sábado, 2 de outubro de 2010

Lágrimas no Paraíso


ㅤㅤ I
ㅤㅤ
ㅤㅤ Até o odor mais horrível começou a desvanecer. O peso que desmontava a cabeça do, agora frágil, homem subitamente deixou de existir enquanto ele abria os olhos, sóbrio uma vez em muito tempo. Daniel demorou a distinguir o que o cercava, e mesmo quando seu raciocínio conseguiu acompanhar a visão, a mente confusa não captou sentido; nunca estivera ali, e não acreditava que sua bebedeira pudesse levá-lo até tão belo lugar.
ㅤㅤ Suas roupas estavam leves, muito diferentes do terno impregnado de suor e de acidez do álcool, se viu vestindo uma camisa de lã folgada e um short de seda. Deu um passo sobre a sala simples de tablado de madeira, aquele lugar exalava paz em cada mínimo canto. Onde estava?
ㅤㅤ
ㅤㅤ II
ㅤㅤ
ㅤㅤ Definhando. O cheiro desgostoso – quase insuportável – inundava a saleta sem vida que um dia já fora antro de tantos risos. Daniel estava definhando, aos poucos, dolorosamente; o mundo e sua maldade mostravam-se mais fortes que a antiga coragem do garoto, agora homem. O deszelo pela vida, tão destacado nos inúmeros itens jogados para todos os lados e nas garrafas de bebida abertas em momentos aleatórios, cada vez mais recheava a mente do diminuto ser que se tornara.
ㅤㅤ O corpo – que só se movimentava para alimentar o vício há pouco adquirido – parecia que não era seu, não o sentia, não conseguia expressar-se no mundo material quando dragões inescrupulosos destroçavam e engoliam sua alma todos os dias, em cada golada. E, quando conseguia manter-se dentro de sua sala, parecia sofrer ainda mais; como se a realidade quisesse expulsá-lo novamente para a derradeira loucura do álcool. A face de Daniel caiu de lado, e seus olhos cansados de pálpebras tombadas fitaram o seu terror, carrasco impiedoso; que antes era o motivo que o fazia seguir firme e forte. A foto continuava ali, mesmo depois de tentar queimá-la, de atirá-la pelo corredor sombrio, de quebrar sua proteção; a imagem de Ana com o pequeno Joel nos braços mantinha-se agregada a seu resquício de vida. Era o que o destruía, e ao mesmo tempo, era o que o mantinha vivo. Afinal, se ele morresse, teria de enfrentá-lo. Preferível a feição de nojo da ex-esposa que encarar as incertezas de um pós-suicídio. Já fazia três anos desde aqueles dias de tormento. Três anos de decadência, de amigos se afastando e padrão de vida despencando. Ele já estava no fundo do poço, e mesmo assim, parecia sempre insistir em afundar ainda mais.
ㅤㅤ Mergulhado na cratera temporal no meio do sofá de couro rasgado, Daniel estendeu o braço na direção da vodka barata. Mais um gole e um engasgo, seguido de uma série fulminante de tosse, como se seu corpo tentasse expelir todo o mal do líquido maldoso, sem sucesso. Virou o rosto para o chão e deixou que seu organismo já surrado reclamasse por melhoras, o vômito saiu branco e ralho, não comia direito já fazia algumas semanas, apartando a fome com salgadinhos míseros e cheios de mal elementos da vida. A cabeça girou, e repentinamente faltou-lhe forças para sequer permanecer desperto. O mundo se fechou e a escuridão se apossou de sua sanidade.
ㅤㅤ
ㅤㅤ III
ㅤㅤ
ㅤㅤ Não tinha a mínima idéia de como aguentou o enterro todo. Daniel estava inflexível, imóvel; pessoas vieram dar-lhe a mão e abraços caridosos. Entretanto, só respondera com simples balançares de cabeça, sem prestar atenção alguma à quem lhe dirigia a palavra. Ana, sua esposa, caía em prantos próximo ao cimento fresco. Não era para menos, toda aquela cena de tristeza e choque nunca deveria ter acontecido; Joel não devia ter morrido daquela forma, por uma bobeira, por tão pouco e tão cedo. Ele ainda mal tinha começado a andar! Ana desviou o olhar, fitando seu marido, procurando achar naquelas orbes negras, antes tão aconchegantes, algum consolo para seu resquício de lógica. Mas Daniel não tinha como estar pior, balbuciava palavras sem-nexo; verbos e substantivos que se formavam num plano surreal, que perguntavam a si mesmo um mar de dúvidas cruéis e inumanas. Será que, caso se encontrassem após sua morte, ele saberia seu nome? Joel seria capaz de lembrar do próprio pai? E, supondo que ele se lembrasse, seria capaz de perdoá-lo?
ㅤㅤ Cada novo questionamento fazia o homem sair mais de sua consciência, deixar o tempo passar sem acompanhá-lo. E, quando menos percebia, implorava por mais. Seu simplório viver estava de joelhos para que ele saísse daquilo tudo, para que não partisse para o outro lado, e mesmo assim abandonasse este. A única e mal-formada resposta que encontrou; veio amarga, forte, e descia goela abaixo. A pseudo-salvação.
ㅤㅤ
ㅤㅤ IV
ㅤㅤ
ㅤㅤ A luminosidade não vinha do astro-rei, ela simplesmente brotava de todas as partes e deixava o local com aquele clima: Tranquilo. Daniel sentiu que seus pés podiam alcançar mais longe, defronte tanto sofrimento dos últimos três anos em que se via perguntando se era o autor da morte do filho, agora podia-se dizer que estava relaxado por completo. Sentiu-se mal por isso, não era certo alguém que merecia a sofridão e a solidão ter tanta liberdade. Lembrou-se, numa inundação de recordações, de tantos vários momentos que passou com Ana e Joel. O calor do menino segurando seu dedo com suas pequenas mãozinhas superava qualquer abraço que já fora lhe dado, um pequeno engasgo do moleque o fazia sorrir feito bobo por uma tarde inteira. Fora um pai-coruja.
ㅤㅤ E, como por consequencia, lembrou-se da fatídica tarde. Resolvera levar Joel para passear pelo bairro, mesmo o bebê tossindo em seus braços e com indicação de chuva para o céu tão claro. Tão claro que fez Daniel desacreditar das previsões, que o fez sentir segurança para levar sua cria para tomar ar livre. Mas a chuva veio, súbita e tenebrosa, pegando pai e filho desprevenidos. A tosse virou gripe, e a gripe tornou-se pneumonia. A pneumonia virou dor para os pais, a causa mortis de seu pequeno e único fruto do amor. Derramou lágrimas sofridas que há muito não saíam, sempre contidas pelo poder ilusório do álcool. Abraçou os joelhos e se viu jogado no canto da saleta de luz, expressando todo seu sentimento em urros e mais choro. Todo o conforto do lugar esvaiu-se. Sumiu.
ㅤㅤ
ㅤㅤ A sala perdeu seu brilho, assim como o coração de Daniel agora tinha plena certeza de que conviveria com a dor por toda eternidade. A luz começou a se apagar e Daniel se recolheu ao canto da sala. Estava sóbrio, sóbrio demais; tanto que podia distinguir o que pensava do que tinha como alucinação antes. A mente se viu cheia das mesmas dúvidas, do mesmo psicológico terror. Em resposta, a luz da sala mingou por completou e a escuridão mais uma vez tomou conta.
ㅤㅤ Daniel continuava a pensar. Afinal, morrera e aquele era o purgatório? Se fosse, que bela chance seria de ver Joel. Não queria, tinha medo e insegurança; mas o coração de pai falava alto contra qualquer desafeto que ele tinha com a coragem. Cerrou os punhos e levantou a cabeça, os raios luminosos misteriosos começaram a surgir novamente. Levantou-se do chão e manteve-se ereto, era a derradeira hora da verdade. As luzes eram quase ofuscantes de tão fortes. Descalço, o homem caminhou até a única porta do tranquilo cômodo. Ele se tornara um paradoxo, continha dentro de si extremos de sentimentos. Sentia dentro de si medo e coragem, hesitação e ímpeto, tristeza e felicidade.
ㅤㅤ Abriu-a de uma vez só. E teve como resposta mais daquele cegante branco, pôs a mão sobre os olhos para tentar distinguir qualquer coisa. Um passo adiante na luz, uma sensação de alívio e paz assomou seu corpo. Mais um passo, Daniel colocou na face um sorriso, algo que desconhecera já fazia tanto tempo! Tomou fôlego, correu e se jogou no infinito de tranquilidade.
ㅤㅤ Veio, como resposta um simples e baixo sussurro.
ㅤㅤ Pai.
ㅤㅤ
ㅤㅤ V
ㅤㅤ
ㅤㅤ Tonto, o homem despertou. Aquele cheiro tão desgostoso naquele dia parecia pior ainda. Rolou no chão sujo e fedido, afastando-se do que seu corpo expulsara. Estava ficando farto daquilo tudo. Desabotoou a camisa branca encardida e jogou o terno de lado, ao tempo que se levantava. Descalço, caminhou pela sala silenciosa até a janela.
ㅤㅤ Fazia três anos desde que Daniel deixara de prestar atenção para o quão belo era o nascer do sol por aquela janela. Respirou fundo, recebendo os primeiros raios de luz do astro-rei na face e peito nu. Abriu um sorriso, algo que desconhecera já fazia tanto tempo.
ㅤㅤ Talvez fosse tempo de mudanças para ele.

FIM

Para os que conhecem - e também para os que não conhecem, rs - o conto foi baseado na música Tears In Heaven de Eric Clapton.
ㅤㅤ

2 comentários:

  1. Tadashi... Mais um belo post! Parabens.
    Eu vou te falar uma coisinha como amigo que acho que já somos. Vc escreve muito bem, de verdade, é tudo muito claro e limpo na sua narrativa, mas eu acho que está faltando um pouco de acidez e ironia nos seus textos!
    Tem uma trilogia do Marcos Losekann que se chama Uma estrevista com Deus, eu estou acabando de ler o terceiro livro, eu indico ele para vc ler, que eu tenho aprendido demais com o estilo desse autor!
    Um abraço! Vc ainda vai ser best seller.

    Atualizei o blog!

    ResponderExcluir
  2. É possível sentir o desespero silencioso de alguém que nada sente mas que gostaria de sentir tudo, inclusive se condenar ao inferno, se fosse possível. Tão possível como sentir cheiro de fumaça sem sequer estar fumando.
    Gostei muito deste conto, irmão. E sua progressão é bem visível.
    Muito boa distribuição de cenas, inclusive. O conto, se lido tranquilamente, é visto como um pequeno filme na cabeça onde você acompanha a cada momento os movimentos e pensamentos do protagonista.

    Parabéns, Tada.

    Atenciosamente,

    Cris.

    ResponderExcluir

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...