domingo, 8 de agosto de 2010

Olhos Vermelhos - Capítulo 1



ㅤㅤ I
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ㅤㅤ Hiroshi folgou o corpo inteiro na cama, relaxado. Já havia se passado metade da noite, e ele continuava em claro. O corpo estava dolorido por inteiro; com pernas bambas, braços ardidos e pescoço tenso. Só pensava em dormir, mas ainda não poderia, ainda havia trabalho a ser feito.
ㅤㅤ O Nono festival do Sobá ocorreu como esperado para sua família: Muita correria, muito sobá a se vender, e muito lucro. A comida típica de Okinawa, pequena ilha do Japão que contém cultura diferenciada do resto do país, ganhou fama em Campo Grande e região. Tudo graças à Feira Central. Que já estava em sua nova estrutura por mais de dez anos, deixara de ser uma simples feira de rua para ter toda a capacidade de ser o ponto turístico urbano mais forte do estado. Aquele tinha sido o último dia da festa, e agora ele esperava o telefonema dos pais, para sair com a caminhonete de casa e carregar as tralhas da barraca de volta. Os dois velhos nipônicos estavam felizes com os resultados.
ㅤㅤ Adormeceu por poucos minutos. O suficiente para fazer o tempo voar. Logo o celular tocou.
ㅤㅤ – Oi. - Respondeu, ainda sonolento.
ㅤㅤ – Pode vir, já. Está quase tudo pronto por aqui. - O pai respondeu no telefone.
ㅤㅤ – Posso entrar com a caminhonete dentro da feira?
ㅤㅤ – Sim, já deixaram entrar.
ㅤㅤ – Tá, dez minutos e apareço aí.
ㅤㅤ Desligou o telefone e levantou-se de uma vez, caso contrário não teria forças. O jaleco com o qual trabalhara estava jogado num canto, e ele tinha voltado à casa apenas para deixar o primo na casa dele, seu vizinho. Os dois já trabalhavam juntos na barraca da feira já fazia três anos. Os funcionários mais antigos, visto que nunca se encontravam atendentes corretos. Hideki, o primo, provavelmente já estaria no décimo-quinto sono, enquanto Hiroshi ainda tinha de esperar os pais, para voltar mais uma vez.
ㅤㅤ Ligou a D20 e saiu, ainda sonolento. O filho de feirantes já tinha se acostumado com aquela vida, desde que desistira oficialmente de tentar entrar na faculdade, os pais pediram para ele começar a tomar responsabilidades com o negócio da família. Completaria vinte anos ainda naquele bimestre, mas isso não lhe trazia nenhuma perspectiva melhor de vida. Só pensava que poderia assumir a barraca, dali a algum tempo, e que conseguiria viver assim.
ㅤㅤ Virou a esquina e entrou na 14 de Julho, agora era só seguir reto. Seus olhos passaram batido pelas lojas fechadas do centro da cidade. Vendo de relance a academia onde treinara. Treinar. Esboçou um sorriso lembrando-se dos treinos de karate. Afinal de contas, aquilo talvez fosse a única coisa que lhe proporcionasse diversão. Havia treinado karate por 13 anos, mas tivera de parar para se dedicar aos negócios da família. Uma pena para ele, que já tinha a faixa preta.
ㅤㅤ Passou a avenida Mato Grosso, e um minuto depois já estava virando para entrar dentro da feira. Acenou para o seu Antônio, guarda-chefe do local e passou com a caminhonete pelo pequeno quebra-molas. Parou em frente a barraca e desceu, ajeitando o cabelo desarrumado. YAMADA SOBÁ, dizia a placa. Sua família não era tão tradicional na feira quanto os Katsuren, que foram os pioneiros a vender sobá ali, mas já tinham uma certa fama, mesmo que eles não fossem de Okinawa, a comida era gostosa.
ㅤㅤ – Veio rápido hoje. Caiu da cama? - A Senhora Yumi, sua mãe, brincou, ao passar por ele com algumas caixas com equipamentos eletrônicos.
ㅤㅤ – Da próxima vez enrolo um pouco, se a senhorita quiser. - Hiroshi respondeu no mesmo tom brincalhão.
ㅤㅤ – Nem pense nisso. - Veio agora a voz do pai, que passava carregando uma caixa com alguns poucos refrigerantes que restaram do festival. O Senhor Hideo deixou o peso na carroceria e voltou, postando-se ao lado do filho. - Vamos, vamos! Quero dormir porque tenho que acordar cedo amanhã. E você vai junto, o festival acabou mas a feira ainda continua.
ㅤㅤ Hiroshi soltou um claro suspiro com a dureza do pai e virou-se para a barraca, para ajudar Carlos a carregar as coisas. O churrasqueiro contratado pela família japonesa era o funcionário que mais se adaptara à rotina longa e cansativa, e era – com exceção dos primos Yamada - o mais antigo a trabalhar na barraca. Moreno, baixinho e carrancudo; ajudava Hiroshi com algumas caixas de isopor que carregavam restos de ingredientes.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Vinte minutos depois e Hiroshi partiu com a D20. Yumi, sua mãe, dormia tranquilamente no banco de trás. A valente mulher havia trabalhado por 6 dias seguidos, dormindo pouco mais de 3 horas por noite. Não era de se surpreender que estivesse tão cansada. Mas seu pai continuava acordado, inflexível, ao seu lado. Passou por toda a extensão da feira, até a saída que dava para a avenida Calógeras.
ㅤㅤ Já estava a se distanciar da feira, quando seus olhos se pregaram na velha estação ferroviária. O prédio já havia sido usado para diversas outras coisas, mas nunca por muito tempo. Da última vez, era um posto da Polícia Militar, mas, devido a uma série de coisas estranhas que aconteciam ali, fora abandonado novamente. Agora estava escura como sempre esteve, com uma vidraça quebrada e o ar sombrio de sempre. Hiroshi sempre sentia o mesmo arrepio ao passar por ali.
ㅤㅤ E, naquela noite, por um segundo, jurou ter visto uma luz púrpura piscar lá dentro.
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ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤ ~
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ㅤㅤ Carlos finalmente fora liberado. Morava longe dali, com certeza só chegaria na sua casa depois das quatro da manhã. Mas estava satisfeito com os dias consecutivos de trabalho. Pudera juntar todo o dinheiro que almejava, para dar a entrada numa moto para ele. Usada, bem velhinha, mas para ele. Se preocuparia em tira a carteira depois, o que importava é que a teria.
ㅤㅤ Tinha de ir até a praça para tomar o último corujão e agora cruzava os paralelepípedos que cobriam a saída da Feira pela Calógeras. Ouvia o som alto do seu celular pelos fones vagabundos, mas pelo menos não ouvia sertanejo. O que era extremamente raro naquela cidade. A música do Planet Hemp cobria todo e qualquer som, e ele andava tranquilo, recebendo o frio ar da madrugada na face.
ㅤㅤ
ㅤㅤ Um estalo deu-se perto dele, e ele levantou a perna direita por impulso, saindo do transe da banda de rap rock. Seu olhar acostumou-se a pouca claridade e ele viu-se diante da entrada da estação ferroviária. Um pequeno buraco na vidraça estava bem ao lado de sua perna. Teria o vidro se quebrado naquele momento? Exatamente quando passava?
ㅤㅤ Movido pela curiosidade de adulto recém-saído da adolescência, abaixou a cabeça perto da abertura que dava para o breu da estação assombrada. No exato instante em que ia se posicionar melhor para ver lá dentro, um vulto saltou o vidro em sua direção.
ㅤㅤ Carlos pulou para trás no puro reflexo, escapando daquilo que tentava lhe agarrar. Tirou os fones dos ouvidos e ficou alguns segundos imóvel, apenas olhando o buraco na vidraça. Um ganido vinha ali de dentro. Algo que ele já vira morcegos fazerem, mas muito mais alto e raivoso. Deu um passo a frente, hesitante e corajoso ao mesmo tempo. Novamente se abaixou para olhar pela vidraça, agora dando uma distância maior do buraco. Assim que inclinou sua coluna a ponto de quase abaixar-se, dois pontos vermelhos e luminosos saltaram na escuridão do interior do velho prédio, junto de um rosnar algo e ameaçador.
ㅤㅤ Mais uma vez, o churrasqueiro saltou para trás, agora benzendo-se enquanto corria em direção a praça. Só faltava quinze minutos para seu ônibus sair. E ele não queria dormir fora de casa.

2 comentários:

  1. você escreve contos muito bem!
    todos são bem descritivos e têm diversos detalhes.
    vai escrever o capítulo 2, né?
    aguardarei!

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  2. Olá!
    Enquanto lia sua história, fiquei pensando aondo ela daria... Parecia cena de filme, com todos os detalhes que normalmente se passa despercebido numa cena só, e que eu até me surpreendo quando vejo-os descritos num texto!
    Como o detalhe da mãe carregando uma caixa com aparelhos eletronicos! Ou o pai com uma carregando as sobras dos refirgerantes! são coisas que não fazem um sentindo grande na história mas que te puxam pro ambiente e o momento.
    Tive a impressão de que isso dá um close no momento em si, e não faz dele penas uma passagem para o ponto chave da história ( passando despercebido).
    São aspectos que eu não desenvolvi na escrita, acho que quando escrevo sobressalto mais o tema, mas não a escrita em si, a riqueza da descrição...Ela te suga para a história.

    E tive a impressão que voce cruzou várias vezes os locais descritos, imaginando cada cena que ocorreria ali... rsrs

    Não esperava um desnrolar mais misterioso!! Porque tava tão cotidiano o tema que achei que ia acabar nesse ritimo mesmo!
    Fiquei curiosa, capitulo 2? ou o fim é mesmo o mistério?

    Obrigada pelo comentário! Quando deixam comentário grandes assim fico muito feliz *_* nem que seja pra esculachar kk

    Abraço! Estarei por aqui! :D
    ventosemrumo.blogspot.com

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