poderem acompanhar-te a silhueta, que você me chamou muito a atenção.
ㅤㅤ Abstenho de dizer meu nome por enquanto, e também não me importo caso não quiser se apresentar a mim. O importante é que um diálogo entre nós parece ter começado. E, por falar nessa troca de palavras, notou como meu linguajar é moderado e bem compassado? Em tempos medievais, existiam pessoas que andavam pelos bares da época com estórias para contar, eram estórias de todos os tipos e com todos os finais que possa imaginar. Em troca, sempre lhe ofereciam bebidas e deixavam-no narrar a vontade, suas fantásticas estórias, noite adentro.
ㅤㅤ Opa, não se acanhe, não estou aqui pedindo esmolas ou coisa do tipo. Você olha para mim e vê um esmoleiro? Espero que não. Enfim, eu sou apenas um rapaz de meia-vida que, na falta de um motivo mais feliz pelo qual viver, acabou por encontrar resquícios de alegria num ato bobo: O de contar histórias. Se me permite fazer a analogia, é isso o que você também, faz, não é? Com este líquido transparente no copo que tem em mãos...
ㅤㅤ Bom, no fim, todos buscamos nossos resquícios de alegria.
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ㅤㅤ Deixe-me sentar ao seu lado. Gostaria de ouvir uma de minhas fábulas?
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ㅤㅤ Pois bem, antes que sua imaginação voe longe e você tente fazer graça de mim; não, eu não começarei a contar estórias de reinos distantes e de príncipes, princesas e dragões. As narrativas que eu contarei nesta noite tratam daquilo que a sombra e a luz deste mundo ocultam. O outro lado da moeda. Aquilo que os homens podem ver, mas que não conseguem, de forma alguma, aceitar; e que, por isso, forçam a própria existência a esquecer o que presenciaram.
ㅤㅤ As minhas fábulas contam de pessoas como as que você encontra na rua. Como o jornaleiro da esquina, como a velhinha chata do bairro, como aquela menina promíscua que sai nas noites de sexta e só volta no fim do domingo. É, alias, muito alta a chance de você acabar identificando alguns deles após estas histórias. E note que agora não são mais estórias, com e. E sim, histórias, com aga e i. De agora em diante, pois, tratem-nas como fatos.
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ㅤㅤ E desta vez, tratarei de um fato que ocorreu aqui mesmo, nesta cidade. Já ouviu falar da Casa dos Tilintares? Para quem nunca ouviu falar, deixe-me gastar um pouco de tempo nela: A casa dos tilintares fora construída já faz quase um século, talvez até mais. Ela está situada num bairro nobre e está abandonada por mais de seis décadas. Já faz cerca de um ano que alguns corretores de imóveis e investidores pensam em por tudo abaixo e colocar ali algum novo empreendimento – e, com o correr que vai nossa política para os mais bem favorecidos, não duvido que ainda neste ano ela seja demolida.
ㅤㅤ De qualquer forma, o que nos importa não é o presente, e sim o passado recente.
ㅤㅤ A casa dos tilintares, como você bem pode deduzir, recebeu tal nome pelo fato dos sons que ela produz em certas noites. Quem passa na região de noite sabe que, se ela não quer voltar para casa com olhos arregalados e coração palpitando freneticamente, não se deve passar em frente àquela casa. Assim como a escuridão é certa em todos os cômodos do sobrado, também é certo que sons característicos de casas abandonadas ressoem, tais como rangeres de portas velhas movidas pelo vento, ou o som de insetos e ratos se rastejando pelas velharias.
ㅤㅤ Mas, não só por isso que as pessoas evitam passar por ela, também é bem característico da Casa dos Tilintares – e, convenhamos que este é um ponto que não existe em todas as casas abandonadas – soar pelos seus cômodos, o barulho de correntes pesadas se arrastando pelo lugar. Como se alguém estivesse preso numa liga de aço e tentasse desenfreadamente se soltar. Também não são poucos os que juram já ter ouvido gritos e lamentos no lugar. Só lhes é um pouco complicado especificar que tipo de lamentações e qual o timbre vocal, vez que a entonação era sempre aguda, fantasmagoricamente falando.
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ㅤㅤ E é neste cenário, meu caro ouvinte, que entra nosso Personagem.
ㅤㅤ Pois, afinal, histórias não fluem sem personagens.
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ㅤㅤ Ele estacionou seu velho opala preto na frente da casa e desceu, numa noite dessas, alguns poucos anos ou meses atrás. Ele, nosso personagem, se chamava Raul. E digo apenas seu nome, porque seu sobrenome pouco importa; mais vale é ressaltar a semântica do mesmo e a alcunha que recebera. “Raul”, aos poucos que sabem do assunto, significa “Ilustre Combatente”, e mesmo que muitas vezes os nomes das pessoas não fazem jus às suas índoles, com Raul, isso funcionava. E daí, vinha sua alcunha.
ㅤㅤ “Guerreiro” Raul.
ㅤㅤ Aquele homem de pele morena escura vestia-se com um largo sobretudo escuro de couro e usava roupas grossas e cheias de bolsos por debaixo da vestimenta de frio. Presa no ombro, estava uma bolsa de alça única de pano bege. Raul tinha feições sérias, e provavelmente passava dos trinta anos no que se tratava do quanto o tempo lhe maltratara. De porte grande e ombros largos, ele, só de vista, já fazia honrar seu nome e sua alcunha.
ㅤㅤ E naquele instante, Raul também provaria sua fama. Sua fama dentro da Ordem dos Cavaleiros do Silêncio. Pois, quando uma pessoa surgia num lugar representando a Ordem, significava que havia trabalho a ser feito. E, naquele caso, Raul sabia muito bem o que tinha de fazer: Purificar uma Casa Abandonada.
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ㅤㅤ Ao primeiro passo que dera dentro do terreno, Guerreiro já pôde sentir a aura negra que rondava a casa. Aos olhos de qualquer um, seria apenas um sobrado de dois andares e um sótão caindo aos pedaços. Mas, para os olhos de um Cavaleiro da Ordem, olhos que foram treinados para estarem em situações como aquelas, o que se via era muito pior.
ㅤㅤ Não que seus olhos observassem aquilo que outros homem não vêem. O fato era que ele aceitava e desejava ver através do manto que separava os dois lados da realidade; e, por através do manto, o que se via eram os lamentos de uma pessoa morta. A pressão da aura negra recaiu sobre os ombros de Raul como se fosse um peso descomunal, e ele sentiu o quanto aquela casa estava amaldiçoada.
ㅤㅤ - Tsc. - Reclamou. - Infelizmente, para você, eu não tenho medo de cara feia.
ㅤㅤ Sua locomoção, como imaginado, estava bem mais difícil. Uma vez que a casa parecia saber muito bem que aquele que se aproximava era um risco para a entidade. Ao mesmo tempo, o fantasma que habitava o lugar começou a brincar com seus sentidos. Logo, os lamentos começavam a ficar mais altos e vultos esbranquiçados começavam a passar pela casa.
ㅤㅤ “Volte ou morrerá.
ㅤㅤ Foi o que Raul ouviu quando parou de frente para a porta.
ㅤㅤ Paremos o tempo aqui e vamos fazer um passeio pela mente de nosso protagonista.
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ㅤㅤ Para aqueles que pensam que os heróis dos contos de fada eram guerreiros corajosos e destemidos, aqui vai um balde d'água: Não existe homem sem medo. Você sabe disso, não sabe? O caro era que Raul, por dentro, sentia muito bem o medo tentando apossar-se de seu bravo espírito; era o que acontecia quando um fantasma renegado anunciava que pretendia te matar caso continuasse o que iria fazer.
ㅤㅤ E Raul iria.
ㅤㅤ Num flash, o moreno relembrou-se de alguns vários e solitários momentos de sua infância solitária. Viu-se novamente na cama do hospital no qual fora internado, viu-se novamente enfrentando os lamentos e súplicas dos mortos que ainda não queriam partir. Fantasmas que não sabiam que um pobre garoto podia ouvi-los, e que, por isso, gritavam mais alto. Raul gritou e chorou naquela noite, como em várias outras.
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ㅤㅤ Piscou os olhos.
ㅤㅤ Não, aquilo tudo havia passado. E ele tinha de cumprir sua missão.
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ㅤㅤ O Cavaleiro da Ordem abriu a porta com certa dificuldade, e, junto da ação, já colocara a mão no bolso do sobretudo para retirar dali uma lanterna. O salão de entrada do sobrado era grande, e ainda haviam por ali alguns velhos móveis carcomidos por cupins. A poeira formara uma espessa camada sobre todo o lugar, e Raul pôde muito bem ouvir alguns rastejares fugirem com sua aproximação.
ㅤㅤ Um passo adentro. Dois passos adentro.
ㅤㅤ BAM!
ㅤㅤ A porta se fechou atrás dele com força e sem um mínimo ruído antes do baque, e aquela era a mesma porta que ele tivera de fazer força parar abrir por estar emperrada. O coração de Raul saltou dentro de seu corpo, e logo em seguida, para piorar a situação, as vozes começaram a aturdi-lo novamente, agora com mais força e intensidade, quase como um coral do terror, gritando palavras de desgosto sobre o moreno.
ㅤㅤ Mas o Guerreiro não se deixaria abalar. Firmando o olhar no local, ele começou a avançar. Para que não haja a possibilidade do fantasma se acolher à apenas um dos cômodos da casa após a purificação, Raul deveria ainda achar o local onde a energia negra se concentrava, o foco da aparição amaldiçoada do recinto.
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ㅤㅤ Aqui, eu vou parar para explicar um pouco sobre a Ordem dos Cavaleiros do Silêncio.
Se você já começou a entrar no mundo que estou mostrando para você, eu acho que já notou que nossa sociedade esconde muitas coisas misteriosas. Não falo apenas de fantasmas e espíritos renegados, estendo-me para falar que também existem muitos outros seres míticos que surgem em livros aleatórios cá e acolá.
ㅤㅤ Acontece que, para os homens que descobrem esta realidade alternativa, só existem três caminhos a serem trilhados: O primeiro é tentar ignorar o que você vê, até que haverá o momento em que sua própria mente o ludibriara para que não enlouqueça – como acontece com muitos que não conseguem parar de ver através do manto. O segundo dos caminhos é aceitar esta realidade e tentar se mesclar à ela, daí, surgem os diversos clãs de Magos que existem pelo mundo. São homens que estudam e tentam dominar a magia de trás do manto. E, por fim, existe aqueles que se opõe a estas anomalias. E aí se encontra a Ordem dos Cavaleiros do Silêncio, assim como muitas outras organizações que se movem para tentar amenizar o máximo possível a existência destes seres na sociedade.
ㅤㅤ Geralmente, os guerreiros que seguem as Ordens são pessoas que sofreram de algum trauma extremo causado pelas criaturas do outro lado do véu quando mais novas e foram acolhidas por alguém da organização. Este era o caso de Raul, que, agora, era um dos principais alicerces da Ordem dos Cavaleiros do Silêncio, que tinha membros espalhados por todo o Brasil.
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ㅤㅤ O foco da aura negra não estava no primeiro andar, e foi com grande pesar que Raul observou aquelas escadas, que pareciam mais longas quando vistas numa noite daquelas. Seus ombros largos se projetaram para frente, e ele começou a subir os degraus de dois em dois, tentando ignorar o ranger delas, que parecia aumentar conforme subia as escadas.
ㅤㅤ Guerreiro Raul já tinha os dentes quase para trincar, os gritos de terror nos seus ouvidos pareciam estourá-los; contudo, Raul avançou sem este medo, por ter a certeza no coração de que um fantasma nunca poderia afetar fisicamente um Homem. Pelo menos, era isso que Raul pensava até aquela noite.
ㅤㅤ Chegando no segundo andar, ele viu-se diante de um corredor estreito que levava para mais quatro portas, duas de cada lado. Mas, foi botando um leve sorriso no rosto de feições sérias que Raul virou-se para a esquerda. Não tinha de conferir cômodo por cômodo, a Aura Negra não mentia sua localização, ela vinha da última porta à esquerda. O que era ótimo e ruim ao mesmo tempo. Ali em cima, a Lua da noite parecia iluminar o local todo com clareza, o que fizera o homem desligar a lanterna e recolocá-la num dos bolsos de suas vestimentas.
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ㅤㅤ Um passo na direção.
ㅤㅤ “Não Ouse!!” O Grito ecoou no meio do coral do terror.
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ㅤㅤ Dois passos na direção.
ㅤㅤ “A Morte te aguarda a cada passo que avança!” Foi quase o guinchar de um pássaro.
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ㅤㅤ Três passos na direção.
ㅤㅤ “Não, não, NÃO!
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ㅤㅤ Guerreiro Raul ignorou os gritos fantasmagóricos e avançou correndo até a entrada do quarto. E foi com toda essa pressa que ele tentou abrir a porta. Agora, meu caro ouvinte, você sabe aquele momento crítico, em que o tempo parece parar para dar espaço para os acontecimentos que estavam por vir? Pois foi exatamente aquilo que aconteceu naquele instante.
ㅤㅤ Assim que o moreno membro da Ordem tocou na velha e enferrujada maçaneta, por um instante, seus olhos viram algo que não deveria estar ali. E, num instante, aquela noite temerosa e aterrorizante se transformara e outra. E ele sabia disso porque ele não estava mais na casa abandonada, e sim, numa casa bem cuidada e iluminada. O coral de gritos e lamentos não mais parecia ressoar no seu espírito, e agora Raul se via assolado por um silêncio igualmente perturbador.
ㅤㅤ A mão que segurava a maçaneta tremia, e foi com aquele mesmo temor que o Guerreiro abriu a porta para descobrir o que lhe aguardava naquela sala, no antro de todo o terror do fantasma. Paremos aqui o tempo mais uma vez, meu ouvinte. E siga minha voz, pois agora tomaremos por emprestada a visão de Raul.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Imagine-se entrando em um quarto pequeno e muito escuro. A única luz que adentrava o lugar era a do astro da noite e noiva do sol, Lua; e era essa também a responsável por dar à você um vislumbre do que é o lugar: Os cômodos não são velhos, muito pelo contrário, pareciam ter sido comprados a pouco tempo. A parede era pintada de uma cor neutra, o que dava contraste ao chão com ladrilhos vermelhos. Talvez essa seja a descrição até mesmo do seu próprio quarto, não sei.
ㅤㅤ Mas o fato era que ali, caída ao lado da cama, estava um corpo.
ㅤㅤ Uma mulher com um corpo magro e quase subnutrido estava jogada no chão. Seu corpo ainda parecia se movimentar, bem de leve, como se ele lutasse em cada suspiro que soltasse, para que não fosse o último. Ela vestia trapos que pareciam algum dia terem sido roupas de cama, talvez até uma camisola à moda antiga, mas eles estavam sujos de poeira e sangue seco.
ㅤㅤ Aquela pessoa não estava ali porque queria. E não digo isso por eu ser o narrador onisciente desta história. Eu digo isso porque, presa ao seu pé, estava uma corrente. Uma corrente que prendia seu tornozelo sem folga alguma, trancafiada por pelo menos cinco cadeados que pareciam pesar uma tonelada quando vistos daquela forma. A pele da mulher naquele ponto estava em carne pura, e o sangue já duro que se formava no chão abaixo do tornozelo e na própria corrente mostravam o quanto ela tinha lutado para tentar escapar. Ou, ao menos, para se livrar daquele item maldito.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Trim
ㅤㅤ Tilintou o silêncio.
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ㅤㅤ Raul piscou com força, e se deparou com um velho quarto caindo aos pedaços. O ladrilho vermelho estava todo quebrado e rachado, isso nas partes em que ele ainda estava ali. A armação da cama, que fora o que restara ali, estava corroída por ferrugem e parecia contorcida por completo. O moreno lembrou-se da visão que acabara de ter, e olhara com receio para o lugar em que a mulher estava. Enfim encontrara a origem de todo aquele mal.
ㅤㅤ Sem demora, colocou-se sentado ao lado do ponto no qual lembrara de ver a mulher jogada e abriu a bolsa de pano que carregava consigo, retirando dali primeiramente um giz branco. E, com ele, Raul começou a desejar no chão alguns círculos e símbolos que muito se assemelhavam com pentágonos e outras figuras geométricas. Guerreiro Raul estava fazendo o círculo de magia para seu ritual.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Aqui, eu vou parar novamente a história para explicar um pouco mais sobre este mundo que é o nosso, e não é ao mesmo tempo: Se você agora está notando, Raul tem capacidades paranormais de se mesclar com pensamentos negativos muito fortes, isso se deu por causa de sua extrema relação com criaturas do tipo, durante o correr de seus duros anos. Da mesma forma, acontece que muitos outros humanos também recebem alguns dons – ou, se assim quiser chamar, maldições – por muito se relacionarem com o que está por debaixo do manto da sociedade.
ㅤㅤ Acontece que, uma vez que o mundo real se junta ao mundo “real”, sempre surgem aí as anomalias para ambos os lados. Existem, sim, por exemplo, casos de homens que se tornaram criaturas das trevas ou de luz; e também há boatos sobre o contrário. O espírito que cada um porta dentro de si e suas vontades e virtudes são o que influenciam nos fios do Destino.
ㅤㅤ E é por isso, também, que Raul fazia naquele momento um círculo de magia. Ele poderia escolher qualquer coisa para representar sua intenção de purificação da alma do fantasma, como, por exemplo, uma bíblia sagrada, ou um manta budista; até mesmo rituais feitos por e recitados por ele mesmo representariam bem o papel. Pois, o que é realmente necessário para se fazer manifestar qualquer ato que quebre a realidade, são as vontades e virtudes. Guerreiro Raul precisa, mais do que tudo, acreditar que seu círculo de magia tem poder, e que ele tem a capacidade para ditar as regras que mandam nas almas.
ㅤㅤ Daí que surgem, por exemplo, as desavenças sobre os mitos populares. Um Vampiro não pode morrer com a água benta jogada por um padre que não crê em seu poder purificador. Mas, certamente a pele deste noturno queimará se esta água benta for jogada por alguém que acredita no poder ali contido, mesmo que tenha sido a água abençoada pelo mesmo padre que não crê no seu poder. Vendo por esse ângulo, pode parecer realmente fácil para qualquer um se tornar um caçador de monstros; mas não caiam nesta armadilha. Quando você fica cara-a-cara com seu pior medo, muitas vezes você começa a deixar de acreditar até mesmo na realidade, como então poderia acreditar na “realidade”?
ㅤㅤ Cavaleiros das várias Ordens que lutam contra o que há por debaixo do manto são tão comentados, tanto entre os humanos que os conhecem, quanto entre os seres míticos que habitam este mundo.
ㅤㅤ Porque eles são realmente poderosos.

ㅤㅤ Todo o ciclo de ritual de purificação de Guerreiro Raul estava pronto, exatamente como seu mentor havia ensinado ele a fazer. Os círculos se ligavam através das várias arestas que formavam ângulos e figuras com relação ao centro da imagem. Em volta do círculo, quatro velas de diferentes coras foram postas e acesas, muito embora o vento misteriosamente entrasse no lugar tentando apagá-las.
ㅤㅤ O Cavaleiro da Ordem sentou-se de joelhos ao lado do círculo e retirou do bolso uma pequena e gasta caderneta, também herança de seu mentor. Num rápido folhear pelo amarelo que se tornaram as folhas, encontrou a página desejada, onde, no meio de várias notas menores, havia algo que parecia quase um poema.
ㅤㅤ
ㅤㅤ - Espírito embebido em trevas e sombra.
ㅤㅤ
ㅤㅤ E, mesmo estando de olhos semi-cerrados, Raul novamente visualizou a cena que tivera quando entrou no quarto. Com a pequena diferença que a mulher agora parecia olhar para ele, e diretamente para ele. Com olhos que pareciam mais com duas lanças que gostariam de lhe perfurar a alma, eram olhos cheios de ódio. Ao mesmo tempo que a mulher parecia observá-lo diretamente, novas vozes recheavam sua mente, tomando de Raul o silêncio que o cercava.
ㅤㅤ - Quantas vezes disse para você parar de tentar!? - Dizia uma nova voz. - Os convidados ouviram! Pare de mexer estas malditas correntes!
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ㅤㅤ - De mim, fiel servo, não mais recebeis afronta.
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ㅤㅤ Um sorriso cínico e curto acompanhou o olhar que acompanhava Raul, e ele parecia realmente estar naquele dia, com aquela mulher ainda viva o observando. Seus lábios estavam secos e quebradiços, até mesmo com sangue seco entre algumas feridas abertas, mas mesmo assim a mulher sorria com dentes amarelados. Observava-o, fazendo o esforço quase mortal de levantar o rosto na sua direção.
ㅤㅤ - Se você não me escuta, eu lhe trancarei neste quarto! - Vinha aquela mesma voz.
ㅤㅤ - Já é a quinta vez só este mês! Quinta! Não serei eu quem vai cobrir as janelas com grades, para que todos vejam a vergonha pela qual tenho de passar. - E seguiu-se o barulho de vidro sendo quebrado, com toda a raiva necessária no ato. - Pois já chega! Vou mandar comprar uma corrente e não deixarei nem mesmo que saia de perto da cama. É o fim de suas escapadelas!
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ㅤㅤ - Se cabe a este a mão amiga da luz...
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ㅤㅤ Os olhos da mulher se arregalaram e se Raul naquele instante não estivesse dentro de uma ilusão, ou de uma pseudo-ilusão, ele sabia que ele também arregalaria seus olhos e se assustaria. Pois aquela mulher, aquela que estava presa na corrente mexeu seus lábios formando uma palavra. Uma palavra seguida de outra. E, mesmo não havendo som nenhum, o Cavaleiro pôde entender o que ela queria dizer naquelas palavras.
ㅤㅤ “Salve-se, Guerreiro.
ㅤㅤ - Você realmente achou que eu queria que você viesse morar comigo? - Uma voz cheia de escárnio. - É tão idiota que chega a me dar raiva, é realmente possível que eu tenha uma relação de sangue tão próxima com você? Pois isso me enoja, você desgraçou a honra da minha família.
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ㅤㅤ - Que assim seja. Pois vem, minha alma te conduz.
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ㅤㅤ Toda aquela visão se desfez na frente de Raul, e ele se viu novamente naquele recinto vazio. Entretanto, agora algo muito pior se fazia presente ali, naquele lugar. E quando disse “vazio”, quis dizer que não havia mais ninguém vivo ali, além do próprio Guerreiro. Pois naquele dia, Raul entendeu que até mesmo almas mortas, quando se desvirtuam e se tornam fantasmas, tem força de vontade a ponto de impor suas vontades. E naquele dia, ele também descobriu que fantasmas na verdade podiam atacar um homem fisicamente.
ㅤㅤ Na sua frente, o espírito renegado materializara-se.
ㅤㅤ A mulher surgira no plano material para impedir que sua maldição tivesse fim, e ali estava aquela mesma mulher que Raul vira nas suas visões. Entretanto, ela agora flutuava alguns centímetros acima do chão. Seu olhar era completamente escuro e seu corpo parecia emanar uma aura púrpura que chegava a cheirar como o enxofre. Presa ao seu pé, havia ali uma corrente prateada que fazia sangrar gotas que nunca tocavam o chão antes de desaparecer. A corrente esta presa ao nada e flutuava assim como a garota.
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ㅤㅤ Trim
ㅤㅤ A corrente tilintou num estalo, e no momento seguinte Raul caiu para trás com o rosto marcado pelo golpe do espírito. O Cavaleiro estava quase atônito, pois já enfrentara inimigos materiais sim, mas nunca um fantasma que se tornara um oponente do mesmo plano. Seus membros tremiam, e ele via que pela primeira em muito tempo deixava-se dominar pelo medo.
ㅤㅤ E começava a novamente ouvir os lamentos dos que morriam antes da hora.
ㅤㅤ E começava a novamente ver-se no hospital em que fora internado quando criança, naquele lugar onde o terror rondava a sua mente e ele nunca entendia o porquê. Raul via-se novamente atormentado pelos vultos das noites inconstantes de sua infância e sentia sua vida esvair-se em cada lágrima que chorava por puro terror. Eram tempos terríveis.
ㅤㅤ Ali, no plano que beirava entre a realidade e a “realidade”, o fantasma da mulher agora ria alto, e sua risada ressoava como se fossem tilintares de correntes que eram forçadas. A corrente que pendia do seu pé envolvera Guerreiro Raul e o apertava os músculos com uma força sobrehumana, força tamanha que faziam estalar os ossos e as juntas do corpo do Cavaleiro. Mas ele estava em estado de choque, nem sequer sabia do corpo, mais se importava com o medo que o assolava.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Cada vez menos o pequeno Raul conseguia dormir. Seus pais nunca vinham visitá-lo, ele não tinha pais. E, fora a família que nunca teve, também era a saúde frágil a interná-lo num hospital. O serviço social achava que estava fazendo o bem para o garoto, mal sabendo que o internavam no único lugar aonde nunca teria paz. Ele começava a criar olheiras enormes pelas noites à pio, e seu corpo ficava cada vez mais fraco, tal qual sua saúde. Pois são pessoas completamente diferentes, aquela que quer viver um próximo dia, e aquela que não mais suporta um único dia.
ㅤㅤ Mas isso foi até aquele dia.
ㅤㅤ Aquele dia em que um grupo de voluntários aparecera para alegrá-los com roupas de palhaços. Não, Raul não achava graça em nada que faziam. E por mais que tentassem, tudo que Raul conseguia fazer era balançar a cabeça, aceitando ou não o que lhe dissessem. Mas isso foi antes do Palhaço Paçoca entrar. E foi só naquele momento que ele levantou o olhar para observá-lo.
ㅤㅤ Não sabia quantos anos tinha, a maquiagem lhe ocultava a idade e a identidade. Mas isso não importava. Pois aquele ser era diferente. Assim como os espíritos em sofrimento emitiam o terror, aquele homem emitia luz, uma aura de tranquilidade envolvia o corpo daquele homem, e, mesmo sem ter feito nenhuma brincadeira, tinha feito Raul esboçar um sorriso. O Palhaço Paçoca pareceu entender quem era o garotinho que ele observava, e o que ele tinha sofrido. Pois foi até ele saltitando e pulando, para logo em seguida lhe entregar, não uma bala ou um pirulito, mas um pequeno pingente com o símbolo da luz: O Sol.
ㅤㅤ Algumas semanas depois, Raul fora adotado por um homem chamado Charbel Vieira, também conhecido dentro da Ordem dos Cavaleiros do Silêncio como “Alegre” Charbel. O homem que se tornara seu mentor, o Palhaço Paçoca.
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ㅤㅤ E mesmo com o corpo envolto naquela corrente fantasmagórica, Raul conseguiu trazer seu braço até o peito, onde o pingente pendia por debaixo da camisa. Voltara a realidade, e junto, sentia as dores do corpo. Mas, junto disso, voltava também a vontade de viver e a coragem. E o medo fugia frente àquele que se chamava “Guerreiro” Raul.
ㅤㅤ Naquela noite Raul também descobriu que a Magia que se oculta por de trás do Manto não era algo completamente sombrio. Não era algo que deveria ser combatido pela força de vontade dos Cavaleiros da Ordem. Afinal de contas, a Força de Vontade, como ele bem pôde sentir naquela noite, também era Magia.
ㅤㅤ - Que assim seja. Pois vem, minha alma te conduz!! - Bradou o moreno, tentando ignorar a dor do aperto das correntes malditas. E naquele instante apertou na pala da mão o pingente do Sol, que começou a emitir um brilho forte e azulado.
ㅤㅤ - Que assim seja. Pois vem, minha alma te conduz!!! - O tom de voz aumentou e a corrente pareceu apertá-lo ainda mais, ao mesmo tempo que o fantasma pousou a cabeça sobre as mãos e começou a agoniar de dor, onde os gritos ecoavam como correntes se quebrando e tilintando.
ㅤㅤ - Que assim seja. Pois vem, minha alma te conduz!!!! - O grito de Raul Guerreiro foi forte, e, daquela vez, ele sentiu o pingente alterar-se nas suas mãos. Por um breve instante, Raul sentiu estar carregando, não uma simples memória de seu mentor, mas uma espada de luz. Uma espada que, num instante, cortou a corrente que o prendia, transformando-a em sombras que logo dissolveram-se no nada.
ㅤㅤ
ㅤㅤ - E que tua alma descanse. Pois não há alma que não mereça a Luz.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Aqui, meu ouvinte, eu pauso a cena para mostrar algo muito peculiar: Aquele fantasma que materializara-se com seu puro ódio e rancor da vida e da casa que a aprisionara tinha aparecido para Raul no mesmo lugar onde ele criara um círculo de magia, segundos antes. E também era naquele mesmo lugar que aquela mulher tinha morrido, presa à uma corrente. E quão surpresa seria, se eu he dissesse que, na realidade, tudo que aquela moça queria, era que justamente Raul o salvasse? Pois naquele instante, Raul lembrou-se das palavras que a moça soletrara para ele na sua visão. E, curiosamente, agora as lembranças eram outras.
ㅤㅤ “Salve-me, Guerreiro.
ㅤㅤ E Guerreiro Raul ergueu seu pingente na direção do fantasma, e o item pareceu agora brilhar mais que o próprio sol, pois um clarão fez-se naquele quarto. E no instante seguinte, estava ali apenas o Cavaleiro da Ordem, de joelhos no chão, com o corpo dolorido e a alma aliviada.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Trim
ㅤㅤ Tilintou a Casa dos Tilintares, uma última vez. Mas aquele som não parecia o tilintar de uma corrente. Mais se assemelhava com o tilintar de um sino, de um pequeno sino que soou, bem perto da alma de Raul. E ele sentou-se no chão, ouvindo novamente aquela voz das visões.
ㅤㅤ - Então, você é a minha irmã, não é? - Disse uma voz simpática, a mesma que gritava no espírito de Raul, instantes antes. - Eu entendo que sente a mesma dor que eu, pela morte de nosso pai. Mas devemos seguir em frente. Estou construindo uma casa para morar com minha esposa, vai ser um sobrado dos mais requintados da cidade. Gostaria de morar conosco? Vai ser uma alegria tê-la comigo, para compensar todos os anos que me foram perdidos de convivência com você. Nesse tempo que nem sabia de sua existência. Sim, somos apenas meio-irmãos, mas de que importa? Vem comigo?
ㅤㅤ Sabe, muitas vezes eu comparo o paraíso idealizado dos homens com uma ilusão daquilo que eles mais desejam. Pois, se eu estava certo na minha comparação, eu tenho certeza que agora, uma Irmã corre de braços dados ao seu Irmão.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Em algum lugar do paraíso.
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quinta-feira, 14 de abril de 2011

A Guarda - Introdução

ㅤㅤPara você, caro leitor, tenho que, antes de tudo, deixar uma mensagem de suma importância: Tudo o que você lerá veio embasado em muita pesquisa, anotações e deduções, vale a pena ressaltar este último ponto. O fato de eu usar da narrativa para descrever todas as cenas é puramente um efeito de estética e que facilitará o entendimento para aqueles que tiverem meus escritos em mãos.
ㅤㅤTodos que pretenderem dedicar seu tempo aos meus últimos treze anos de busca, devem lê-los do modo que foram encontrados; ou seja, cada volume e capítulo por vez, já que que minhas descobertas foram escritas em ordem cronológica e muitas vezes uma depende diretamente de uma anterior para fazer sentido. Válido também é notificar os leitores que, assim como ocultarei alguns fatos e descobertas, em muitos outros momentos usarei de descobertas futuras para melhor explicar um fato antecedente. Peço que compreendam que toda a modificação que eu faço é para o melhor entendimento daqueles que poderão prosseguir com meu último legado.





ㅤㅤSou Jair Darwinheart, e já fiz muitas coisas em minha vida. Mas, dentre várias delas, destaco duas coisas: A primeira é o trabalho ao qual me dediquei por quase toda minha vida, sendo um consultor investigativo para casos complicados em todo Brasil. Afinal de contas, é muito fácil, com a tecnologia e ciência atual, remontar todo um crime em seus mínimos detalhes, mas a mente humana continua sendo algo bem mais complexo que qualquer cena ou prova.
ㅤㅤO segundo ponto que destaco, é minha fascinação por casos paranormais. Uma vez que sou formado em muitas áreas de ciências biológicas e humanas, chega a ser quase um tabu para mim aceitar que no mundo existam incidentes inexplicáveis. Foi graças à junção destes dois pontos que hoje vocês têm nas mãos essas páginas e páginas de conhecimento adquirido.

ㅤㅤAntes de iniciar a narração da primeira de minhas buscas, resumirei um pouco sobre como me engajei em tamanha empreitada: Dois anos após me aposentar de meu trabalho e cinco anos após a morte de minha esposa, eu acabei sentindo um vazio enorme em meu peito. Meu filho eu já não via fazia oito anos, e, por motivos que oculto por agora, talvez ele nunca mais quisesse me ver; os avanços tecnológicos eram tantos que já quase não precisavam de minha ajuda; e uma vez que não tinha mais quase nada com o que ocupar-me a mente, notei como minha amada Pandora fazia falta naquela casa tão vasta.
ㅤㅤFoi buscando um sentido para minha vida que viajava novamente para Londres para ingressar numa nova faculdade aos sessenta e oito anos. Já não estava tão motivado como na época da juventude, culpava a minha idade avançada, quando na verdade era por puro desinteresse que se ocultava naquela minha tola tentativa. Todavia, foi por obra do destino que durante a viagem eu me deparei com algo completamente inacreditável e inesquecível. Por hora, não revelarei mais sobre este ponto, mas haverá uma caderneta inteira explicando sobre o que ocorreu naquele dia.

ㅤㅤO fato é que aquilo que eu vi reanimou todo meu espírito e me deu finalmente algo novo para o qual me dedicar. Agora, já faz mais de dez anos que pesquiso sobre fatos relacionados a esta organização denominada “A Guarda”. E, pelo medo de a morte me abraçar e do mundo perder todo o conhecimento que acumulei, é que estou organizando minhas anotações e descobertas desta forma. Se vocês agora estão lendo isto, provavelmente já devo estar morto, seja por causas naturais, ou por causas “naturais”.
ㅤㅤAos que adentram no universo d'A Guarda, peço cautela em cada passo dado. Pois muitos serão os desafios e poucas serão as recompensações.




Hehe, a inspiração e a empolgação finalmente vieram. E vieram fortes e sagazes. Isso é só uma prévia, aquilo que está antecedendo uma série de contos que tem como plano de fundo a organização "A Guarda". Vocês saberão mais das minhas idéias conforme escreverei cada uma das histórias!
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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Pratici(Bruta)lidade

Guia do Matador de Insetos, Volume 4, Página 476:


“Artigo n°967: Sobre a relação banho x barata. Caso um matador interceptar um protozoário baratóide durante seu momento de pura higienização, há três modos com os quais se seguir.



A: Conforme artigo n°967, a primeira solução é, com toda a destreza natural possível, saltitar pelo chão enquanto o insetóide corre desordenadamente – como é de sua natureza. A direção que deve seguir é a da porta do box, para sair dali o mais rápido possível e voltar com nossa melhor arma.
B: Conforme artigo n°967, a segunda solução é, usando do jato de água proporcionado pela mangueira de banho, virar nossa arqui-vilã de costas. Logo após isso, a técnica é uma mescla de puro bom uso de química, física e experiência no ramo de Matador de Insetos. Segure o sabonete com a mão e o molhe, logo após, girando o sabonete na mão – caso não haja destreza suficiente para o ato, use as duas – deixe com que o líquido, mescla de água e sabonete líquido, caia sobre o corpo da barata. Uma vez que ela respira pelos poros daquela parte do corpo virada para cima, seu ataque será igual ao de quando alguém joga água nos seus tubos respiratórios. Dura apenas dez segundos até completa morte da barata.
C: Conforme artigo n°967, a terceira solução é, compartilhando de grande prática no ato, pisar no inseto. Uma vez que está banhando-se, basta se desfazer dos restos do inseto e higienizar-se.”
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segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Sussurros Engasgados

ㅤㅤAli, mais uma vez, postara-se. Pronto, estava.

ㅤㅤEra com grande ternura que já confessara seus feitos:
ㅤㅤSubiu ao alto do Olimpo, mas lá, nem sinal da presença;
ㅤㅤTarde da noite, Hercule Poirot o considerara suspeito.
ㅤㅤR(←“)apaz de punho forte”, Quixote, a força de sua crença.
ㅤㅤA(←`) poucas lágrimas, dissera tudo, o Sujeito,
ㅤㅤDe cabeça baixa, frente àquela divina Senhora, e sua clemência.
ㅤㅤAli, depois de Aurélia, postara-se. Mais livros.

ㅤㅤLapidou na alma cada gota do suor.
ㅤㅤOnde, em cada qual, vivenciaste tanto, e por tanto.
ㅤㅤNão a encontrara. E torcia para que não fosse por força maior.
ㅤㅤGastou de anos, todavia não cairia por seu próprio pranto.
ㅤㅤAli, mais uma vez, postara-se. Mais folhas.

ㅤㅤE fechou os olhos. Idealizava-a.

ㅤㅤÁtimo de tolice, jogara-a lá. (Hah!) Fazia tanto tempo!
ㅤㅤRoubou dela a vida jovem, condenou-a ao carrasco
ㅤㅤDas folhas, do seu mágico dom que viera com o vento.
ㅤㅤUma vez divertido passear por eles, agora, só espasmo.
ㅤㅤA biblioteca soava sombria, não tinha mais seu antigo envolvimento.



ㅤㅤ(...)



ㅤㅤ(...)



ㅤㅤ(...)



ㅤㅤ(...)



ㅤㅤFaltavam poucos anos de vida, vida de arrependimento.
ㅤㅤIncansável, a busca terminava. Terminava incompleta.
ㅤㅤNão havia sucesso, e sua amada perdida para sempre.
ㅤㅤAli, frente a mais um, agora um livro cinzento,
ㅤㅤLábios de leve soaram, “das minhas tentativas, a última faceta”.
ㅤㅤMal-acomunado da desgraçada do peito ardente,
ㅤㅤEle nem ao menos vira qual o livro. Cego de desalento.
ㅤㅤNão soubera, mas aquele amontoado de poeira da gaveta,
ㅤㅤTudo poderia ter, menos letras. Como bom livro em branco.
ㅤㅤE ali postara-se, como em toda sua vida. Vestiu-se do mágico manto.

ㅤㅤCarregou sua alma para dentro do nada.
ㅤㅤHora de desgraça, abriu os olhos e encontrou-se vivendo atrás do horizonte.
ㅤㅤE ali, só ele existia.... Ou não.
ㅤㅤGalopando no vácuo, montado num cavalo de mentira, ao longe, a amante.
ㅤㅤAli, reencontrada a esperança. Retomada.

ㅤㅤAos berros, lágrimas e juras de amor, ele correra.
ㅤㅤO coração saltitante, fim de tristezas de uma era.

ㅤㅤF(←")IM", Gritara.
ㅤㅤI(←"F)M", Gritara.
ㅤㅤMago amante de livros, aquele que aprisionou sua amada dentro da literatura finalmente a reencontrara na sia infinita biblioteca. Abraçou-a com gosto e deixou que todo seu arrependimento se transformasse em mais pura demonstração de amor. Ela também envelhecera, perdera toda sua juventude perdida no nada de um livro em branco, assim como ele perdera toda a juventude procurando pela amada. Mas já pouco importava. Feliz, abraçou-a, beijou-a. E juntos, saltaram para fora do livro, cobertos pelo mágico manto branco. Desabando em pranto, lembrou-se de todos os “FIM”s pelos quais já passara, procurando apenas o seu. Aos leves sussurros, para a amada, confessou: “A estrada longa e árdua, meu amor, finalmente chegou ao fim”.


FIM
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quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Penas e Cera

ㅤㅤI Sobre a Nostalgia.

ㅤㅤ – Vou repetir: Largue o controle com calma, coloque as mãos sobre a nuca e deite! Armas estão apontadas para você, qualquer mínimo movimento e leva um tiro no meio da testa, rapaz! - Falou pelo Microfone. A voz ressoou por todas as caixas de som do estádio.
ㅤㅤ Contudo, o homem parecia não responder às falas em Inglês transbordado de sotaque brasileiro. Quem diabos era aquele homem? Ícaro franziu o cenho, a feição daquele ser lhe causava arrepios, gostaria de mandar seus homens atirarem nele, mas os riscos eram muitos.


ㅤㅤII Sobre o Passado.

ㅤㅤ Os grandes campos de vegetação rala, que cercavam aquela dantesca floresta, se mantinham por milhares de quilômetros. Grunhidos guturais e a terra que constantemente tremia serviam de avisos para mostrar para qualquer um que, quem ali habitava, conquistara seu direito para tal após anos de sobrevivência no primitivo. Entretanto, aquele dia estava calmo; talvez até mesmo as formas de vida irracionais sabiam da grandiosidade do que ocorreria.
ㅤㅤ Ao longe, as batidas fortes das asas contra o vento começavam a ser ouvidas ao tempo que a sombra colossal cobria grande parte do verde rasteiro. A silhueta finalmente pôde ser vista no horizonte, cativando a visão, audição e olfato de seus habitantes naturais.
ㅤㅤ Os olhos gigantes e a feição aterrorizante do escamoso cretáceo se inclinavam para os céus, aquele pássaro ele nunca tinha visto na sua vida não tão longa. E logo ele, que reinava naquelas terras, sentira-se enormemente ameaçado.
ㅤㅤ Leves e hesitantes passos foram dados, aproximando-se dele pelas costas, e rapidamente o Carcharodontossauro torceu o pescoço, rugindo com agressividade para sua parceira e proles. Exigia que se afastassem, que não buscassem a sombra que crescia no horizonte tanto quanto ele mesmo buscava. E, obedecendo ao rugido dominante, os filhotes recuaram em passos apressados, seguidos pela mãe, enquanto o Carcharodontossauro voltava o olhar para cima.

ㅤㅤ Agora os fortes movimentos aéreos podiam ser ouvidos claramente, cada batida de asas parecia soar como o ribombar de um trovão. Sentindo-se cada vez mais ameaçado pela nova e peculiar figura, o Dinossauro Rei rugiu na direção da silhueta negra; mas o monstro rugiu em resposta; mais alto, forte e agressivo. Aquele ser finalmente aproximava-se de modo que a parva visão do Rei pudesse distinguir mais do que sombras:
ㅤㅤ De pele dura como a do próprio Carcharodontossauro, o Dragão tinha escamas que se encontravam paralelas umas as outras numa simetria encantadora. Cada pequena parte do nobre ser parecia ter sido talhado cuidadosamente, garantindo a ele um porte de soberba e superioridade perante a qualquer outro ser existente. As asas começaram a diminuir a constância dos movimentos, pouco a pouco, o gigante vermelho começava a projetar seu corpo na direção do solo.
ㅤㅤ Ao contrário do esperado, o pouso foi suave e ensaiado. O Dragão pôs-se diante do Carcharodontossauro, erguendo eu largo e forte pescoço para colocar sua face acima da do Rei. Um silêncio mórbido fez-se presente, só sendo quebrado por passos agitados e nervosos do Dinossauro que encarava a criatura lendária com grunhidos e leves rosnados. Mas o Dragão apenas se mantinha obstante, seus olhos de um forte vermelho demonstravam que ele detinha de uma alma poderosa e de uma capacidade ilimitada de poder.

ㅤㅤ Não demorou muito para os outros seres finalmente saírem de suas tocas, formando uma roda de animais centralizando o Dragão. Mais do que instintos selvagens de sobrevivência, os grandes répteis e aves pareceram subitamente minados de curiosidade. A Presença mágica do Dragão parecia fazer com que seres que, antes, não tinham a capacidade de interpretar, agora estivessem cheios de personalidades próprias.
ㅤㅤ Velociraptores pareciam discutir entre si falando rápido – em grunhidos – e saltando uns nos outros. Triceratops ranzinzas resmungavam e cochichavam – também em grunhidos e rosnados – sobre a falta de liderança do grande Carcharodontossauro. Do outro lado, próximo ao oceano que ficava mais adiante, Pteranodontes agitavam suas asas e guinchavam como se fofocassem. E mesmo assim, o Dinossauro Rei permanecia bufando e andando de um lado para o outro, sempre encarando o Dragão com a feição de que ele fosse uma ameaça, agora não só para sua prole, mas para todo o mundo cretáceo – não que definisse isto em nomes.

ㅤㅤ Por fim, após minutos torturantes, o Dragão bufou pesadamente enquanto seu olhar não parava de encarar os do Carcharodontossauro. Abriu suas asas com força e levantou seu corpo, de modo a crescer bruscamente sobre as duas pernas traseiras, rugiu com força para o Dinossauro Rei, era a última tentativa.
ㅤㅤ Todos os répteis, mamíferos e outros seres direcionaram seus olhares para que o seu representante iria fazer. E naquele instante o próprio Rei notou que todos aqueles seres fariam o que ele faria. Que, se avançasse contra o Dragão, os outros também avançariam. Era o que devia fazer. Ao longe, sua prole firmava-se oculta entre largas árvores da floresta e rochedos da planície; após um último olhar para eles, virou-se para o invasor com o cenho irritado e rugiu avançando alguns passos na direção dele. Incitando toda a horda primitiva, o Carcharodontossauro comeu algumas dezenas de metros avançando na direção do Dragão enquanto disparava rugidos e gritos colossais.
ㅤㅤ O olhar rubro daquela nobre existência pareceu agradar-se com a ação e desceu sobre as quatro patas novamente, fazendo o chão tremer e avançando alguns passos na direção do Rei, rugindo temível e agressivo. A terra tremeu e o urro dracônico calou todos os presentes, cessando também a breve caminhada do Rei. Os olhos corajosos do Carcharodontossauro se esvaziaram da agressividade e foram substituídos por puro medo; recuou alguns passos enquanto ouvia mais rosnados bruscos e altos do Dragão. Olhou a volta: Alguns dinossauros e animais que avançaram quando ele avançou pararam suas marchas também, fariam como o Rei faria.
ㅤㅤ E, por fim, o Rei acabou fugindo covardemente em passos apressados, levando consigo sua prole. Deixou para trás guinchados e ruídos turbativos de seu reino cretáceo, seus antigos súditos agora riam de sua falta de coragem.


ㅤㅤ Parando frente aos que ainda permaneceram para ver o que aconteceria, o Dragão mostrou decepção, não era para terminar daquela forma. Recolheu as asas e fechou os olhos por um segundo enquanto sua face dura e concisa tocou o solo, estava refletindo. Finalmente, levantou a cabeça, os olhos mostravam determinação.
ㅤㅤ Logo em seguida, ergueu-se para os céus e rugiu alto, como se suas rústicas cordas vocais chamassem por algo. Aquele som ensurdecedor foi o suficiente para que mais dos animais que presenciavam a cena fugissem, fazendo restar ali apenas os mais curiosos.
ㅤㅤ O olhar do nobre ser continuava para cima, até finalmente poder distinguir no céu aquilo que buscava, aquilo que respondera ao seu chamado. Uma estrela cadente? O pedaço grosso e incandescente de rocha caía dos céus, perfurando todas as barreiras atmosféricas. O Dragão bem sabia, que caso o Rei continuasse em sua marcha de combate, ele sairia vitorioso contra o ser de escamas vermelhas. Sairia vitorioso e reinando sobre criaturas agora dotadas de personalidade e espírito. Mas, falhara.


ㅤㅤIII Sobre o reencontro.

ㅤㅤ Ninguém ainda sabia como aquele homem surgira ali, no meio do novo estádio do Corinthians, em plena abertura da Copa de 2014. Era inexplicável como, no meio do discurso da valorosa presidenta Dilma, um homem albino vestido em terno Hugo Boss e de sapatos Mocassim aparecera bem ao centro do palco. Identificações e fiscalizações armadas e de última tecnologia haviam sido feitas em todas as entradas para o estádio, toda a competência da polícia federal e do exército brasileiro foram postas em xeque por causa da súbita aparição.
ㅤㅤ Quão mais fácil seria caso ele fosse simplesmente um homem bem vestido e penetra.
ㅤㅤ Sentado sobre uma grande maleta prateada, o homem segurava na mão direita algo que parecia um controle remoto, com um grande botão vermelho bem ao centro. Fora a partir daquele momento que toda a situação colocou no comando das operações de segurança o Capitão Ícaro, das forças especiais anti-terroristas. Homem grisalho de porte duro e agressivo, Ícaro já se deparara com inúmeras situações de risco. Mas aquela era a primeira vez que sua carreira – e, por que não, toda sua vida – estavam em jogo de maneira tão arriscada.
ㅤㅤ Ele, o misterioso, só abriu a boca uma vez, para dizer em Inglês Britânico:
ㅤㅤ – Ninguém entra ou sai. Ninguém se move. Ou eu faço tudo explodir.
ㅤㅤ E não houve tempo para tentar rendê-lo, a mão dele já estava sobre o botão vermelho.


ㅤㅤ – Vou repetir: Largue o controle com calma, coloque as mãos sobre a nuca e deite! Armas estão apontadas para você, qualquer mínimo movimento e leva um tiro no meio da testa, rapaz! - Falou pelo Microfone. A voz ressoou por todas as caixas de som do estádio.
ㅤㅤ Contudo, o homem parecia não responder às falas em Inglês transbordado de sotaque brasileiro. Quem diabos era aquele homem? Ícaro franziu o cenho, a feição daquele ser lhe causava arrepios, gostaria de mandar seus homens atirarem nele, mas os riscos eram muitos. Já sabia, sim, que não era nenhum radical islâmico, caso contrário, a explosão já teria ocorrido, e Pelé e Dilma não mais estariam entre os vivos. Caso ele apertasse o botão e a suposta bomba realmente explodisse, ele também morreria, o que levava todos a crer que ele pouco ligava para a própria vida. Contudo, mesmo os tiros mais certeiros ainda dariam tempo para o homem pressionar o botão, o que fazia Ícaro tentar o que era mais óbvio: Ganhar tempo. Em breve as forças especiais e alguns enviados da CIA e Interpol trariam notícias e planos bem mais avançados do que os que os brasileiros tinham para a segurança da Copa.
ㅤㅤ Mas, quanto tempo demorariam?
ㅤㅤ Ícaro novamente via-se tentado a dar a ordem. Havia uma chance, caso seus atiradores acertassem no meio da testa e no braço ao mesmo tempo. Seus dedos tamborilavam no teclado enquanto pensava no que fazer. Ao seu lado, toda a equipe técnica pronta para digitar e soltar ordens, estavam a algumas centenas de metros do Estádio. Mas, o fato do invasor estar olhando diretamente para a câmera fazia com que Ícaro tivesse a sensação de estar ali, a menos de dois metros dele.
ㅤㅤ Ele tinha um ser de superioridade e soberba, e provavelmente, caso estivesse vestido em trajes nobres, poderia ser dado como um príncipe herdeiro de algum alto cargo simbólico de algum país europeu. Um sorriso sereno e sábio estava formado em seus lábios, o olhos de íris azuis penetravam dentro da alma de Ícaro. Permaneceu naquele silêncio por alguns segundos, até finalmente os lábios do desconhecido se mexerem, deixando sua voz ressoar em português:
ㅤㅤ – Quase lá. - Disse. - Mas, você falhou novamente.
ㅤㅤ O anjo da renovação deixou de encarar o espírito do escolhido que poderia fazê-lo mudar de idéia. Soltou o controle com leveza, para no instante seguinte levar um tiro no meio da testa e cair para trás. Mas os olhos estavam abertos e o sorriso se mantinha face. Ele olhava para o céu, onde uma estrela cadente parecia surgir.
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sábado, 4 de dezembro de 2010

O Natal de Ariadne Leverson e a Greve Surpresa

I
ㅤ ㅤㅤ

ㅤ – Até amanhã, Sr. Reuben.
ㅤ Foi desta forma que Ariadne Leverson se despediu de seu funcionário. Era noite de natal, e provavelmente aquele jovem trabalhador não gostava nem um pouco da alma avarenta de sua patroa. Mas, que mais se podia dizer? A velha senhora viúva que levava os negócios do falecido marido nas costas sempre tivera a mesma fama. Era ela a mulher de poucos amigos e muitos bens, que nunca realizara um ato de bondade na vida, senão doar algumas moedas para a igreja – numa paca tentativa de salvar a sua alma.
ㅤ Nunca ligara para o natal. Não era algo que lhe interessasse, não moralmente falando – afinal de contas, não poderia negar que a época do ano vinha a calhar para seus negócios. Reuben Naylor sabia que nunca seria presenteado com um peru de natal, mas já aceitara o fato, e apenas dava graças ao nosso senhor salvador por lhe dar um emprego digno por mais um ano de vida.

ㅤ Sra. Leverson entrou em casa tremendo, logo se desfez do casaco de peles para aceitar o calor que vinha da lareira da sala. Seu valoroso mordomo, Owen Garfild, surgiu no saguão de entrada para ajudar-lhe com a pequena bolsa e ademais pertences. Ela o cumprimentou com um sorriso paco e um leve meneio de cabeça.
ㅤ – Ah, Owen, meu bom Owen! Não sabe como o frio me deixa em frangalhos.
ㅤ – É comum desta época do ano, Sra. - Ele disse, inflexível como todo bom mordomo teria de ser.
ㅤ – Compreendo. É como se o natal e toda esta baboseira conspirassem contra mim. Nota como todo ano, nesta época, o inverno se torna mais intenso? Ah, Owen! Nem mesmo meus melhores vestidos de seda posso usar, sempre me atendo com estes casacos pesados.
ㅤ – Caso a Sra. instalasse um aquecedor no seu escritório, Madame - Disse o careca Garfild - Talvez pudesse usar de seus vestidos.
ㅤ – É realmente uma boa idéia. - Ela disse, os passos se direcionando para a sala. - Mas deixemos para pensar nisso um outro dia, Owen. Só desejo jantar e subir para meu quarto.
ㅤ – Como quiser.
ㅤ O jantar fora silencioso como sempre fora. E Ariadne subiu para o quarto, cansada de seu trabalho, mas já sabendo que haveria mais itens a se resolver no dia seguinte. Com uma lembrança boba que lhe viera na memória – logo após passar pela janela e observar de lá uma grande árvore de natal – a senhora riu sozinha, pensando se naquele ano eles viriam visitá-la.

II


ㅤ A euforia e as vozes se faziam cada vez mais altas no recinto luminoso. Se é que se podia dizer que aquele local era um recinto, ou mesmo uma construção. Apenas havia branco para tudo quanto é lado; e o chão, a parede e teto se mesclavam numa cegante luminosidade.
ㅤ Quebrando a calma e a harmonia daquele lugar tão belo, estavam eles: De todas as formas e tamanhos, de todos os jeitos e desjeitos. Alguns vinham em forma de espírito, e flutuavam com asinhas de anjo nas costas, havia também aqueles que ainda adotavam o estilo antigo, carregando foices enquanto acobertados por mantas negras. Grande parcela até mesmo tinha se modernizado, um usava um terno de cetim e uma gorda tentava ocultar suas protuberâncias dentro do glorioso vestido vermelho de seda oriental. A mescla de estilos e cores faziam o salão mais parecer o famoso carnaval brasileiro que começava a ganhar fama mundial.
ㅤ – Com calma, Senhores! Com calma! - Dizia um velho barbudo sentado numa cadeira imaginária. As roupas vermelhas e a pele alva em mescla com as bochechas rosadas mostravam claramente quem era a figura. O Papai Noel, depois de alguns segundos de insistência, finalmente conseguiu silenciar a multidão. - O que é, este ano?
ㅤ – Continuamos trabalhando no natal! - Reclamou uma voz aleatória, que recebeu o apoio de outros.
ㅤ – Ainda não recebemos nosso bônus pelas horas extras!
ㅤ Mais consentimentos.
ㅤ – Será que não poderíamos trabalhar num horário mais oportuno? - Falou uma terceira voz, um tanto mais insegura que a dos outros. - É tão embaraçoso ter de acordar as pessoas no meio da noite. Sabia que algumas delas dormem despidas?
ㅤ Desta vez, ninguém se manifestou a favor.
ㅤ – Enfim, nós queremos recobrar nossos direitos! - Disse novamente o primeiro que tinha levantado a voz.
ㅤ Noel deu um longo suspiro e coçou as sobrancelhas grossas com seus dedos enluvados de couro. A parte fácil de entregar alguns presentes pelo mundo valia muito bem a pena. Não, era mais do que óbvio que ele não descia de chaminé em chaminé para colocar presentes. O que realmente fazia era despejar o espírito natalino sobre as casas, e deixar que eles cuidassem do resto. Infelizmente, sempre haviam os mal-encarados. Seres que nasceram para repelir de suas almas, o bom gosto do velhinho vermelho. E para isso existiam aqueles senhores ali. Contudo...
ㅤ – Mas, pelo amor de deus, vocês são os Fantasmas da noite de Natal! Vocês trabalham no natal. Só na noite de natal! - Disse o Noel.
ㅤ A legião de fantasmas, espectros, espíritos e almas levantou novamente a voz de uma única vez, causando uma nova pontada de dor de cabeça na mente do bom velhinho. Santo Nicolau pressionou as têmporas com os dedos indicadores, numa tentativa infeliz de calar as vozes na sua mente, já bem bastavam as marteladas da Senhora Noel, toda noite.

ㅤ – Os fantasmas do Presente deveriam receber mais. - Disse um parrudo de pele amarela brilhosa, vestido como um pirata. - Passear pela cidade numa noite tão fria é certamente bem mais trabalhoso e desgostoso.
ㅤ – Ora! - Um anjinho do tamanho de um bebê levantou-se, ele irradiava em luz azulada. - E quanto a nós do Futuro? Garanto que avançar no tempo é bem mais cansativo.
ㅤ – Além do mais, é um futuro incerto! - Levantou-se em pleno ar um companheiro anjinho. - Fora as lamentações! Vocês são sortudos de não terem de ouvir os choros e súplicas dos bastardos! Nós que ficamos por último que sempre sofremos.
ㅤ – Ao menos, quando vocês entram em cena as pessoas já estão prontas - Disse, ao que parecia, a mesma voz que comentara sobre pessoas que dormem despidas. - Não é nada bom visitar a Sra. Lounge depois que ela venceu o campeonato de mais comilona de panquecas da cidade.
ㅤ E mais uma vez começou o bate-boca espectral, que nada se diferenciava de um humano. O velho Noel pressionou com ambas as mãos o couro cabeludo grisalho, em mais uma fula tentativa de conter as vozes. Se havia algo ruim em ser imortal, era o fato de que você teria de viver toda a eternidade com a enxaqueca. Já estava quase a ponto de se comprimir em posição fetal na sua pseudo-poltrona, quando estourou os limites da paciência e levantou-se da cadeira num ato raivoso com um grito quase gutural. A horda de fantasmas se calou e direcionou os olhares para o bom velhinho.

ㅤ – Mas que – desculpe, Senhor – diabos vocês pensam que estão fazendo!? Ora, vocês são fantasmas da noite de natal, deveriam trabalhar para reavivar o espírito natalino dentro da alma daqueles que a rejeitam. Mas o que eu vejo aqui – Ah, meu bom Deus – é exatamente o tipo de comportamento que vocês deveriam estar erradicando no planeta. Será que não notam, ora pois, que vocês nada estão diferentes dos carrancudos que visitam? Deste jeito, terei de achar fantasmas da noite de natal para fantasmas da noite de natal.
ㅤ Papai Noel sentou-se, exasperado.
ㅤ – Que me dizem? Que tal pararmos de discutir e começarmos a distribuir o espírito natalino?
ㅤ O silêncio continuou por alguns segundos, somente pareado por alguns cochichos aqui e acolá. O Santo Nicolau parecia finalmente ter conseguido o apoio dos fantasmas, e, relaxado em sua pseudo-poltrona deixou escapar um suspiro de alívio.
ㅤ – Não! Ainda queremos nossos direitos! - A voz rompeu, quase fazendo Noel cair de seu encosto.
ㅤ E, para delírio do velhinho, as vozes começaram a se levantar em apoio. Não uma, não duas. Todas elas começavam a gritar: “Greve! Greve! Greve!”. Noel fechou os olhos com força, perdera as esperanças. Quando abriu novamente os olhos, deixava que fitassem o teto esbranquiçado do local.
ㅤ – Ai, Jesus, e agora? - Disse para si mesmo.
ㅤ A figura do homem de cabelos castanhos e uma paz celestial na feição surgira no céu para o Santo Nicolau. E, antes que lhe desse esperanças, Jesus deu de ombros.

III

ㅤ Ariadne acordou naquela manhã como sempre acordava em todas as manhãs. Sem espíritos, sem fantasmas, sem visões do futuro e sem gente pegando-a desprevenida. Realmente, a baboseira de natal era sempre a mesma. Era aquele apenas mais um dia de trabalho, só o que lhe arrancaria o humor seria a face aborrecida do Sr. Reuben e o fato de ainda não poder usar seus vestidos de seda. Realmente deveria comprar um aquecedor.
ㅤ Retirou o pesado cobertor de peles de cima do corpo e pisou no chão coberto pelo tapete persa. Buscou com a mão o roupão para lhe cobrir o corpo; definitivamente era ótimo dormir despida.

ㅤㅤIV

ㅤㅤAssim que as botas de couro reforçado saíram dos pés do velho Noel, ele soltou um suspiro de puro alívio. Acabou que, no fim das contas, ele não conseguiu conter os Fantasmas das noite de natal, que saíram da audiência todos com a idéia de "Greve" ainda em mente. Ao menos, e ficou feliz com isso, pôde viajar pelo mundo na companhia das renas para entregar o espírito natalino pelo mundo. Puxou a fivela do cinto para soltá-la e logo em seguida pousou o gorro vermelho no criado-mudo.
ㅤㅤO Sofá da sala nunca fora tão confortável para ele, mas a Sra. Noel deixou bem claro o que ocorreria caso ele se atrasasse. "Os Fantasmas entraram em greve e tentei contê-los", ora, até mesmo contos de fada e seres imaginários tinham seus limites de sensatez; Mamãe Noel nunca acreditaria na história. Puxou o cobertor macio sobre seu corpo e já ia fechar os olhos quando um baque perto da janela o fez saltar do sofá, caindo com o nariz no chão.
ㅤㅤ- Claro! Agora assaltam a casa do velho Noel! - Disse, consigo mesmo. - Que ótima forma da noite acabar!
ㅤㅤE, com toda a tranquilidade da imortalidade, dirigiu-se para o corredor, de onde viera o som. Mas ali, viera sua surpresa. Atônito, Noel observava a figura verde-brilhosa de um velho em seus pijamas caros; o nariz avantajado não o fazia errar sobre a identidade do sujeito.
ㅤㅤ- Scrooge!
ㅤㅤ- Feliz Natal, velho Nicolau! - Respondeu, bem humorado.
ㅤㅤ- Mas o que faz aqui, homem de deus? - Noel falou, coçando os poucos cabelos grisalhos que sobreviveram na parte central da cabeça.
ㅤㅤ- Fiquei sabendo do que aconteceu com meus velhos parceiros. Decadência, né?
ㅤㅤUm leve olhar raivoso passou pela face de Noel.
ㅤㅤ- Ora, Scrooge, então foi voc...
ㅤㅤ- Opa! Opa! Calma aí, Nicolau! Sabe muito bem que, desde aquela noite, até o fim de meus dias, eu nunca mais fui uma má pessoa. Tanto que me colocaram aqui, nesta posição. - E com um gesto mostrou-se a si mesmo. - Se eles tem agora um fiasco de ambição na mente, não é por minha culpa! Na verdade, eu bem estranhei que meus parceiros não vieram para me dar as coordenadas, estava ansioso para visitar o mal-encarado do ano. É um caso bem peculiar, bem parecido comigo.
ㅤㅤ- Entendo. - O Velho Noel escorou-se na parede. - Mas, por que veio até aqui? Só para me dizer isso que não foi.
ㅤㅤ- Na verdade... - Ele disse, deixando transparecer um pouco da esperteza que o jovial Scrooge tivera para ganhar a vida através de um sorriso. - Tem como me emprestar o trenó? Dizem que ele tem a capacidade para levar as pessoas para onde desejam ir.
ㅤㅤOs olhos do velho Noel arregalaram.
ㅤㅤ- Ora, você não...
ㅤㅤ- Está afim de fazer uma horinha extra como Fantasma, velho Nicolau?
ㅤㅤ
ㅤㅤE o natal passou como todos os outros para Ariadne Leverson. Ao menos, todos desde o dia em que os pais se separaram na mesma data. Brigou com o digníssimo Sr. Reuben por estar tão distraído no trabalho e fez a encomenda do aquecedor, chegaria uma semana depois, de modo a fazer a velha Ariadne começar a escolher que vestidos de alta classe e costuras impecáveis ela iria usar.
ㅤㅤJantou com toda a calma e serenidade, o velho Owen sem dizer uma palavra desnecessária. Levantou-se e foi dormir com a calma de sempre; durante a caminhada, deparou-se com a mesma árvore de natal despontando na janela. As lembranças vieram novamente e ela soltou um suspiro baixo e contido, de decepção. Naquele ano, eles também não vieram.
ㅤㅤ
ㅤㅤSerá que Ariadne acreditaria em Fantasmas da Noite Seguinte ao Natal?
Leia até o fim...

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Moeda

ㅤㅤ I

ㅤㅤ - Thomas? Thomas? Pode me ouvir, Thomas? - A voz desesperada vinha destorcida e longínqua. - Thomas, caso esteja escutando a minha voz, tente pressionar minha mão. Você a sente, não?
ㅤㅤ Pseudoconsciente e perdido, decidiu seguir os pedidos da voz. Mandou o comando, não soube se chegou ao seu braço, nem ao menos sabia se tinha braço. Não podia sentir muita coisa além do mundo rodando a sua volta, no escuro. Ouviu novamente a voz, mas agora, parecia mais distante, incompreensível. E, como se – com passadas rápidas e desesperadas – se afastasse, Thomas não pôde mais sentir seu interlocutor. O inconsciente o abraçou e ele decidiu que estava cansado e era hora de relaxar. Até quando? Para sempre? Ninguém sabia, nem mesmo Ele. Cara ou coroa?

ㅤㅤ II

ㅤㅤ Piscou, a cena mudou bem na sua frente, e agora o jovem Thomas não se lembrava de nada. Estava sentado numa velha cadeira de madeira, uma lâmpada fraca e falha ficava oscilando acima dele, iluminando apenas um círculo mínimo de luz em volta de si. Não tinha a mínima idéia do porquê de estar ali; mas também pudera, encontrava-se num paradoxo mental gigantesco: Seu passado parecia ter ido por ralo abaixo, só sabia seu nome e quiça sua idade; o local onde estava, que parecia um infinito de escuridão com o centro luminoso onde se postava, também lhe era completamente imemorável. Mas, ao mesmo tempo, ele sabia que devia estar ali. Sabia que era para estar ali e que aquilo era sua vontade.
ㅤㅤ Todavia, qual era a sua vontade? O que diabos um garoto de quinze anos poderia ter de força de vontade para lhe mover até ali, sem memórias ou idéia do que fazia? Conforme sua mente ia adaptando-se ao local onde estava, o raciocínio voltara e Thomas começou a tentar deduzir alguma coisa. Mas nada ajudou. Estava nu; de roupas, de passado, de pensamentos lógicos. A cadeira dura e chata começou a incomodar-lhe a posição, ótimo motivo para levantar e explorar aquele lugar surreal. Apoiou suas mãos nas laterais de seu encosto e levantou-se.
ㅤㅤ - Você veio! - A voz tão súbita fez Thomas jogar-se com tudo na cadeira, caindo para trás junto dela. Tinha sido um som alegre, uma exclamativa animada e feliz, alguém o esperava ali. O jovem levantou-se, hesitante e desnorteado pela surpreendente nova presença.
ㅤㅤ - Quem está aí? - Disse, a voz falha.
ㅤㅤ - Ora, não se lembra de mim? - E antes que o garoto pudesse responder, a voz complementou. - É claro que não se lembra! É impossível para alguém de Lá, lembrar-se de algo quando vem para Cá. Guarde suas dúvidas, Thomas, não quero ficar respondendo questionamentos por tempo demais. Não que tenhamos um limite de tempo para falarmos, Cá o tempo não existe!
ㅤㅤ Seja lá quem fosse a pessoa detentora da voz, ela parecia emanar por todo o local. Não como caixas de som artificialmente transmissoras; era pura! Dizia e parecia ser onipresente a cada palavra nova que esbanjava para o menino!
ㅤㅤ - Mas eu...
ㅤㅤ - Certo! Certo! Tudo bem, responderei apenas três perguntas suas!
ㅤㅤ - Sério?
ㅤㅤ - Duas!
ㅤㅤ - Mas eu..
ㅤㅤ - Certo! Certo! Tudo bem, responderei apenas três perguntas suas!
ㅤㅤ - Hã?
ㅤㅤ - Duas!
ㅤㅤ - Você está me...
ㅤㅤ - Faça suas perguntas, Thomas! - A voz disse em tom terminal, quebrando com a tranquilidade e vivacidade com a qual falava até o momento. - Não quer me ver nervoso, sabe como é quando estou nervoso.

ㅤㅤ Arrepios subiram a coluna do garoto, que instintivamente encolheu-se com os ombros para frente, em posição quase fetal. Pôs os pés sobre a cadeira de madeira e abraçou os joelhos com os braços finos e alongados. Algo naquela voz lhe parecia familiar, familiar e extremamente bipolar; quem sabe não conhecesse sua detentora, no fim das contas. Olhou em volta, na tentativa de achar o interlocutor para o qual direcionar suas milhares de dúvidas, sem sucesso. Vacilou na primeira tentativa, mas na segunda, a voz saiu firme e alta.
ㅤㅤ - Onde estou?
ㅤㅤ - está! - Disse, voltando ao tom normal.
ㅤㅤ - Mas onde é ?
ㅤㅤ - Ora, é !
ㅤㅤ - Você não está colaborando!
ㅤㅤ - E você só tem uma última pergunta!
ㅤㅤ - Mas eu...
ㅤㅤ - Só uma pergunta, Thomas! Vamos! Vamos! Esta conversa está ficando chata!
ㅤㅤ - Certo, então, minha última pergunta. - Thomas virou o olhar para o lado, instintivamente. - Quem é você?
ㅤㅤ - Eu sou Eu! - E antes que o menino pudesse novamente contestar as resposta da voz amigável, ela completou. - Então, como está se sentindo agora, Thomas?
ㅤㅤ - Estou... Perdido. Não sei de nada, nem mesmo lembro onde moro e quem são meus pais!
ㅤㅤ Thomas ouviu um aparente suspiro.
ㅤㅤ - Hah, menino! E eu que pensava que sua resposta seria ao menos um pouco mais peculiar. Acho, realmente, que falho sempre que tento me comunicar com vocês, vocês de . - A voz pausou, como se procurasse palavras. - Será que não tem um mínimo senso de criatividade!? Ora, tantos que já sentaram nesta sua cadeira de madeira, e nenhum veio com uma novidade. O cérebro humano tem inimagináveis capacidades, atinge o ecstasy facilmente e níveis de hormônios pipocam e afloram; e, mesmo assim, quando se vêem num ponto enigmático e misterioso, tudo o que fazem é se recolher ao medo detestável!

ㅤㅤ A voz se calou, como se parecesse querer ouvir uma resposta de Thomas. Mas o menino estava ocupado demais tentando tragar algo à tona. Qualquer coisa que pudesse lhe dizer como chegara ali, qualquer correlação dEle com o resto da sua vida perdida no passado. Sim, já tivera conversas com aquele sujeito, a nostálgica sensação de Dejàvú inundou sua mente e imagens começaram a se formar, aos poucos, tímidas e singelas.
ㅤㅤ - Se atém ao passado e ignora a minha voz. - A nova fala dEle o tirou do transe temporal no qual quase entrou; agora melódico, triste. - É realmente preciso do passado para se prender a uma existência, Thomas? Não, logo você, que tanto disse para mim como queria deixar tudo para trás.
ㅤㅤ - Eu disse?
ㅤㅤ - Disse! - Gritou Ele, num início de choro. - Foi assim que falou comigo pela primeira vez, jovem, numa súplica para que o mundo real se desfizesse! Para que o surreal tomasse conta de você e para que sua vida fosse mais do que aquele básico.
ㅤㅤ - Eu... - Imagens vinham a mente. Fracas, vacilantes. - Eu não me lembro de nossas conversas.
ㅤㅤ - Você não lembra, você queria esquecer tudo! E agora... Agora que você... - E a rouquidão da voz, quase imperceptível, subiu a um extremo dela tornar-se um bestial rugido. - ...Quer tudo de volta!? Joga toda sua ideologia fora como lixo!? Hah, Thomas, eu deveria agarrá-lo pelos braços e puxá-lo até que se dividisse em dois! Deveria espremer sua cabeça para que seus olhos e seus dentes saltassem fora! Deveria ir e vir na ausência do tempo, causando as mais diversas torturas para seu material casulo!
ㅤㅤ Quentura, sentiu a sua pele esquentar-se na parte das pernas. Urinara-se de medo, o jovem e rebelde Thomas. A voz tão multifacetada lhe causava cada vez mais imagens indo e vindo, podia finalmente localizar-se no passado. Sabia de faces e nomes, mas nada lhe agradava. Nada lhe era tão bom quanto queria. Sim! Ele queria por mais, queria por algo diferente de tudo e todos. Foi aí que...
ㅤㅤ - Foi aí que você me conheceu, Thomas. - Ele dissera, como se a mente do garoto fosse um livro aberto para sua consulta. Agora, tinha um tom calmo e leve. - Foram horas de ótimas conversas sobre um mundo novo, um mundo onde os tabus de sua existência fossem quebrados e as leis do universo fossem inversas ou nulas. Hah, Thomas! Como eu gostava do tempo que gastamos juntos! Houve época que sua voz era tão encantadora aos meus sentidos que eu mal esperava pelo seu chamado, que te visitava, que ia até , vê-lo em sonho. Vinha lhe dar meu amado “olá” ao qual tão bem você me respondia. E, aos poucos, meu jovem garoto, fui pensando que você poderia ser diferente. Que, quando finalmente viesse à este mundo, achasse a companhia ideal para mim.
ㅤㅤ - ... - O garoto manteve-se calado.
ㅤㅤ - Mas vejo que estou enganado, Thomas, não estou? Parece-me que novamente as ações humanas foram simples gestos hipócritas e manipuladores, persuasivos e cruéis, malévolos e vazios! - O tom melódico. - Vejo, na minha frente, neste vínculo, agora, apenas alguém que mija nas calças frente a presença de alguém a quem, antes, sentia excitação e ereção! Vamos, diga, Thomas! Diga com todas as palavras o quanto sua covardia me posta como idiota!
ㅤㅤ - Eu...

ㅤㅤ De repente, Thomas sentiu-se sozinho na escuridão. Como se a presença do ser que falava consigo simplesmente desaparecesse. E ele pôde sentir como a falta dela era terrível, o coração murchou num mundo onde agora mais nada existia. De repente, os pais que tanto lhe enchiam de cuidados miseráveis pareceram caridosos. De repente, as notas na escola pareceram castigo infantil frente àquilo. De repente, teve vontade de voltar à sua realidade. De deixar para trás aquele seu último ato de bruxaria, no qual ateou fogo no seu próprio corpo; convencido pela melódica voz dEle – sua primeira e única invocação sobrenatural.
ㅤㅤ O escuro da sala mudou de súbito, chamas saltaram de todos os cantos e o chão de concreto tornou-se rochoso e brasil, a iluminação fosca foi trocada por um céu escuro-vermelho que saltava em trovões malévolos e risadas rústicas. Vulcões ao longe faziam saltar lava e fumaça negra para todos os lados, e Thomas acuou-se ao nada, caindo nu sobre a rocha. As nuvens vivas começaram a tomar forma no céu, até uma arrebatadora e cruel face cortada surgir primitivamente acima de sua cabeça.
ㅤㅤ - Sua voz me dá nojo! THOMAS! - Gritou como trovão, Ele. - Pois saiba que agora, tudo o que me guardo a ti é raiva! Raiva e rancor! Explodo em terror e medo na sua mente, deixo que seu corpo sinta suas penas devidas! - Conforme falava, Thomas começou a sentir a queimação invadir seu corpo. De leve início, uma formicação, até elevar-se à dor insuportável de queimar, de queimar em carne e espírito. Sentia agora como seu ritual lhe fora cruel e tenso. Como sua vida começava a vacilar entre seus dedos abertos e fracos. Gritava e chorava, ao som dos gritos dEle. - Clame! Clame pela sua miserável vida, Thomas! Mostre-me o quão insuportável é!
ㅤㅤ E, como se os gritos de dor aguda finalmente pudessem se canalizar, Thomas começou a gritar pela sua vida. Chorava e deixava as cordas vocais vibrarem ao máximo pelos seus pais, pela sua antiga vida. Os sentimentos contidos e rejeitados começaram a lhe parecer tão amáveis, que agora, tudo o que queria era voltar no tempo e poder novamente sentir seus entes queridos. Todos que queriam seu bem e ele achava que era pura paparicação. Queria-os, queria-os muito.

ㅤㅤ III

ㅤㅤ - É isso, então. - Disse Ele.
ㅤㅤ Thomas caiu da cadeira novamente, em susto e arfante. Seu corpo estava suado e ele completamente perdido, um segundo antes, estava queimando em brasas internas. Brasas apenas suas. E agora, voltava ao cenário inicial. Caído, sob o pequeno círculo de luz da lâmpada que oscilava. Olhou em volta, podia sentir sua presença ali, na espreita.
ㅤㅤ - Quer voltar para , certo?
ㅤㅤ - Sim. - Disse, de pronto.
ㅤㅤ - Certo, mas eu tenho uma muito má notícia a ti.
ㅤㅤ E passos foram ouvidos, passos vindos de uma só direção. Thomas ajeitou-se e ficou sentado no chão, a respiração finalmente se regulando. Logo, uma figura entrou no local, vestido de Menestrel, o homem de pele branca pura com véu de noiva estava metido em cores vivas. O chapéu de Bufão era grande o suficiente para caber cinco de sua cabeça, mas estava muito bem apertada na testa com um fio de tecido. O mais impressionante, porém, era sua face lisa. Face sem face. O homem não tinha expressões porque seu rosto não tinha boca, nem olhos, nem nariz, nem orelhas. Ele ajoelhou-se em frente a Thomas e pareceu ficar observando-o por bons segundos.
ㅤㅤ - Sabe, uma vez que se vem até , Thomas, é duro voltar. É duro que sua vida prossiga. Sabe qual a chance? - O garoto respondeu balançando a cabeça negativamente. - A chance é uma cara!
ㅤㅤ Disse Ele, apontando para a sua própria, que emanava sons por todo o lugar. Ficou parado por alguns instantes, até finalmente cair na risada, sentando-se no chão, junto do menino. Agora, Ele parecia mais jovem, tinha a quase a mesma estatura e porte físico de Thomas; se não fosse pelas roupas extravagantes e pela face paradoxal, talvez pudessem ser amigos, transeuntes de um shopping na sexta à noite.
ㅤㅤ - Desculpe, não aguentei a piada, Thomas. A cara que eu digo, é esta. - E, num movimento de mão rápido. Surgiu ali uma moeda grande e oval, Ele a girou entre os dedos, mostrando que um lado carregava uma face sem face, e a outra mostrava uma incógnita “?”. - Isto define se você, , vive ou deixa de viver. Cara ou coroa. Mesmo assim, quer tentar? Pode ficar aqui, comigo.
ㅤㅤ - ... - Thomas pareceu pensar na decisão. - Quero tentar.
ㅤㅤ Ele, caso tivesse uma face, provavelmente sorriria para Thomas. Não era necessário mais palavras, ambos já sabiam que aquele era o último adeus depois de horas de rituais de invocação e conversas, frutos de uma bruxaria baseada em espíritos e sentimentos reclusos. Ele jogou a moeda ao ar, ela girou loucamente. E, quando foi atingir o chão, tudo ficou escuro.


ㅤㅤ - Thomas? Thomas? Pode me ouvir, Thomas? - A voz desesperada vinha destorcida e longínqua. - Thomas, caso esteja escutando a minha voz, tente pressionar minha mão. Você a sente, não?
ㅤㅤ Pseudoconsciente e perdido, decidiu seguir os pedidos da voz. Mandou o comando, não soube se chegou ao seu braço, nem ao menos sabia se tinha braço. Não podia sentir muita coisa além do mundo rodando a sua volta, no escuro. Ouviu novamente a voz, mas agora, parecia mais distante, incompreensível. E, como se – com passadas rápidas e desesperadas – se afastasse, Thomas não pôde mais sentir seu interlocutor. O inconsciente o abraçou e ele decidiu que estava cansado e era hora de relaxar. Até quando? Para sempre? Ninguém sabia, nem mesmo Ele. Cara ou coroa?
Leia até o fim...

domingo, 3 de outubro de 2010

O Golem e a Intangível



ㅤㅤ I
ㅤㅤ
ㅤㅤ Novamente, apareceu. O deserto no qual eu vivia por uma eternidade – ou, pelo menos, nunca me lembro de ter saído daquele lugar – parecia ganhar mais brilho quando ela surgia. Tinha cachos dourados e uma pele alva, brilhante; envolta numa manta branca que a fazia ficar ainda mais divina. Aproximou-se de mim com passos ensaiados, brincalhões; e tocou de leve no meu ombro.
ㅤㅤ - Você parece estar mais vivo dessa vez. - Ela disse.
ㅤㅤ - Não acontece muito. - Retruquei. - Talvez só quando você resolve me visitar.
ㅤㅤ Ângela riu do meu comentário e virou-se de costas, afastando-se dois passos antes de se virar novamente para fitar a minha face com seus olhos azuis e uma feição um pouco mais séria.
ㅤㅤ - Desculpe não por não vir até você tanto quanto antes. É que eu tenho tido muitas coisas para fazer, sabe? Mas agora, eu acho que posso me dedicar um pouquinho mais a você – o meu melhor amigo. Dessa vez, Hiroshi, eu vim para te levar comigo.
ㅤㅤ - Me levar... com você?
ㅤㅤ A dúvida recheou meu ser, afinal, minhas lembranças – falhas e miúdas – nunca me mostraram nada além daquele universo de areia no qual eu vivia, solitário quase sempre, só sendo visitado por aquela existência cheia de vigor. Desviei o olhar para encarar o céu escuro e sem estrelas que jamais tinha mudado.
ㅤㅤ - Realmente há algum lugar diferente deste aqui? - Complementei.
ㅤㅤ A garota angelical deixou sua face envolver-se num antro de preocupação, e acabou que novamente se aproximou de mim, aquecendo-me num abraço quente e acolhedor. Demorei para retribuir àquele ato de carinho e caridade que ela demonstrava, não sabia se algum dia já tinha sido abraçado por alguém. Acabou que, depois de alguns poucos segundos, meus braços se moveram e eu também deixei meus braços repousarem sobre sua pele macia. Mantemo-nos naquela posição por tempo incontável, para mim quase uma nova eternidade que eu gostaria que perdurasse ao infinito, até que afastou seu corpo do meu, o suficiente para que pudesse penetrar seu olhar dentro de minha alma, através de minhas orbes negras e desgastadas. Acariciou minha face e sorriu.
ㅤㅤ - Há, meu querido, há um lugar muito melhor. Um lugar que é – e sempre foi – seu por direito, e é hora de reconquistá-lo. É hora de buscar sua vida de verdade, de enfrentar seus medos e fronteiras. Você me deixa levá-lo embora deste mundo sem vida?
ㅤㅤ Me calei, por alguns segundos, até que finalmente senti confiança naqueles dois mares azuis que tinha em suas orbes. Dois mares que sempre me convenceram que eu era especial à ela, com feições ternas e amorosas. Ousei, toquei os lábios da moça de pele alva com os meus rachados e secos. Não houve resposta de início, até que finalmente ela se entregou ao amor e beijou-me de volta. Quando afastei minha face da dela, duas lágrimas escorriam pelas suas bochechas pouco rosadas. Ângela, a única que viera até mim e conquistara meu coração, estava mais feliz do que nunca estivera.
ㅤㅤ - Hiroshi, vamos? Vamos embora daqui?
ㅤㅤ Eu assenti com a cabeça, levemente.
ㅤㅤ - Vou, com você, para onde for necessário.

ㅤㅤ
ㅤㅤ II
ㅤㅤ
ㅤㅤ Centro Revolucionário do Novo Brasil. 13 de Março de 2045, 23h30min.
ㅤㅤ
ㅤㅤ As vozes inundaram seus ouvidos, tirando Messias do sono leve. O homem levantou-se do amontoado de colchonetes que eram sua cama e olhou para o relógio de pulso, já era a tão esperada hora. Zanzou pelo pequeno cômodo improvisado na rocha, colocando uma camiseta regata. Se pudesse e a ocasião fosse mais informal, teria ido sem a parte de cima de suas roupas; vez que o calor de cinquenta e oito graus que fazia ali – cem metros abaixo da superfície – era quase insuportável. Sua cabeça latejava a cada vez que um grito sobrenatural soava em seus ouvidos, tornando difícil a simples caminhada que ele precisava fazer pelo pequeno corredor escavado na pedra. A euforia sonora, que só ele e mais alguns poucos no mundo podiam ouvir, indicavam o quanto Eles estavam agitados e inquietos.
ㅤㅤ Não era para menos, aquele era o dia do contra-ataque.
ㅤㅤ Encontrou poucas pessoas nas teias de túneis da Resistência, a maioria dos soldados estavam prontos para saltar de volta à superfície para reclamar seus direitos. Poucos meses antes, ninguém mais tinha esperança de um dia reconquistar o planeta perdido, mas fora então que os escolhidos foram surgindo em volta do globo, e a precária comunicação entre os rebeldes de todos os continentes começou a se unir para uma retomada. O último ser deixado dentro da caixa de Pandora, a Esperança, começava a se reavivar dentro do coração de cada um dos seres humanos que não foram dominados. Os passos de Messias se apressaram conforme se aproximava da sala de meditação, acenou para alguns poucos homens que ficaram no CR do Novo Brasil para a proteção dos Escolhidos e das – poucas – crianças.
ㅤㅤ Virou à esquerda numa bifurcação dos túneis mal-iluminados e logo encontrou uma pequena porta de aço, vigiada por dois soldados que se espremiam na parede com fuzis ainda munidos da antiga pólvora. Messias acenou para eles e aproximou-se da porta, batendo nela pesadamente. Poucos segundos até uma pequena escotilha se abrir e dois olhos fitarem os de Messias com tensão, estavam todos nervosos. A porta se abriu em seguida, dando passagem ao Escolhido, que se viu junto de mais três homens e quatro mulheres.
ㅤㅤ Sentou-se em sua cadeira e deu as mãos para os que sentavam ao seu lado. Agora, Messias já quase não estava no mundo físico. As vozes – diversificadas em gritos, sussurros, pedidos e choro – dominavam-no por completo, assim como dominavam a todos naquela sala. De mãos dadas e almas unidas, eles eram mais fortes, poderiam assim comandar o outro lado da revolução. Messias fechou os olhos e entraram em transe, os oito escolhidos da antiga América estavam unidos e prontos para o confronto, esperando que, no resto do mundo, os outros também estejam em seus lugares.
ㅤㅤ
ㅤㅤ III
ㅤㅤ
ㅤㅤ Trocávamos carícias e aconchegos desde o momento do primeiro beijo. Ângela se entregava a mim assim como eu cedia a cada encanto daquela moça de cachos dourados, como se fossem séculos de paixão contida agora extravasados em poucos minutos. No meio de mais um daqueles beijos longos e românticos, parou, deixando a cabeça pender um pouco para trás. Seus olhos azuis se reviraram nas órbitas, para meu desespero, e Ângela pareceu estar fora daquele corpo.
ㅤㅤ Segundos agonizantes, até que a minha amada voltou a si e seu olhar novamente se direcionou para o meu. Agora, ela estava com uma feição séria e preocupada na face.
ㅤㅤ - O que foi, Ângela?
ㅤㅤ - É chegada a hora de levá-lo para a realidade. - Ela falou. - Siga corajoso como sei que é. Pode se mostrar confuso nos primeiros momentos, mas todos vão precisar de sua ação, de sua liderança; toda ajuda é necessária. Você me promete que enfrentará, sem medo, aquilo que o fez tão mal?
ㅤㅤ Não entendendo tanto do que falava, apenas confirmei com a cabeça.
ㅤㅤ - É por isso que me apaixonei por você, mesmo visitando a tantos outros iludidos em seus mundos surreais. - Ela falou, seguindo um beijo e um abraço mais forte. - Estarei sempre ao seu lado durante o confronto, meu amor. Você, Hiroshi, lutará bravamente; e eu me orgulho por poder ter trazido a luz da verdade para você.
ㅤㅤ Agora, mesmo que tentasse dizer mais alguma coisa, não pude. As dunas do deserto infinito que era meu lar começaram a tremer com força, ao mesmo tempo em que o céu parecia rasgar-se para algo luminoso entrar naquele vácuo de vida. Me senti flutuando junto de minha Ângela, enquanto tudo a nossa volta parecia se destruir. Não, destruir não era a palavra certa, tudo em volta parecia se refazer em pura luz. Num momento em que não posso dizer qual é, senti que eu mesmo estava desaparecendo, me tornando parte daquela mágica situação. Senti meu corpo queimar e em seguida formigar. Estava, sim, desaparecendo, saindo daquele universo chato e solitário. E Ângela estava indo comigo. Fechei os olhos.

ㅤㅤ
ㅤㅤ IV
ㅤㅤ
ㅤㅤ Uma forte queimação invadiu sua nuca. Hiroshi, instintivamente, levou a mão até lá e encontrou algo metálico e quente preso à seu corpo. Segurou com força e arrancou, contendo a dor do desplugue. Caiu no chão um dispositivo eletrônico com faíscas saltando de dentro dele, mais parecia uma aranha mecânica, ainda parecia estar viva! Num ato de puro reflexo, disparou contra o bicho com a arma presa no pulso, um laser púrpuro disparou por comando mental contra o aracnídeo metálico, transformando-o em nada mais que sucata tecnológica. A luz vermelha, encontrada num painel ao centro do corpo minúsculo, apagou.
ㅤㅤ O descendente de japoneses olhou em volta, onde estava? A sala velha parecia estar abandonada fazia décadas. Caminhou até um espelho empoleirado e viu a si mesmo. Estava mais forte, mais musculoso do que se lembrava. Uma armadura que mesclava placas prateadas e negras cobria todo seu corpo, fazendo-o parecer um soldado. Olhou para o pulso, ali, um cano cilíndrico parecia estar acoplado à sua pele, passando por debaixo da armadura; fora aquele aparato que disparou o laser que dizimou a criaturinha no chão. Concentrou seu pensamento no item, e logo a arma modificou-se girando em torno de engrenagens que saltaram de seu pulso, até formar, então, algo semelhante a uma metralhadora giratória. Ouviu o chiado de mecanismos perto ao seu ouvido, fitou o espelho e encontrou sobre o ombro uma outra arma um canhão, talvez. O que ele havia se tornado? Deixou de ligar para seu corpo e concentrou-se na mente, nas lembranças e memórias. E, de súbito, todas elas começaram a invadir seus pensamentos de uma única vez. Ele cambaleou na sala velha e caiu sentado no sofá cheio de mofo.
ㅤㅤ
ㅤㅤ "As naves de formato cônico surgiram ao redor do globo, cobrindo bairros inteiros de cidades e metrópoles famosas de todo o mundo. Nenhum país tomou responsabilidade pelos aeromodelos, e a ONU convocou uma reunião de emergência para decidir o que será feito. Exércitos estão cercando os OVNIs, e o decreto de evacuação foi dado logo na primeira hora na maioria dos países.
ㅤㅤ A única manifestação feita pelas naves foram pequenos cilindros metálicos disparados por toda a cidade. Cientistas, Físicos e outros estudiosos já se reuniram em laboratórios de última tecnologia e estudam os artefatos; por hora, é informado que parece ser uma espécie de dispositivo eletrônico que armazena alguma sorte de itens dentro deles.
ㅤㅤ Mais informações serão dadas a qualquer momento.
ㅤㅤ Aqui é Lídia Carvalho, direto para o Noticiário Plantão.”

ㅤㅤ
ㅤㅤ Hiroshi urrou de dor, a cabeça parecia que ia explodir com tantas informações vindas tão rápido para dentro de sua mente. Pressionou-a com as mãos e fechou os olhos, contendo lágrimas sofridas.
ㅤㅤ
ㅤㅤ - Vamos, Hiro! Rápido!
ㅤㅤ - Calma! Calma, cara! - Hiroshi gritou com o colega de quarto, enquanto via as pessoas correndo pela estrada, deixando os carros e motos para trás no engarrafamento colossal formado na BR. Um grande acampamento do exército se encontrava a cerca de dois quilômetros dali, e podia ser avistado facilmente. Havia uma gigantesca tenda, da onde um estrondo devastador fazia crianças e pessoas com sensibilidade auditiva tamparem os ouvidos. O ministro de defesa fora bem claro: Todos deveriam evacuar para aquelas áreas militares o mais rápido possível. As cidades não eram mais pontos seguros, e os Extraterrestres eram inimigos. Não deviam confiar nas palavras mal traduzidas daqueles seres cinzentos de quatro pares de mãos.
ㅤㅤ - Que calma nada, mano! - Messias insistiu. - Tão falando que o mundo vai ser dominado por esses ETs loucos, os caras que chegaram lá na frente tão espalhando boatos que tem uma escavadeira gigante dentro da tenda e que a gente vai pra debaixo da terra. Não tem tempo pra você ficar com suas frescuragens agora, Hiro!
ㅤㅤ - Mas e se os bichos cinzas estiverem falando a verdade? E se eles vieram pra trazer o desenvolvimento? Eu acho que a gente poderia...
ㅤㅤ - Não, cara! Vamos seguir pra onde todo mundo tá indo!
ㅤㅤ Por pura insistência do amigo Messias, Hiroshi deixou de lado suas idéias malucas e seguiu com ele. Para aonde a esperança ainda tinha lar, para os braços da organização que agora comandava a população.

ㅤㅤ
ㅤㅤ Arfante, o nipônico começava a ligar os fatos e voltar à realidade. Lembrava-se da invasão na terra. Lembrava-se de seus antigos amigos. Lembrava-se de tudo, até que...
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ㅤㅤ "Esta é uma missão de reconhecimento de área. Vocês, voluntários, devem seguir a finco todas as nossas ordens! Sei que o calor os deixa desconfortáveis, mas devem se acostumar! Ficaremos abaixo da superfície, numa temperatura que os cinzentos não aguentam, o tempo que for necessário. Nossa equipe fará reconhecimento de área em uma antiga liga de túneis de esgoto vinte metros acima de onde estamos agora.
ㅤㅤ Lembrem-se: As aranhas metálicas são a coisa que devem evitar mais do que tudo! Elas sobem pelo seu corpo e se fixam na nuca, atrelando-se ao sistema nervoso com mecanismos avançados. Caso elas conseguirem o feito, pá! Vocês estão dominados pelos aliens e se tornam nossos inimigos. Eles estão em número muito reduzido em comparação a nós, precisam dos escravos mentais, dos Golens! Não dêem a eles a chance de dominar mais ainda nossa Terra! Adiante, Rebeldes! ”

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ㅤㅤ Lágrimas caíam dos olhos descendente nascido e criado em São Paulo. Lembrou-se, com amargura, de quão trágica terminou aquela missão de reconhecimento. Lembrou-se do exato momento em que seu fuzil de pólvora não conseguiu penetrar na proteção metálica do aracnídeo que subiu em seu corpo e o dominou, deixando sua alma vagar num universo paralelo e sem vida alguma, senão a dele.
ㅤㅤ Tentou conter a emoção e os sentimentos e fixou-se nas últimas lembranças que tivera. Ângela. Olhou para o lado e deixou sua mente e espírito acalmar, aos poucos, a figura linda de sua Amada se formou. Olhando para ele com um sorriso encantador. Estendeu o braço para tocá-la, mas os dedos do ex-golem trespassaram a forma etérea do espírito. Ângela era um fantasma, uma moça que já morreu; assim como outros milhões que foram dizimados no primeiro ano da invasão extraterrestre, espíritos que resolveram ajudar os que ainda habitavam a terra. Espíritos que formaram escolhidos para dizer-lhes de seus planos. De suas ousadias que agora mostravam-se efetivas.
ㅤㅤ Hiroshi lembrou-se da promessa feita a sua amada. Ele precisava lutar, lutar pelo seu planeta e pelos seus irmãos. Caminhou até a janela, e de lá observou vários outros ex-golens, todos livrando-se de suas aranhas dominadoras; todos acompanhados de figuras esboçadas e esbranquiçadas, seus fantasmas libertadores. O cenário era devastador, a cidade tinha prédios caindo aos pedaços e ruas abandonadas havia muitos anos; olhou para o horizonte e encontrou uma nave cônica pairando sobre a cidade, a algumas dezenas de quilômetros.
ㅤㅤ Voltou seu olhar para a rua. Dos bueiros, começavam a sair centenas de homens vestidos com pouca roupa e armas de fogo antigas. Saíam espantados no meio dos escravos mentais libertos que também não tinham muito em ordem os pensamentos e só agora começavam a se recordar de seus feitos antes de serem dominados. Hiroshi sentiu o espírito de Ângela tentar abraçá-lo por trás – sensação semelhante a um calafrio, e sua voz ecoou em seus ouvidos, terna e limpa. Todos vão precisar de sua ação.
ㅤㅤ O ex-golem saiu para a sacada do apartamento abandonado que era sua guarita, quando ainda servo dos cinzentos, e levantou o punho aos céus, enchendo os pulmões de ar para seu grito forte.
ㅤㅤ Ouviu alguns gritos de comando, e da janela pôde observar alguns líderes das tropas da resistência chamando todos para a luta. O ex-golem saiu para a sacada do apartamento abandonado que era sua guarita, quando ainda servo dos cinzentos, e levantou o punho aos céus, enchendo os pulmões de ar para soltar um forte grito de ânimo. Soldados da resistência e ex-golens se juntaram ao grito. Agora, com aquelas armas extraterrestres acopladas aos corpos de homens sãos, talvez pudessem contra os inimigos cinzentos.
Leia até o fim...

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