ㅤ I
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ㅤ – Até amanhã, Sr. Reuben.
ㅤ Foi desta forma que Ariadne Leverson se despediu de seu funcionário. Era noite de natal, e provavelmente aquele jovem trabalhador não gostava nem um pouco da alma avarenta de sua patroa. Mas, que mais se podia dizer? A velha senhora viúva que levava os negócios do falecido marido nas costas sempre tivera a mesma fama. Era ela a mulher de poucos amigos e muitos bens, que nunca realizara um ato de bondade na vida, senão doar algumas moedas para a igreja – numa paca tentativa de salvar a sua alma.
ㅤ Nunca ligara para o natal. Não era algo que lhe interessasse, não moralmente falando – afinal de contas, não poderia negar que a época do ano vinha a calhar para seus negócios. Reuben Naylor sabia que nunca seria presenteado com um peru de natal, mas já aceitara o fato, e apenas dava graças ao nosso senhor salvador por lhe dar um emprego digno por mais um ano de vida.
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ㅤ Sra. Leverson entrou em casa tremendo, logo se desfez do casaco de peles para aceitar o calor que vinha da lareira da sala. Seu valoroso mordomo, Owen Garfild, surgiu no saguão de entrada para ajudar-lhe com a pequena bolsa e ademais pertences. Ela o cumprimentou com um sorriso paco e um leve meneio de cabeça.
ㅤ – Ah, Owen, meu bom Owen! Não sabe como o frio me deixa em frangalhos.
ㅤ – É comum desta época do ano, Sra. - Ele disse, inflexível como todo bom mordomo teria de ser.
ㅤ – Compreendo. É como se o natal e toda esta baboseira conspirassem contra mim. Nota como todo ano, nesta época, o inverno se torna mais intenso? Ah, Owen! Nem mesmo meus melhores vestidos de seda posso usar, sempre me atendo com estes casacos pesados.
ㅤ – Caso a Sra. instalasse um aquecedor no seu escritório, Madame - Disse o careca Garfild - Talvez pudesse usar de seus vestidos.
ㅤ – É realmente uma boa idéia. - Ela disse, os passos se direcionando para a sala. - Mas deixemos para pensar nisso um outro dia, Owen. Só desejo jantar e subir para meu quarto.
ㅤ – Como quiser.
ㅤ O jantar fora silencioso como sempre fora. E Ariadne subiu para o quarto, cansada de seu trabalho, mas já sabendo que haveria mais itens a se resolver no dia seguinte. Com uma lembrança boba que lhe viera na memória – logo após passar pela janela e observar de lá uma grande árvore de natal – a senhora riu sozinha, pensando se naquele ano eles viriam visitá-la.
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ㅤ II
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ㅤ A euforia e as vozes se faziam cada vez mais altas no recinto luminoso. Se é que se podia dizer que aquele local era um recinto, ou mesmo uma construção. Apenas havia branco para tudo quanto é lado; e o chão, a parede e teto se mesclavam numa cegante luminosidade.
ㅤ Quebrando a calma e a harmonia daquele lugar tão belo, estavam eles: De todas as formas e tamanhos, de todos os jeitos e desjeitos. Alguns vinham em forma de espírito, e flutuavam com asinhas de anjo nas costas, havia também aqueles que ainda adotavam o estilo antigo, carregando foices enquanto acobertados por mantas negras. Grande parcela até mesmo tinha se modernizado, um usava um terno de cetim e uma gorda tentava ocultar suas protuberâncias dentro do glorioso vestido vermelho de seda oriental. A mescla de estilos e cores faziam o salão mais parecer o famoso carnaval brasileiro que começava a ganhar fama mundial.
ㅤ – Com calma, Senhores! Com calma! - Dizia um velho barbudo sentado numa cadeira imaginária. As roupas vermelhas e a pele alva em mescla com as bochechas rosadas mostravam claramente quem era a figura. O Papai Noel, depois de alguns segundos de insistência, finalmente conseguiu silenciar a multidão. - O que é, este ano?
ㅤ – Continuamos trabalhando no natal! - Reclamou uma voz aleatória, que recebeu o apoio de outros.
ㅤ – Ainda não recebemos nosso bônus pelas horas extras!
ㅤ Mais consentimentos.
ㅤ – Será que não poderíamos trabalhar num horário mais oportuno? - Falou uma terceira voz, um tanto mais insegura que a dos outros. - É tão embaraçoso ter de acordar as pessoas no meio da noite. Sabia que algumas delas dormem despidas?
ㅤ Desta vez, ninguém se manifestou a favor.
ㅤ – Enfim, nós queremos recobrar nossos direitos! - Disse novamente o primeiro que tinha levantado a voz.
ㅤ Noel deu um longo suspiro e coçou as sobrancelhas grossas com seus dedos enluvados de couro. A parte fácil de entregar alguns presentes pelo mundo valia muito bem a pena. Não, era mais do que óbvio que ele não descia de chaminé em chaminé para colocar presentes. O que realmente fazia era despejar o espírito natalino sobre as casas, e deixar que eles cuidassem do resto. Infelizmente, sempre haviam os mal-encarados. Seres que nasceram para repelir de suas almas, o bom gosto do velhinho vermelho. E para isso existiam aqueles senhores ali. Contudo...
ㅤ – Mas, pelo amor de deus, vocês são os Fantasmas da noite de Natal! Vocês só trabalham no natal. Só na noite de natal! - Disse o Noel.
ㅤ A legião de fantasmas, espectros, espíritos e almas levantou novamente a voz de uma única vez, causando uma nova pontada de dor de cabeça na mente do bom velhinho. Santo Nicolau pressionou as têmporas com os dedos indicadores, numa tentativa infeliz de calar as vozes na sua mente, já bem bastavam as marteladas da Senhora Noel, toda noite.
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ㅤ – Os fantasmas do Presente deveriam receber mais. - Disse um parrudo de pele amarela brilhosa, vestido como um pirata. - Passear pela cidade numa noite tão fria é certamente bem mais trabalhoso e desgostoso.
ㅤ – Ora! - Um anjinho do tamanho de um bebê levantou-se, ele irradiava em luz azulada. - E quanto a nós do Futuro? Garanto que avançar no tempo é bem mais cansativo.
ㅤ – Além do mais, é um futuro incerto! - Levantou-se em pleno ar um companheiro anjinho. - Fora as lamentações! Vocês são sortudos de não terem de ouvir os choros e súplicas dos bastardos! Nós que ficamos por último que sempre sofremos.
ㅤ – Ao menos, quando vocês entram em cena as pessoas já estão prontas - Disse, ao que parecia, a mesma voz que comentara sobre pessoas que dormem despidas. - Não é nada bom visitar a Sra. Lounge depois que ela venceu o campeonato de mais comilona de panquecas da cidade.
ㅤ E mais uma vez começou o bate-boca espectral, que nada se diferenciava de um humano. O velho Noel pressionou com ambas as mãos o couro cabeludo grisalho, em mais uma fula tentativa de conter as vozes. Se havia algo ruim em ser imortal, era o fato de que você teria de viver toda a eternidade com a enxaqueca. Já estava quase a ponto de se comprimir em posição fetal na sua pseudo-poltrona, quando estourou os limites da paciência e levantou-se da cadeira num ato raivoso com um grito quase gutural. A horda de fantasmas se calou e direcionou os olhares para o bom velhinho.
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ㅤ – Mas que – desculpe, Senhor – diabos vocês pensam que estão fazendo!? Ora, vocês são fantasmas da noite de natal, deveriam trabalhar para reavivar o espírito natalino dentro da alma daqueles que a rejeitam. Mas o que eu vejo aqui – Ah, meu bom Deus – é exatamente o tipo de comportamento que vocês deveriam estar erradicando no planeta. Será que não notam, ora pois, que vocês nada estão diferentes dos carrancudos que visitam? Deste jeito, terei de achar fantasmas da noite de natal para fantasmas da noite de natal.
ㅤ Papai Noel sentou-se, exasperado.
ㅤ – Que me dizem? Que tal pararmos de discutir e começarmos a distribuir o espírito natalino?
ㅤ O silêncio continuou por alguns segundos, somente pareado por alguns cochichos aqui e acolá. O Santo Nicolau parecia finalmente ter conseguido o apoio dos fantasmas, e, relaxado em sua pseudo-poltrona deixou escapar um suspiro de alívio.
ㅤ – Não! Ainda queremos nossos direitos! - A voz rompeu, quase fazendo Noel cair de seu encosto.
ㅤ E, para delírio do velhinho, as vozes começaram a se levantar em apoio. Não uma, não duas. Todas elas começavam a gritar: “Greve! Greve! Greve!”. Noel fechou os olhos com força, perdera as esperanças. Quando abriu novamente os olhos, deixava que fitassem o teto esbranquiçado do local.
ㅤ – Ai, Jesus, e agora? - Disse para si mesmo.
ㅤ A figura do homem de cabelos castanhos e uma paz celestial na feição surgira no céu para o Santo Nicolau. E, antes que lhe desse esperanças, Jesus deu de ombros.
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ㅤ III
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ㅤ Ariadne acordou naquela manhã como sempre acordava em todas as manhãs. Sem espíritos, sem fantasmas, sem visões do futuro e sem gente pegando-a desprevenida. Realmente, a baboseira de natal era sempre a mesma. Era aquele apenas mais um dia de trabalho, só o que lhe arrancaria o humor seria a face aborrecida do Sr. Reuben e o fato de ainda não poder usar seus vestidos de seda. Realmente deveria comprar um aquecedor.
ㅤ Retirou o pesado cobertor de peles de cima do corpo e pisou no chão coberto pelo tapete persa. Buscou com a mão o roupão para lhe cobrir o corpo; definitivamente era ótimo dormir despida.
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ㅤㅤIV
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ㅤㅤAssim que as botas de couro reforçado saíram dos pés do velho Noel, ele soltou um suspiro de puro alívio. Acabou que, no fim das contas, ele não conseguiu conter os Fantasmas das noite de natal, que saíram da audiência todos com a idéia de "Greve" ainda em mente. Ao menos, e ficou feliz com isso, pôde viajar pelo mundo na companhia das renas para entregar o espírito natalino pelo mundo. Puxou a fivela do cinto para soltá-la e logo em seguida pousou o gorro vermelho no criado-mudo.
ㅤㅤO Sofá da sala nunca fora tão confortável para ele, mas a Sra. Noel deixou bem claro o que ocorreria caso ele se atrasasse. "Os Fantasmas entraram em greve e tentei contê-los", ora, até mesmo contos de fada e seres imaginários tinham seus limites de sensatez; Mamãe Noel nunca acreditaria na história. Puxou o cobertor macio sobre seu corpo e já ia fechar os olhos quando um baque perto da janela o fez saltar do sofá, caindo com o nariz no chão.
ㅤㅤ- Claro! Agora assaltam a casa do velho Noel! - Disse, consigo mesmo. - Que ótima forma da noite acabar!
ㅤㅤE, com toda a tranquilidade da imortalidade, dirigiu-se para o corredor, de onde viera o som. Mas ali, viera sua surpresa. Atônito, Noel observava a figura verde-brilhosa de um velho em seus pijamas caros; o nariz avantajado não o fazia errar sobre a identidade do sujeito.
ㅤㅤ- Scrooge!
ㅤㅤ- Feliz Natal, velho Nicolau! - Respondeu, bem humorado.
ㅤㅤ- Mas o que faz aqui, homem de deus? - Noel falou, coçando os poucos cabelos grisalhos que sobreviveram na parte central da cabeça.
ㅤㅤ- Fiquei sabendo do que aconteceu com meus velhos parceiros. Decadência, né?
ㅤㅤUm leve olhar raivoso passou pela face de Noel.
ㅤㅤ- Ora, Scrooge, então foi voc...
ㅤㅤ- Opa! Opa! Calma aí, Nicolau! Sabe muito bem que, desde aquela noite, até o fim de meus dias, eu nunca mais fui uma má pessoa. Tanto que me colocaram aqui, nesta posição. - E com um gesto mostrou-se a si mesmo. - Se eles tem agora um fiasco de ambição na mente, não é por minha culpa! Na verdade, eu bem estranhei que meus parceiros não vieram para me dar as coordenadas, estava ansioso para visitar o mal-encarado do ano. É um caso bem peculiar, bem parecido comigo.
ㅤㅤ- Entendo. - O Velho Noel escorou-se na parede. - Mas, por que veio até aqui? Só para me dizer isso que não foi.
ㅤㅤ- Na verdade... - Ele disse, deixando transparecer um pouco da esperteza que o jovial Scrooge tivera para ganhar a vida através de um sorriso. - Tem como me emprestar o trenó? Dizem que ele tem a capacidade para levar as pessoas para onde desejam ir.
ㅤㅤOs olhos do velho Noel arregalaram.
ㅤㅤ- Ora, você não...
ㅤㅤ- Está afim de fazer uma horinha extra como Fantasma, velho Nicolau?
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ㅤㅤE o natal passou como todos os outros para Ariadne Leverson. Ao menos, todos desde o dia em que os pais se separaram na mesma data. Brigou com o digníssimo Sr. Reuben por estar tão distraído no trabalho e fez a encomenda do aquecedor, chegaria uma semana depois, de modo a fazer a velha Ariadne começar a escolher que vestidos de alta classe e costuras impecáveis ela iria usar.
ㅤㅤJantou com toda a calma e serenidade, o velho Owen sem dizer uma palavra desnecessária. Levantou-se e foi dormir com a calma de sempre; durante a caminhada, deparou-se com a mesma árvore de natal despontando na janela. As lembranças vieram novamente e ela soltou um suspiro baixo e contido, de decepção. Naquele ano, eles também não vieram.
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ㅤㅤSerá que Ariadne acreditaria em Fantasmas da Noite Seguinte ao Natal?
sábado, 4 de dezembro de 2010
O Natal de Ariadne Leverson e a Greve Surpresa
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