sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Moeda

ㅤㅤ I

ㅤㅤ - Thomas? Thomas? Pode me ouvir, Thomas? - A voz desesperada vinha destorcida e longínqua. - Thomas, caso esteja escutando a minha voz, tente pressionar minha mão. Você a sente, não?
ㅤㅤ Pseudoconsciente e perdido, decidiu seguir os pedidos da voz. Mandou o comando, não soube se chegou ao seu braço, nem ao menos sabia se tinha braço. Não podia sentir muita coisa além do mundo rodando a sua volta, no escuro. Ouviu novamente a voz, mas agora, parecia mais distante, incompreensível. E, como se – com passadas rápidas e desesperadas – se afastasse, Thomas não pôde mais sentir seu interlocutor. O inconsciente o abraçou e ele decidiu que estava cansado e era hora de relaxar. Até quando? Para sempre? Ninguém sabia, nem mesmo Ele. Cara ou coroa?

ㅤㅤ II

ㅤㅤ Piscou, a cena mudou bem na sua frente, e agora o jovem Thomas não se lembrava de nada. Estava sentado numa velha cadeira de madeira, uma lâmpada fraca e falha ficava oscilando acima dele, iluminando apenas um círculo mínimo de luz em volta de si. Não tinha a mínima idéia do porquê de estar ali; mas também pudera, encontrava-se num paradoxo mental gigantesco: Seu passado parecia ter ido por ralo abaixo, só sabia seu nome e quiça sua idade; o local onde estava, que parecia um infinito de escuridão com o centro luminoso onde se postava, também lhe era completamente imemorável. Mas, ao mesmo tempo, ele sabia que devia estar ali. Sabia que era para estar ali e que aquilo era sua vontade.
ㅤㅤ Todavia, qual era a sua vontade? O que diabos um garoto de quinze anos poderia ter de força de vontade para lhe mover até ali, sem memórias ou idéia do que fazia? Conforme sua mente ia adaptando-se ao local onde estava, o raciocínio voltara e Thomas começou a tentar deduzir alguma coisa. Mas nada ajudou. Estava nu; de roupas, de passado, de pensamentos lógicos. A cadeira dura e chata começou a incomodar-lhe a posição, ótimo motivo para levantar e explorar aquele lugar surreal. Apoiou suas mãos nas laterais de seu encosto e levantou-se.
ㅤㅤ - Você veio! - A voz tão súbita fez Thomas jogar-se com tudo na cadeira, caindo para trás junto dela. Tinha sido um som alegre, uma exclamativa animada e feliz, alguém o esperava ali. O jovem levantou-se, hesitante e desnorteado pela surpreendente nova presença.
ㅤㅤ - Quem está aí? - Disse, a voz falha.
ㅤㅤ - Ora, não se lembra de mim? - E antes que o garoto pudesse responder, a voz complementou. - É claro que não se lembra! É impossível para alguém de Lá, lembrar-se de algo quando vem para Cá. Guarde suas dúvidas, Thomas, não quero ficar respondendo questionamentos por tempo demais. Não que tenhamos um limite de tempo para falarmos, Cá o tempo não existe!
ㅤㅤ Seja lá quem fosse a pessoa detentora da voz, ela parecia emanar por todo o local. Não como caixas de som artificialmente transmissoras; era pura! Dizia e parecia ser onipresente a cada palavra nova que esbanjava para o menino!
ㅤㅤ - Mas eu...
ㅤㅤ - Certo! Certo! Tudo bem, responderei apenas três perguntas suas!
ㅤㅤ - Sério?
ㅤㅤ - Duas!
ㅤㅤ - Mas eu..
ㅤㅤ - Certo! Certo! Tudo bem, responderei apenas três perguntas suas!
ㅤㅤ - Hã?
ㅤㅤ - Duas!
ㅤㅤ - Você está me...
ㅤㅤ - Faça suas perguntas, Thomas! - A voz disse em tom terminal, quebrando com a tranquilidade e vivacidade com a qual falava até o momento. - Não quer me ver nervoso, sabe como é quando estou nervoso.

ㅤㅤ Arrepios subiram a coluna do garoto, que instintivamente encolheu-se com os ombros para frente, em posição quase fetal. Pôs os pés sobre a cadeira de madeira e abraçou os joelhos com os braços finos e alongados. Algo naquela voz lhe parecia familiar, familiar e extremamente bipolar; quem sabe não conhecesse sua detentora, no fim das contas. Olhou em volta, na tentativa de achar o interlocutor para o qual direcionar suas milhares de dúvidas, sem sucesso. Vacilou na primeira tentativa, mas na segunda, a voz saiu firme e alta.
ㅤㅤ - Onde estou?
ㅤㅤ - está! - Disse, voltando ao tom normal.
ㅤㅤ - Mas onde é ?
ㅤㅤ - Ora, é !
ㅤㅤ - Você não está colaborando!
ㅤㅤ - E você só tem uma última pergunta!
ㅤㅤ - Mas eu...
ㅤㅤ - Só uma pergunta, Thomas! Vamos! Vamos! Esta conversa está ficando chata!
ㅤㅤ - Certo, então, minha última pergunta. - Thomas virou o olhar para o lado, instintivamente. - Quem é você?
ㅤㅤ - Eu sou Eu! - E antes que o menino pudesse novamente contestar as resposta da voz amigável, ela completou. - Então, como está se sentindo agora, Thomas?
ㅤㅤ - Estou... Perdido. Não sei de nada, nem mesmo lembro onde moro e quem são meus pais!
ㅤㅤ Thomas ouviu um aparente suspiro.
ㅤㅤ - Hah, menino! E eu que pensava que sua resposta seria ao menos um pouco mais peculiar. Acho, realmente, que falho sempre que tento me comunicar com vocês, vocês de . - A voz pausou, como se procurasse palavras. - Será que não tem um mínimo senso de criatividade!? Ora, tantos que já sentaram nesta sua cadeira de madeira, e nenhum veio com uma novidade. O cérebro humano tem inimagináveis capacidades, atinge o ecstasy facilmente e níveis de hormônios pipocam e afloram; e, mesmo assim, quando se vêem num ponto enigmático e misterioso, tudo o que fazem é se recolher ao medo detestável!

ㅤㅤ A voz se calou, como se parecesse querer ouvir uma resposta de Thomas. Mas o menino estava ocupado demais tentando tragar algo à tona. Qualquer coisa que pudesse lhe dizer como chegara ali, qualquer correlação dEle com o resto da sua vida perdida no passado. Sim, já tivera conversas com aquele sujeito, a nostálgica sensação de Dejàvú inundou sua mente e imagens começaram a se formar, aos poucos, tímidas e singelas.
ㅤㅤ - Se atém ao passado e ignora a minha voz. - A nova fala dEle o tirou do transe temporal no qual quase entrou; agora melódico, triste. - É realmente preciso do passado para se prender a uma existência, Thomas? Não, logo você, que tanto disse para mim como queria deixar tudo para trás.
ㅤㅤ - Eu disse?
ㅤㅤ - Disse! - Gritou Ele, num início de choro. - Foi assim que falou comigo pela primeira vez, jovem, numa súplica para que o mundo real se desfizesse! Para que o surreal tomasse conta de você e para que sua vida fosse mais do que aquele básico.
ㅤㅤ - Eu... - Imagens vinham a mente. Fracas, vacilantes. - Eu não me lembro de nossas conversas.
ㅤㅤ - Você não lembra, você queria esquecer tudo! E agora... Agora que você... - E a rouquidão da voz, quase imperceptível, subiu a um extremo dela tornar-se um bestial rugido. - ...Quer tudo de volta!? Joga toda sua ideologia fora como lixo!? Hah, Thomas, eu deveria agarrá-lo pelos braços e puxá-lo até que se dividisse em dois! Deveria espremer sua cabeça para que seus olhos e seus dentes saltassem fora! Deveria ir e vir na ausência do tempo, causando as mais diversas torturas para seu material casulo!
ㅤㅤ Quentura, sentiu a sua pele esquentar-se na parte das pernas. Urinara-se de medo, o jovem e rebelde Thomas. A voz tão multifacetada lhe causava cada vez mais imagens indo e vindo, podia finalmente localizar-se no passado. Sabia de faces e nomes, mas nada lhe agradava. Nada lhe era tão bom quanto queria. Sim! Ele queria por mais, queria por algo diferente de tudo e todos. Foi aí que...
ㅤㅤ - Foi aí que você me conheceu, Thomas. - Ele dissera, como se a mente do garoto fosse um livro aberto para sua consulta. Agora, tinha um tom calmo e leve. - Foram horas de ótimas conversas sobre um mundo novo, um mundo onde os tabus de sua existência fossem quebrados e as leis do universo fossem inversas ou nulas. Hah, Thomas! Como eu gostava do tempo que gastamos juntos! Houve época que sua voz era tão encantadora aos meus sentidos que eu mal esperava pelo seu chamado, que te visitava, que ia até , vê-lo em sonho. Vinha lhe dar meu amado “olá” ao qual tão bem você me respondia. E, aos poucos, meu jovem garoto, fui pensando que você poderia ser diferente. Que, quando finalmente viesse à este mundo, achasse a companhia ideal para mim.
ㅤㅤ - ... - O garoto manteve-se calado.
ㅤㅤ - Mas vejo que estou enganado, Thomas, não estou? Parece-me que novamente as ações humanas foram simples gestos hipócritas e manipuladores, persuasivos e cruéis, malévolos e vazios! - O tom melódico. - Vejo, na minha frente, neste vínculo, agora, apenas alguém que mija nas calças frente a presença de alguém a quem, antes, sentia excitação e ereção! Vamos, diga, Thomas! Diga com todas as palavras o quanto sua covardia me posta como idiota!
ㅤㅤ - Eu...

ㅤㅤ De repente, Thomas sentiu-se sozinho na escuridão. Como se a presença do ser que falava consigo simplesmente desaparecesse. E ele pôde sentir como a falta dela era terrível, o coração murchou num mundo onde agora mais nada existia. De repente, os pais que tanto lhe enchiam de cuidados miseráveis pareceram caridosos. De repente, as notas na escola pareceram castigo infantil frente àquilo. De repente, teve vontade de voltar à sua realidade. De deixar para trás aquele seu último ato de bruxaria, no qual ateou fogo no seu próprio corpo; convencido pela melódica voz dEle – sua primeira e única invocação sobrenatural.
ㅤㅤ O escuro da sala mudou de súbito, chamas saltaram de todos os cantos e o chão de concreto tornou-se rochoso e brasil, a iluminação fosca foi trocada por um céu escuro-vermelho que saltava em trovões malévolos e risadas rústicas. Vulcões ao longe faziam saltar lava e fumaça negra para todos os lados, e Thomas acuou-se ao nada, caindo nu sobre a rocha. As nuvens vivas começaram a tomar forma no céu, até uma arrebatadora e cruel face cortada surgir primitivamente acima de sua cabeça.
ㅤㅤ - Sua voz me dá nojo! THOMAS! - Gritou como trovão, Ele. - Pois saiba que agora, tudo o que me guardo a ti é raiva! Raiva e rancor! Explodo em terror e medo na sua mente, deixo que seu corpo sinta suas penas devidas! - Conforme falava, Thomas começou a sentir a queimação invadir seu corpo. De leve início, uma formicação, até elevar-se à dor insuportável de queimar, de queimar em carne e espírito. Sentia agora como seu ritual lhe fora cruel e tenso. Como sua vida começava a vacilar entre seus dedos abertos e fracos. Gritava e chorava, ao som dos gritos dEle. - Clame! Clame pela sua miserável vida, Thomas! Mostre-me o quão insuportável é!
ㅤㅤ E, como se os gritos de dor aguda finalmente pudessem se canalizar, Thomas começou a gritar pela sua vida. Chorava e deixava as cordas vocais vibrarem ao máximo pelos seus pais, pela sua antiga vida. Os sentimentos contidos e rejeitados começaram a lhe parecer tão amáveis, que agora, tudo o que queria era voltar no tempo e poder novamente sentir seus entes queridos. Todos que queriam seu bem e ele achava que era pura paparicação. Queria-os, queria-os muito.

ㅤㅤ III

ㅤㅤ - É isso, então. - Disse Ele.
ㅤㅤ Thomas caiu da cadeira novamente, em susto e arfante. Seu corpo estava suado e ele completamente perdido, um segundo antes, estava queimando em brasas internas. Brasas apenas suas. E agora, voltava ao cenário inicial. Caído, sob o pequeno círculo de luz da lâmpada que oscilava. Olhou em volta, podia sentir sua presença ali, na espreita.
ㅤㅤ - Quer voltar para , certo?
ㅤㅤ - Sim. - Disse, de pronto.
ㅤㅤ - Certo, mas eu tenho uma muito má notícia a ti.
ㅤㅤ E passos foram ouvidos, passos vindos de uma só direção. Thomas ajeitou-se e ficou sentado no chão, a respiração finalmente se regulando. Logo, uma figura entrou no local, vestido de Menestrel, o homem de pele branca pura com véu de noiva estava metido em cores vivas. O chapéu de Bufão era grande o suficiente para caber cinco de sua cabeça, mas estava muito bem apertada na testa com um fio de tecido. O mais impressionante, porém, era sua face lisa. Face sem face. O homem não tinha expressões porque seu rosto não tinha boca, nem olhos, nem nariz, nem orelhas. Ele ajoelhou-se em frente a Thomas e pareceu ficar observando-o por bons segundos.
ㅤㅤ - Sabe, uma vez que se vem até , Thomas, é duro voltar. É duro que sua vida prossiga. Sabe qual a chance? - O garoto respondeu balançando a cabeça negativamente. - A chance é uma cara!
ㅤㅤ Disse Ele, apontando para a sua própria, que emanava sons por todo o lugar. Ficou parado por alguns instantes, até finalmente cair na risada, sentando-se no chão, junto do menino. Agora, Ele parecia mais jovem, tinha a quase a mesma estatura e porte físico de Thomas; se não fosse pelas roupas extravagantes e pela face paradoxal, talvez pudessem ser amigos, transeuntes de um shopping na sexta à noite.
ㅤㅤ - Desculpe, não aguentei a piada, Thomas. A cara que eu digo, é esta. - E, num movimento de mão rápido. Surgiu ali uma moeda grande e oval, Ele a girou entre os dedos, mostrando que um lado carregava uma face sem face, e a outra mostrava uma incógnita “?”. - Isto define se você, , vive ou deixa de viver. Cara ou coroa. Mesmo assim, quer tentar? Pode ficar aqui, comigo.
ㅤㅤ - ... - Thomas pareceu pensar na decisão. - Quero tentar.
ㅤㅤ Ele, caso tivesse uma face, provavelmente sorriria para Thomas. Não era necessário mais palavras, ambos já sabiam que aquele era o último adeus depois de horas de rituais de invocação e conversas, frutos de uma bruxaria baseada em espíritos e sentimentos reclusos. Ele jogou a moeda ao ar, ela girou loucamente. E, quando foi atingir o chão, tudo ficou escuro.


ㅤㅤ - Thomas? Thomas? Pode me ouvir, Thomas? - A voz desesperada vinha destorcida e longínqua. - Thomas, caso esteja escutando a minha voz, tente pressionar minha mão. Você a sente, não?
ㅤㅤ Pseudoconsciente e perdido, decidiu seguir os pedidos da voz. Mandou o comando, não soube se chegou ao seu braço, nem ao menos sabia se tinha braço. Não podia sentir muita coisa além do mundo rodando a sua volta, no escuro. Ouviu novamente a voz, mas agora, parecia mais distante, incompreensível. E, como se – com passadas rápidas e desesperadas – se afastasse, Thomas não pôde mais sentir seu interlocutor. O inconsciente o abraçou e ele decidiu que estava cansado e era hora de relaxar. Até quando? Para sempre? Ninguém sabia, nem mesmo Ele. Cara ou coroa?

Um comentário:

  1. Tadashi meu amiguim, vc é o melhor escritor de todos os blogs que sigo, mas eu estou preocupado de vc escrever estes posts tão grandões, pois a não ser eu que sou maluco eu acho que as outras pessoas não lêem de preguiça, e aí elas se privam de te conhecer e saber do seu talento.
    Deixa de ser teimoso e divide seus posts em dois ou três. Voc~e vai ver que vai surtir mais efeito.


    Cagamba!!!!

    Atualizei o blog, passa lá depois.

    ResponderExcluir

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