domingo, 3 de outubro de 2010

O Golem e a Intangível



ㅤㅤ I
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ㅤㅤ Novamente, apareceu. O deserto no qual eu vivia por uma eternidade – ou, pelo menos, nunca me lembro de ter saído daquele lugar – parecia ganhar mais brilho quando ela surgia. Tinha cachos dourados e uma pele alva, brilhante; envolta numa manta branca que a fazia ficar ainda mais divina. Aproximou-se de mim com passos ensaiados, brincalhões; e tocou de leve no meu ombro.
ㅤㅤ - Você parece estar mais vivo dessa vez. - Ela disse.
ㅤㅤ - Não acontece muito. - Retruquei. - Talvez só quando você resolve me visitar.
ㅤㅤ Ângela riu do meu comentário e virou-se de costas, afastando-se dois passos antes de se virar novamente para fitar a minha face com seus olhos azuis e uma feição um pouco mais séria.
ㅤㅤ - Desculpe não por não vir até você tanto quanto antes. É que eu tenho tido muitas coisas para fazer, sabe? Mas agora, eu acho que posso me dedicar um pouquinho mais a você – o meu melhor amigo. Dessa vez, Hiroshi, eu vim para te levar comigo.
ㅤㅤ - Me levar... com você?
ㅤㅤ A dúvida recheou meu ser, afinal, minhas lembranças – falhas e miúdas – nunca me mostraram nada além daquele universo de areia no qual eu vivia, solitário quase sempre, só sendo visitado por aquela existência cheia de vigor. Desviei o olhar para encarar o céu escuro e sem estrelas que jamais tinha mudado.
ㅤㅤ - Realmente há algum lugar diferente deste aqui? - Complementei.
ㅤㅤ A garota angelical deixou sua face envolver-se num antro de preocupação, e acabou que novamente se aproximou de mim, aquecendo-me num abraço quente e acolhedor. Demorei para retribuir àquele ato de carinho e caridade que ela demonstrava, não sabia se algum dia já tinha sido abraçado por alguém. Acabou que, depois de alguns poucos segundos, meus braços se moveram e eu também deixei meus braços repousarem sobre sua pele macia. Mantemo-nos naquela posição por tempo incontável, para mim quase uma nova eternidade que eu gostaria que perdurasse ao infinito, até que afastou seu corpo do meu, o suficiente para que pudesse penetrar seu olhar dentro de minha alma, através de minhas orbes negras e desgastadas. Acariciou minha face e sorriu.
ㅤㅤ - Há, meu querido, há um lugar muito melhor. Um lugar que é – e sempre foi – seu por direito, e é hora de reconquistá-lo. É hora de buscar sua vida de verdade, de enfrentar seus medos e fronteiras. Você me deixa levá-lo embora deste mundo sem vida?
ㅤㅤ Me calei, por alguns segundos, até que finalmente senti confiança naqueles dois mares azuis que tinha em suas orbes. Dois mares que sempre me convenceram que eu era especial à ela, com feições ternas e amorosas. Ousei, toquei os lábios da moça de pele alva com os meus rachados e secos. Não houve resposta de início, até que finalmente ela se entregou ao amor e beijou-me de volta. Quando afastei minha face da dela, duas lágrimas escorriam pelas suas bochechas pouco rosadas. Ângela, a única que viera até mim e conquistara meu coração, estava mais feliz do que nunca estivera.
ㅤㅤ - Hiroshi, vamos? Vamos embora daqui?
ㅤㅤ Eu assenti com a cabeça, levemente.
ㅤㅤ - Vou, com você, para onde for necessário.

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ㅤㅤ II
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ㅤㅤ Centro Revolucionário do Novo Brasil. 13 de Março de 2045, 23h30min.
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ㅤㅤ As vozes inundaram seus ouvidos, tirando Messias do sono leve. O homem levantou-se do amontoado de colchonetes que eram sua cama e olhou para o relógio de pulso, já era a tão esperada hora. Zanzou pelo pequeno cômodo improvisado na rocha, colocando uma camiseta regata. Se pudesse e a ocasião fosse mais informal, teria ido sem a parte de cima de suas roupas; vez que o calor de cinquenta e oito graus que fazia ali – cem metros abaixo da superfície – era quase insuportável. Sua cabeça latejava a cada vez que um grito sobrenatural soava em seus ouvidos, tornando difícil a simples caminhada que ele precisava fazer pelo pequeno corredor escavado na pedra. A euforia sonora, que só ele e mais alguns poucos no mundo podiam ouvir, indicavam o quanto Eles estavam agitados e inquietos.
ㅤㅤ Não era para menos, aquele era o dia do contra-ataque.
ㅤㅤ Encontrou poucas pessoas nas teias de túneis da Resistência, a maioria dos soldados estavam prontos para saltar de volta à superfície para reclamar seus direitos. Poucos meses antes, ninguém mais tinha esperança de um dia reconquistar o planeta perdido, mas fora então que os escolhidos foram surgindo em volta do globo, e a precária comunicação entre os rebeldes de todos os continentes começou a se unir para uma retomada. O último ser deixado dentro da caixa de Pandora, a Esperança, começava a se reavivar dentro do coração de cada um dos seres humanos que não foram dominados. Os passos de Messias se apressaram conforme se aproximava da sala de meditação, acenou para alguns poucos homens que ficaram no CR do Novo Brasil para a proteção dos Escolhidos e das – poucas – crianças.
ㅤㅤ Virou à esquerda numa bifurcação dos túneis mal-iluminados e logo encontrou uma pequena porta de aço, vigiada por dois soldados que se espremiam na parede com fuzis ainda munidos da antiga pólvora. Messias acenou para eles e aproximou-se da porta, batendo nela pesadamente. Poucos segundos até uma pequena escotilha se abrir e dois olhos fitarem os de Messias com tensão, estavam todos nervosos. A porta se abriu em seguida, dando passagem ao Escolhido, que se viu junto de mais três homens e quatro mulheres.
ㅤㅤ Sentou-se em sua cadeira e deu as mãos para os que sentavam ao seu lado. Agora, Messias já quase não estava no mundo físico. As vozes – diversificadas em gritos, sussurros, pedidos e choro – dominavam-no por completo, assim como dominavam a todos naquela sala. De mãos dadas e almas unidas, eles eram mais fortes, poderiam assim comandar o outro lado da revolução. Messias fechou os olhos e entraram em transe, os oito escolhidos da antiga América estavam unidos e prontos para o confronto, esperando que, no resto do mundo, os outros também estejam em seus lugares.
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ㅤㅤ III
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ㅤㅤ Trocávamos carícias e aconchegos desde o momento do primeiro beijo. Ângela se entregava a mim assim como eu cedia a cada encanto daquela moça de cachos dourados, como se fossem séculos de paixão contida agora extravasados em poucos minutos. No meio de mais um daqueles beijos longos e românticos, parou, deixando a cabeça pender um pouco para trás. Seus olhos azuis se reviraram nas órbitas, para meu desespero, e Ângela pareceu estar fora daquele corpo.
ㅤㅤ Segundos agonizantes, até que a minha amada voltou a si e seu olhar novamente se direcionou para o meu. Agora, ela estava com uma feição séria e preocupada na face.
ㅤㅤ - O que foi, Ângela?
ㅤㅤ - É chegada a hora de levá-lo para a realidade. - Ela falou. - Siga corajoso como sei que é. Pode se mostrar confuso nos primeiros momentos, mas todos vão precisar de sua ação, de sua liderança; toda ajuda é necessária. Você me promete que enfrentará, sem medo, aquilo que o fez tão mal?
ㅤㅤ Não entendendo tanto do que falava, apenas confirmei com a cabeça.
ㅤㅤ - É por isso que me apaixonei por você, mesmo visitando a tantos outros iludidos em seus mundos surreais. - Ela falou, seguindo um beijo e um abraço mais forte. - Estarei sempre ao seu lado durante o confronto, meu amor. Você, Hiroshi, lutará bravamente; e eu me orgulho por poder ter trazido a luz da verdade para você.
ㅤㅤ Agora, mesmo que tentasse dizer mais alguma coisa, não pude. As dunas do deserto infinito que era meu lar começaram a tremer com força, ao mesmo tempo em que o céu parecia rasgar-se para algo luminoso entrar naquele vácuo de vida. Me senti flutuando junto de minha Ângela, enquanto tudo a nossa volta parecia se destruir. Não, destruir não era a palavra certa, tudo em volta parecia se refazer em pura luz. Num momento em que não posso dizer qual é, senti que eu mesmo estava desaparecendo, me tornando parte daquela mágica situação. Senti meu corpo queimar e em seguida formigar. Estava, sim, desaparecendo, saindo daquele universo chato e solitário. E Ângela estava indo comigo. Fechei os olhos.

ㅤㅤ
ㅤㅤ IV
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ㅤㅤ Uma forte queimação invadiu sua nuca. Hiroshi, instintivamente, levou a mão até lá e encontrou algo metálico e quente preso à seu corpo. Segurou com força e arrancou, contendo a dor do desplugue. Caiu no chão um dispositivo eletrônico com faíscas saltando de dentro dele, mais parecia uma aranha mecânica, ainda parecia estar viva! Num ato de puro reflexo, disparou contra o bicho com a arma presa no pulso, um laser púrpuro disparou por comando mental contra o aracnídeo metálico, transformando-o em nada mais que sucata tecnológica. A luz vermelha, encontrada num painel ao centro do corpo minúsculo, apagou.
ㅤㅤ O descendente de japoneses olhou em volta, onde estava? A sala velha parecia estar abandonada fazia décadas. Caminhou até um espelho empoleirado e viu a si mesmo. Estava mais forte, mais musculoso do que se lembrava. Uma armadura que mesclava placas prateadas e negras cobria todo seu corpo, fazendo-o parecer um soldado. Olhou para o pulso, ali, um cano cilíndrico parecia estar acoplado à sua pele, passando por debaixo da armadura; fora aquele aparato que disparou o laser que dizimou a criaturinha no chão. Concentrou seu pensamento no item, e logo a arma modificou-se girando em torno de engrenagens que saltaram de seu pulso, até formar, então, algo semelhante a uma metralhadora giratória. Ouviu o chiado de mecanismos perto ao seu ouvido, fitou o espelho e encontrou sobre o ombro uma outra arma um canhão, talvez. O que ele havia se tornado? Deixou de ligar para seu corpo e concentrou-se na mente, nas lembranças e memórias. E, de súbito, todas elas começaram a invadir seus pensamentos de uma única vez. Ele cambaleou na sala velha e caiu sentado no sofá cheio de mofo.
ㅤㅤ
ㅤㅤ "As naves de formato cônico surgiram ao redor do globo, cobrindo bairros inteiros de cidades e metrópoles famosas de todo o mundo. Nenhum país tomou responsabilidade pelos aeromodelos, e a ONU convocou uma reunião de emergência para decidir o que será feito. Exércitos estão cercando os OVNIs, e o decreto de evacuação foi dado logo na primeira hora na maioria dos países.
ㅤㅤ A única manifestação feita pelas naves foram pequenos cilindros metálicos disparados por toda a cidade. Cientistas, Físicos e outros estudiosos já se reuniram em laboratórios de última tecnologia e estudam os artefatos; por hora, é informado que parece ser uma espécie de dispositivo eletrônico que armazena alguma sorte de itens dentro deles.
ㅤㅤ Mais informações serão dadas a qualquer momento.
ㅤㅤ Aqui é Lídia Carvalho, direto para o Noticiário Plantão.”

ㅤㅤ
ㅤㅤ Hiroshi urrou de dor, a cabeça parecia que ia explodir com tantas informações vindas tão rápido para dentro de sua mente. Pressionou-a com as mãos e fechou os olhos, contendo lágrimas sofridas.
ㅤㅤ
ㅤㅤ - Vamos, Hiro! Rápido!
ㅤㅤ - Calma! Calma, cara! - Hiroshi gritou com o colega de quarto, enquanto via as pessoas correndo pela estrada, deixando os carros e motos para trás no engarrafamento colossal formado na BR. Um grande acampamento do exército se encontrava a cerca de dois quilômetros dali, e podia ser avistado facilmente. Havia uma gigantesca tenda, da onde um estrondo devastador fazia crianças e pessoas com sensibilidade auditiva tamparem os ouvidos. O ministro de defesa fora bem claro: Todos deveriam evacuar para aquelas áreas militares o mais rápido possível. As cidades não eram mais pontos seguros, e os Extraterrestres eram inimigos. Não deviam confiar nas palavras mal traduzidas daqueles seres cinzentos de quatro pares de mãos.
ㅤㅤ - Que calma nada, mano! - Messias insistiu. - Tão falando que o mundo vai ser dominado por esses ETs loucos, os caras que chegaram lá na frente tão espalhando boatos que tem uma escavadeira gigante dentro da tenda e que a gente vai pra debaixo da terra. Não tem tempo pra você ficar com suas frescuragens agora, Hiro!
ㅤㅤ - Mas e se os bichos cinzas estiverem falando a verdade? E se eles vieram pra trazer o desenvolvimento? Eu acho que a gente poderia...
ㅤㅤ - Não, cara! Vamos seguir pra onde todo mundo tá indo!
ㅤㅤ Por pura insistência do amigo Messias, Hiroshi deixou de lado suas idéias malucas e seguiu com ele. Para aonde a esperança ainda tinha lar, para os braços da organização que agora comandava a população.

ㅤㅤ
ㅤㅤ Arfante, o nipônico começava a ligar os fatos e voltar à realidade. Lembrava-se da invasão na terra. Lembrava-se de seus antigos amigos. Lembrava-se de tudo, até que...
ㅤㅤ
ㅤㅤ "Esta é uma missão de reconhecimento de área. Vocês, voluntários, devem seguir a finco todas as nossas ordens! Sei que o calor os deixa desconfortáveis, mas devem se acostumar! Ficaremos abaixo da superfície, numa temperatura que os cinzentos não aguentam, o tempo que for necessário. Nossa equipe fará reconhecimento de área em uma antiga liga de túneis de esgoto vinte metros acima de onde estamos agora.
ㅤㅤ Lembrem-se: As aranhas metálicas são a coisa que devem evitar mais do que tudo! Elas sobem pelo seu corpo e se fixam na nuca, atrelando-se ao sistema nervoso com mecanismos avançados. Caso elas conseguirem o feito, pá! Vocês estão dominados pelos aliens e se tornam nossos inimigos. Eles estão em número muito reduzido em comparação a nós, precisam dos escravos mentais, dos Golens! Não dêem a eles a chance de dominar mais ainda nossa Terra! Adiante, Rebeldes! ”

ㅤㅤ
ㅤㅤ Lágrimas caíam dos olhos descendente nascido e criado em São Paulo. Lembrou-se, com amargura, de quão trágica terminou aquela missão de reconhecimento. Lembrou-se do exato momento em que seu fuzil de pólvora não conseguiu penetrar na proteção metálica do aracnídeo que subiu em seu corpo e o dominou, deixando sua alma vagar num universo paralelo e sem vida alguma, senão a dele.
ㅤㅤ Tentou conter a emoção e os sentimentos e fixou-se nas últimas lembranças que tivera. Ângela. Olhou para o lado e deixou sua mente e espírito acalmar, aos poucos, a figura linda de sua Amada se formou. Olhando para ele com um sorriso encantador. Estendeu o braço para tocá-la, mas os dedos do ex-golem trespassaram a forma etérea do espírito. Ângela era um fantasma, uma moça que já morreu; assim como outros milhões que foram dizimados no primeiro ano da invasão extraterrestre, espíritos que resolveram ajudar os que ainda habitavam a terra. Espíritos que formaram escolhidos para dizer-lhes de seus planos. De suas ousadias que agora mostravam-se efetivas.
ㅤㅤ Hiroshi lembrou-se da promessa feita a sua amada. Ele precisava lutar, lutar pelo seu planeta e pelos seus irmãos. Caminhou até a janela, e de lá observou vários outros ex-golens, todos livrando-se de suas aranhas dominadoras; todos acompanhados de figuras esboçadas e esbranquiçadas, seus fantasmas libertadores. O cenário era devastador, a cidade tinha prédios caindo aos pedaços e ruas abandonadas havia muitos anos; olhou para o horizonte e encontrou uma nave cônica pairando sobre a cidade, a algumas dezenas de quilômetros.
ㅤㅤ Voltou seu olhar para a rua. Dos bueiros, começavam a sair centenas de homens vestidos com pouca roupa e armas de fogo antigas. Saíam espantados no meio dos escravos mentais libertos que também não tinham muito em ordem os pensamentos e só agora começavam a se recordar de seus feitos antes de serem dominados. Hiroshi sentiu o espírito de Ângela tentar abraçá-lo por trás – sensação semelhante a um calafrio, e sua voz ecoou em seus ouvidos, terna e limpa. Todos vão precisar de sua ação.
ㅤㅤ O ex-golem saiu para a sacada do apartamento abandonado que era sua guarita, quando ainda servo dos cinzentos, e levantou o punho aos céus, enchendo os pulmões de ar para seu grito forte.
ㅤㅤ Ouviu alguns gritos de comando, e da janela pôde observar alguns líderes das tropas da resistência chamando todos para a luta. O ex-golem saiu para a sacada do apartamento abandonado que era sua guarita, quando ainda servo dos cinzentos, e levantou o punho aos céus, enchendo os pulmões de ar para soltar um forte grito de ânimo. Soldados da resistência e ex-golens se juntaram ao grito. Agora, com aquelas armas extraterrestres acopladas aos corpos de homens sãos, talvez pudessem contra os inimigos cinzentos.

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