sábado, 14 de agosto de 2010

Olhos Vermelhos - Capítulo 4


ㅤㅤ IV
ㅤㅤ
ㅤㅤ Hiroshi colocou as últimas panelas no pequeno carrinho de metal. Como fora a primeira feira após o festival, o movimento não foi tanto, de modo que muita coisa havia sobrado para a viagem de volta que ele fazia. Seus pais ficariam, para coordenar a limpeza geral e para guardar os itens que ficavam no estabelecimento. Seu primo já estava ali, acocorado a frente da barraca esperando pela sua carona para casa. Levantou-se quando Hiroshi começou a empurrar o carrinho em direção ao estacionamento.
ㅤㅤ – Até que foi tranquilo hoje, né, Hideki?
ㅤㅤ – Pois é. - Hideki respondeu, quase num murmúrio, enquanto colocava os fones de ouvido. - Também, se hoje fosse corrido demais, eu não duvidaria de mais nada. Vão fazer feira amanhã?
ㅤㅤ – Não. Não é nosso dia.
ㅤㅤ O primo pareceu soltar um suspiro aliviado.
ㅤㅤ – Que bom. Assim posso terminar o joguinho que achei.
ㅤㅤ – Joguinho?
ㅤㅤ – É. Um de zumbis, espadas japonesas, tanques de guerra e garotas samurais quase sem roupa.
ㅤㅤ Os dois riram. Mas Hiro não duvidou que fosse verdade. Seu primo sempre estava jogando alguma coisa do tipo. Da última vez, o jogo de tiro não poupava nem mesmo pobres velhinhas nas ruas. Quem dirá o que acontece aos pobres zumbis?
ㅤㅤ Viraram para a entrada do estacionamento reduzindo a velocidade do carrinho e das passadas. O estacionamento era sempre o mesmo, grande e espaçoso. Entretanto, mesmo com todas as reformas, ele ainda continuava com pedrinhas e terra aqui em algumas partes, o que dificultava a passagem com o velho carrinho de aço.
ㅤㅤ – Epa. - Deixou escapar Hiroshi, quase sem querer.
ㅤㅤ – O que? - E acompanhou o olhar do primo.
ㅤㅤ Ali, escorada sobre a D20 esta Melissa, encolhida contra o frio. Hideki demorou alguns segundos calado, observando os dois, antes de recuar um passo, enquanto cutucava de leve Hiroshi com o cotovelo e um sorriso curto na face.
ㅤㅤ – Vai lá. Volto em dez minutos.
ㅤㅤ – O que!?
ㅤㅤ – Comprar fones novos. Fones!
ㅤㅤ Mas já dizia a desculpa esfarrapada longe, quase virando para dentro do corredor central.
ㅤㅤ Com uma expressão quase desentedida, Hiro meneou a cabeça negativamente por alguns segundos, observando Hideki, para depois voltar-se para a amiga, caminhando até ela.
ㅤㅤ – Pensei que já tinha ido embora, Lissa.
ㅤㅤ – Pois é. - A garota falou, sorrindo para ele, mesmo que o frio do descampado gelasse até seus ossos. - É que precisava falar mais um negócio contigo. E... é um pouco mais sério. Não dava pra falar na hora do movimento com toda aquela correria.
ㅤㅤ – Bom... - E escorou-se no capô, ao lado dela. - Pode falar agora.
ㅤㅤ Melissa pareceu pensar antes de falar. Fitou o mar de carros que era aquele lugar, como se buscasse alguma coragem, mas só a conseguiu quando direcionou seu olhar para Hiroshi mais uma vez. Ele fez um leve aceno de incentivo a ela com a cabeça, e ela retribuiu, aconchegando-se ao lado dele.
ㅤㅤ – Lembra, Hiro, de uns nove anos atrás? Naquele incidente no Okinawa...
ㅤㅤ – No clube? Do camarim e tudo mais?
ㅤㅤ – É.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Hiroshi recordava-se, até bem. Fora naquela época que os dois começaram a ficar um pouco mais próximos que simples colegas. Melissa fazia treinos de dança típica de Okinawa, e Hiroshi, na época aprendia Japonês por lá. Vários boatos entre os frequentadores do clube envolviam o velho camarim que ficava atrás do palco do salão. Tantas e tantas lendas de fantasmas, aparições e sons de instrumentos tocando; quando não havia nada por lá. Fora exatamente isso que atingira em cheio Melissa. Que na época, já tinha a capacidade sensitiva que possuía até atualmente.
ㅤㅤ Ninguém acreditava nela, quando dizia conversar com fantasmas do local. Ver coisas estranhas e vultos, até ia. Mas... conversar? Os próprios pais de Melissa pensaram em enviá-la para o psicólogo, conferir o que estava errado. Mas fora nesse dia que Hiroshi foi conversar com ela.
ㅤㅤ Ela estava sentada na borda da escada do clube, que levava para o Salão e para o campo de futebol do estabelecimento nipônico, quando Hiroshi saiu da aula, com os cadernos debaixo do braço. Com o canto dos olhos, achou-a ali sentada. Ela levantou o olhar para responder ao aceno dele, e o garoto teria simplesmente ido embora, se não fosse pela face triste e de injustiçada que a pequena Melissa fazia. Soltou um suspiro de leve, e andou até ela.
ㅤㅤ – Que foi, Lili? - O apelido dela na época.
ㅤㅤ A garota levantou o olhar para Hiroshi, mas meneou a cabeça negativamente.
ㅤㅤ – Nada não, Hiro.
ㅤㅤ – Tá, e eu sou a mulher do padre. - Sentou-se ao lado dela. - Diz aí, qual o problema?
ㅤㅤ Demorou um pouco para falar, pensando se deveria. Mas então, finalmente olhou-a.
ㅤㅤ – Promete acreditar em mim.
ㅤㅤ – Eu tento.
ㅤㅤ Ela esboçou um sorriso.
ㅤㅤ – Acredita em fantasmas?
ㅤㅤ – Claro! - E abriu um sorrisão. Era provável que qualquer garoto naquela idade fosse, obrigatoriamente, um fanático pelo sobrenatural. Alienado no mundo de Power Rangers ou algum desenho japonês aleatório. E Hiroshi não era exceção. Mas, sempre se interessou bastante pelo assunto. Ou pelo menos, fora ele que sumiu numa noite porque queria provar aos amigos que poderia dormir uma noite no cemitério. Voltou para casa depois de quase ser comido pelo carrocho que cuidava do lugar.
ㅤㅤ – Mesmo mesmo?
ㅤㅤ – Sim!
ㅤㅤ E ela pareceu hesitar mais alguns instantes.
ㅤㅤ – Vamos, Lili, conta logo. Não vou caçoar de você!
ㅤㅤ – ... - E respirou fundo, a pequena. - Tem um fantasma no camarim do palco.
ㅤㅤ – Hah! Lili, tanto suspense pra isso!?
ㅤㅤ – É... Mas ele falou comigo.
ㅤㅤ – Como é? - E voltou a concentrar-se na menina.
ㅤㅤ – Pediu minha ajuda, fazer um favor a ele.
ㅤㅤ – Ele?
ㅤㅤ – É um velhinho. Talvez fora um dos presidentes do clube anos atrás.
ㅤㅤ – Entendo... - E ele sentou-se pensando mais no que ela dissera. - E qual foi o pedido dele?
ㅤㅤ – Hiro, você sabe o que tem debaixo do palco?
ㅤㅤ
ㅤㅤ A entrada lateral do palco tinha uma pequena abertura para o espaço oco que havia abaixo das velhas madeiras do clube. Era escuro, e ficava atrás das grandes tábuas e cavaletes que eram usadas para fazer as gigantescas mesas nos dias de festa. Hiroshi olhou para o pequeno vão entre as tralhas com uma cara fechada. Seria um belo problema entrar ali no meio, e aquele lugar parecia mais assustador que o próprio cemitério. Deu um passo hesitante a frente e virou-se para trás, encarando a garota.
ㅤㅤ – É só pegar, né?
ㅤㅤ – Sim.
ㅤㅤ – Tá, já volto. - E começou a passar uma perna pela pequena abertura entre as tralhas antigas, quando a menina segurou-o pelo braço. Voltou o olhar para ela, para achar um sorriso.
ㅤㅤ – Obrigada, Hiro.
ㅤㅤ – Tá. Tá.
ㅤㅤ Ele falou e passou o resto do corpo. Caiu sobre alguns cavaletes ainda mais antigos e olhou em volta. Alguns pequenos ratos e outras movimentações ocorreram quando ele deu um passo para dentro do espaço vazio abaixo do palco. Poeira levantava a cada passo que ele dava, e dali ele podia ver como aquele palco era perigosamente velho e carente de reformas. Chegou ao meio do espaço, feliz por Melissa ter ligado as luzes do palco, para que um pouco dela passasse entre as madeiras do assoalho, entrando lá.
ㅤㅤ Se virando com a pouca iluminação, ele chegou onde pretendia. Ao fundo do local, havia uma pequena escada que levava a uma porta velha de madeira, que parecia não ser aberta há décadas. Definitivamente era mais assustador que um simples cemitério, pensou o garoto. Avançou em passos vacilantes e desceu a escada. A maçaneta da porta não funcionava, de modo que ele precisou dar pequenos empurrões na porta para ela ceder a pressão e mover-se para trás. Soltou-se um rangido alto e ela foi num solavanco aberta, fazendo Hiroshi cair com tudo no chão antigo.
ㅤㅤ Já ia levantar-se novamente, quando um calafrio passou por sua espinha, algo havia passado sobre sua perna. Virou o olhar rapidamente, para se tranquilizar vendo o rato passar, voltando para as rachaduras do lugar. Levantou e olhou em volta. O local era cheio de velhas estantes de madeira, que pareciam carcomidas de cupim a ponto de desmoronarem com um simples toque. Deu passos vacilantes adiante, vendo o conteúdo das prateleiras mudar. Livros antigos, papeladas e outras coisas que nunca imaginaria encontrar por lá, como um velho engradado de Coca-cola. Mas nada daquilo era o que procurava.
ㅤㅤ – Um Sanshin. - Dissera a menina. Um velho Sanshin que pertencia ao falecido senhor. E que ele pede que seja retirado do esquecimento.
ㅤㅤ A última coluna de estantes estava recheada de velhos livros e vários panos brancos encardidos, protegendo os diversos conteúdos maiores. Hiroshi segurou o pano de um deles e puxou com tudo, revelando ali não um, mas vários Sanshin. O instrumento de 3 cordas okinawano, era famoso entre os descendentes, ainda mais os que participavam das atividades do clube. Passou a mão por alguns deles, retirando o pó de cima deles.
ㅤㅤ Ótimo, e qual era o que a alma pedia que fosse retirada? Fazia realmente diferença? Passou os olhos pelos instrumentos e resolveu pegar o menos acabado. Retirou-o de cima de outros dois, que já pareciam ter virado comida de cupim e ratos. A luz, escassa que entrava até ali, era só suficiente para que ele pudesse ter uma vaga visão de como eram os Sanshin. Virou-se na direção da porta e ia já sair. Quando ela violentamente fechou-se sozinha, deixando-o preso ali.
ㅤㅤ Não havia correntes de ar e nem alavancas para a porta fechar-se daquela maneira. Os pelos de Hiroshi se eriçaram todos, de excitação e medo, enquanto ele olhava para os lados assustado. Afinal, o que fizera de errado? Lógico! Porque ainda se perguntava. Deixou o instrumento numa estante qualquer e voltara a última parte do pequeno depósito abandonado. Agora, um leve e sobrenatural frio rondava o local em forma de brisas que não eram para existir ali, retirando calafrios do garoto a cada segundo, enquanto ele revirava livros e instrumentos velhos.
ㅤㅤ Estava usando a luz do celular para ajudá-lo na busca. Mas na verdade, não sabia o que realmente procurava. Afinal, ele não sabia quem era o fantasma, nem se seu velho Sanshin carregava alguma marca que o destacasse dos demais. Demorou alguns minutos na sua busca ilógica, vez ou outra escutando Melissa chamá-la, para ele responder aos berros, tranquilizando-a. Enfim, afundou suas mãos sobre uma pilha velha de acessórios e kimonos japoneses rasgados dentro de uma grande caixa de papelão desgastada e rasgada que estava no fundo da prateleira, puxando para fora tudo que via a frente. Até que finalmente, um resultado. Suas mãos agarraram algo que parecia uma maleta. Comprida e estreita. Segurou-a com ambas as mãos e o puxou para cima , deixando cair sobre seu corpo todo o pó acumulado. Enfim, deixou-a de lado e observou a caixa. Era aquilo. Tinha certeza. Pousou as mãos sobre os lacres e abriu.
ㅤㅤ Um pequeno vulto negro saltou de dentro da caixa sobre seu corpo assim que a abertura foi suficiente para sua passagem. Hiroshi afastou-se num pulo, debatendo-se. O pequeno escorpião foi jogado para um canto, claramente nervoso. O coração ainda estava disparado frente a surpresa de última hora. Olhou a maleta e encontrou a rachadura por onde ele havia entrado, e logo depois, focou-se no conteúdo, apertando um botão aleatório do celular para que houvesse mais luz ali.
ㅤㅤ O instrumento era provavelmente o menos desgastado de todos, graças a proteção da maleta. Duas cortas permaneciam intactas, enquanto a terceira estava arrebentada e estirada para os dois lados. O cavalete de madeira que sustentava as cordas também parecia podre, assim como os pequenos chifres de boi entalhados que eram usados como palhetas. Mas estava ali. Fechou a maleta e dirigiu-se a porta, que, curiosamente, abriu-se com facilidade.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Melissa pulou em cima dele assim que saiu do vão entre as madeiras, sujo e empoeirado. Ele entregou o instrumento a ela e deu a dica que ela pedisse ao simpático seu Jorge que o arrumasse. Ela sorriu, concordando, e logo em seguida virou-se para o palco. Olhando a entrada do camarim ao fundo.
ㅤㅤ – Acho que agora ele não está mais aqui.
ㅤㅤ Disse, finalmente.
ㅤㅤ
ㅤㅤ – Está acontecendo de novo. Alias, sempre acontecia, mas eu não dava muita bola e logo paravam de incomodar. Mas esse...
ㅤㅤ Hiroshi suspirou, olhando-a.
ㅤㅤ – Qual o galho?
ㅤㅤ – Ele sempre clama por ajuda quando eu passo na frente do lugar. Mas não diz mais nada, só pede para eu tirá-lo de lá, mas não diz o que deseja em troca. E... eu não tenho coragem de entrar lá.
ㅤㅤ – Porque?
ㅤㅤ – Não sei... Tem algo estranho naquele lugar. Algo que parece realmente perigoso.
ㅤㅤ – Não é o fantasma?
ㅤㅤ – Não sei. Talvez seja. Mas, eu não tenho idéia do que seja. Você não entra lá comigo, Hiro?
ㅤㅤ – Claro. Onde é?
ㅤㅤ – É aqui do lado, na Estação Ferroviária. Passo por aqui direto, já que moro logo ali e tenho de pegar ônibus na Mato Grosso.
ㅤㅤ Subitamente, Hiroshi lembrou-se no flash púrpuro que vira outro dia. Sentiu as pernas tremerem de leve. Aquilo não era um simples fantasma mais uma vez, era?
ㅤㅤ
ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
ㅤㅤ
ㅤㅤ – Azaias? - Disse o velho, no telefone.
ㅤㅤ – É você, Vicente?
ㅤㅤ – Sim. O meu garoto descobriu do paradeiro de Tobias e do que ele tá armando.
ㅤㅤ – Sabia que ele estava aprontando algo. Minha fonte era de confiança.
ㅤㅤ – Sei, sei. Mas então, ele realmente está fazendo algo além do que deveria. Estamos indo para a cidade onde ele está. Temos de acabar com os planos dele, antes que prejudique nossos projetos também.
ㅤㅤ – Certo. Vamos quando?
ㅤㅤ – Semana que vem.
ㅤㅤ – Tudo bem. Vou cancelar as sessões de espiritismo barato. Por sorte, nenhum cliente maior veio me pedir hora marcada. Levo meus livros, certo?
ㅤㅤ – Claro. Sem eles tu nem precisa ir.
ㅤㅤ – Vou estar por aí em dois dias.
ㅤㅤ – Obrigado, Azaias. Dimitri também vai, Marco foi chamar ele na favela.
ㅤㅤ – Tudo bem. Até. - O negro desligou o telefone, ajustando o terno da preto que usava. A barba dele estava grande, ajudava a impressionar o público alheio. Afinal de contas, os seus cultos normais eram como grande parte da magia que faziam por aí: Nascia e morria nos sentimentos e medos das pessoas. Mas nem todas eram assim, seus velhos livros e a época em que era jovem comprovava isto. Beijou o anel com a pedra brilhante e transparente e saiu da saleta.

2 comentários:

  1. hmmmmmmmmm
    Essa história cheia de mistério e revelações está se tornando cada vez mais atraente!
    De repente, a leitura desceu como um bolo quentinho acompanhado de um copo de leite gelado *-* muito prazeroso!
    Seguindo em frente... :)

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  2. Ah, acabouuu!! kkkkk
    Esse foi o ultimo post :/
    Então eu espero pelo próximo! :D
    Vou por seu link no meu blog, porque essa sua história está um verdadeiro primor!^^
    Estou adorando sua escrita...
    Abrç!

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