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ㅤㅤ Cinderela limpou as lágrimas novamente, elas não paravam de cair! Talvez nem fosse pelo fato de não poder ir ao baile encontrar e ver o príncipe, motivo tão fútil, mas sim por ter suas espectativas despedaçados no último momento e em frente aos seus olhos. O vestido feito de retalhos de velhas roupas e panos estava ali, alimentando a fogueira de seu sujo e pequeno quarto. Talvez aquela fosse a simbólica imagem de como sua vida se tornara um inferno, desde que seu pai casou-se novamente. O velho homem morava em outra cidade, dirigindo o comércio que tanto o enriquecia, deixando assim a madrasta e suas duas filhas para morar com sua querida menina.
ㅤㅤ Mal sabia ele que mal-tratos a moça suportava todos os dias, que sua bela e encantadora Cinderela era agora a criada inútil. A jovem ouviu a porta fechar-se no andar de baixp, indicando que as três tinham ido ao baile. Até mesmo a madrasta se caprichou para ir, como se pensasse que poderia atrair os olhares do príncipe. Mas, se analisado com calma, melhor a conquistadora de comerciantes viúvos que suas duas horrorosas filhas. Uma nova onda de lágrimas brotou dos olhos, ao tempo que via pela pequena janela a carruagem que as levava afastar-se. Tanta era a tristeza que mal notou quando as chamas começaram a expelir uma fumaça de tom púrpuro. Logo a imagem formada por tão estranha combustão começou a tomar nitidez e vida.
ㅤㅤ – Jovem menina... - A voz rouca e tenebrosa soou. Cinderela levantou-se de supetão, direcionando o olhar para a imagem do demônio sobre a lareira. - Deseja, sim, mostrar que você muito mais deveria ir à festa que aquelas bruxas, certo?
ㅤㅤ A voz de Cinderela voltou aos poucos, assim como ela tentava controlar sua surpresa. O demônio era algo conhecido, assim como as criaturas mágicas da floresta. Era dito que quase toda pessoa tinha um vínculo com a natureza primitiva através de uma criatura mágica, a própria Cinderela tinha pássaros e coelhos que correspondiam ao seu canto. Foram os pequenos que lhe ajudaram a fazer o vestido de retalhos com o qual iria ao baile, vestido que fora queimado com uma desculpa esfarrapada qualquer.
ㅤㅤ – Sim... - Ela passou as costas da mão sobre as lágrimas, limpando a face. - Eu teria muito mais chances com o príncipe que elas. Não que isso importe, apenas me entristeço por notar que minha vida afunda cada vez mais na escuridão.
ㅤㅤ – Pois, aqui, te ofereço a chance da vingança. - Disse o demônio levantando a voz. - Te levo ao baile, te deixo aos olhos do príncipe. Apenas me promete que volta antes das doze badaladas da meia-noite.
ㅤㅤ – Prometo! Vou e volto antes que a noite avance! - Ela disse com um sorriso no rosto. - Mas por que me deixa esta chance?
ㅤㅤ – Porque adoro ver a angústia na face dos outros. E nenhuma será melhor que as três ao observarem você entrando no baile.
ㅤㅤ A voz não deu chance de mais nenhuma de resposta. Sumiu, subindo pela chaminé. Ao mesmo tempo, uma aura mágica envolveu Cinderela, e no meio de estrelas próprias e pontinhos brilhosos, se viu posta num vestido branco e bordado de diamantes. Seu cabelo loiro e descuidado estava alisado e preso num coque prateado, assim como seus pés repousavam em duas sapatilhas lindas de cristal. Cheia de felicidade, Cinderela saiu da casa, sendo esperada por uma carruagem pomposa.
ㅤㅤ Chegou na festa tragando os olhares de todos para ela. Que bela dama era aquela? O baile promovido com o intuito do príncipe escolher sua noiva mostrara seu resultado no momento em que ela entrou no grande salão branco. Ninguém sabia de Cinderela, ela estava diferente demais, de modo que só as três tenebrosas que moravam com ela a identificaram. Mas não ousaram fazer nada em frente ao príncipe, que parecia encantado com ela. O jovem de olhos azuis e cabelo louro sentiu-se fisgado pela beleza, já não importava mais nada, ela era bela e hipnotizante. Pouco importava se seria chata ou pobre, queria possuí-la. Avançou no salão e convidou-a para uma dança. A madrasta dispensou o cortejo de um velho nobre para remoer-se de raiva. Suas duas filhas; gordas, cheias de sardas e de dentes amarelados pareciam querer se lançar em cima da Jovem que dançava com o Príncipe.
ㅤㅤ Uma, duas, três... Os dois perderam a noção do tempo e de todo o resto, alguns mais velhos juravam ver uma aura púrpura e mágica acobertando o casal. Dançavam e riam em pequenas e bobas conversas. Tanta era a diversão, que Cinderela esquecera-se do aviso do demônio. E, em frente as megeras irmãs de criação, madrasta e ao príncipe, mostrou sua cara de pavor quando as badaladas começaram a soar. Tinha de partir! Largou o herdeiro do trono no meio da dança e corria na direção da entrada enquanto a mágica começava a se desfazer. O vestido começou a simplesmente apodrecer e desintegrar-se, deixando sua carne pura e pálida a exposição. Abriu as portas, e desceu as escadas freneticamente, acabando por deixar para trás a sapatilha de cristal, que saiu de seus pés num tropeço. Nua, triste e abadalada; a moça embrenhou-se na mata ao lado do castelo. E dali voltou para sua casa, deixando para trás o príncipe com a sapatilha de cristal agora nas mãos. A peça não desaparecera simplesmente porque saíra dos seus pés antes que o feitiço terminasse por completo.
ㅤㅤ Houve ao menos um ponto positivo no fato de ter se esquecido da hora do término do feitiço: A madrasta e suas filhas não lhe esculacharam por ela ter roubado o príncipe, simplesmente riam e caçoavam do vergonhoso modo com o qual saiu do baile. Também, alguns moradores vizinhos espalharam o boato de Cinderela voltar para casa nua no meio da noite, deixando agora sua honra despedaçada. A menina, que deveria estar feliz pela chance que teve, agora estava ainda mais abalada, nem ao menos saindo de seu quarto nas horas em que não estava trabalhando para as outras.
ㅤㅤ E foi por causa dessa desolação toda que não estava presente quando o mensageiro do rei anunciou que em breve o príncipe ali passaria, para procurar pela sua amada do sapato brilhoso. E nem mesmo estranhou quando as duas filhas da madrasta compararam os pés gordos e feios delas com os seus delicados. O tempo continuou a passar para Cinderela, que agora desistira por completo de retomar suas esperanças de um dia ser feliz. Dias e meses, até aquele fim de tarde.
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ㅤㅤ Cinderela tinha terminado de torcer as roupas da casa, e fora dispensava mais cedo de suas obrigações pela Madrasta, que dissera que ela poderia descansar porque iriam comer junto de amigos e pretendentes para as filhas. A pobre menina nem ligou para o informe, agora trabalhar ou não trabalhar só ditavam como esperaria a morte abraçar-lhe. Subiu as escadas, e já ia entrar no seu quarto – o último e menor do corredor – quando ouviu o choramingo vindo do quarto das meninas. Logo em seguida, o grito contido da outra.
ㅤㅤ Movida por uma curiosidade inesperada, Cinderela deixou seu corpo mover em direção à porta. Meteu o olhar pela fechadura e perdeu o fôlego com a imagem. Ali dentro, as gordas meninas choravam com mordaças nas bocas, sentadas sobre poças de sangue tenebrosas. Os pés esquerdos delas estavam destruídos; uma tentara arrancar os dois dedos menores, e agora tinha o mindinho caído na poça vermelha e o outro dedo pendurado, preso por um naco de pele e carne. Já a outra tinha feito ainda pior: No porte de uma navalha, tinha raspado a carne protuberante de seu pé, fazendo com que grandes maços avermelhados rodeassem o que restara de seu ex-apoio, deixando o sangue vazar aos montes.
ㅤㅤ Desnorteada, Cinderela abandonou a imagem proporcionada pela fechadura e afastou-se. Indo descansar à beira da escada. Parou ali e silenciou-se, pensando no motivo da loucura delas. Quando ouviu as batidas na porta. Segundos depois, ouviu a voz do segundo criado da casa – um garoto que ia embora poucas horas após o anoitecer – falando com alguém de timbre pomposo.
ㅤㅤ – Vim para ver se as moças dessa casa possuem o pé da noiva do Grande Príncipe! - Ele disse. - Que todas desçam para provar lealdade ao Herdeiro do trono, que veio em pessoa para acompanhar os testes!
ㅤㅤ Cinderela encaixou seus pensamentos e tudo fez sentido. Era óbvio! Queriam lhe tirar seu príncipe! Talvez o único que pudesse retirá-la daquela miserável vida que levava. A raiva e o ódio assomaram sua cabeça e ela levantou-se, pronta para fazer o que deveria.
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ㅤㅤ – Por ordens do príncipe, ordeno que as moças logo desçam! - Gritou o porta-voz. - Ainda temos três casas a visitar!
ㅤㅤ O menino subira fazia alguns bons minutos, mas não retornara. Mas então, como que obedecendo à voz grossa e poderosa do funcionário real, passos foram ouvidos no tablado de madeira da casa. Passos compassados e pesados em direção à escada. Logo foi surgindo a imagem de Cinderela. A moça tinha olhos arregalados e o vestido sujo de vermelho, de sangue. O tom doentio de sua face assustou os homens, talvez mais que o que carregava nas mãos. Levava entre os dedos os pés maltratados das duas irmãs, pés que ela mesmo decepou das desgraçadas que agora sofriam lentamente da morte por facadas que lhes arrancaram braços e pernas. O menino também não tivera sorte, tendo a garganta perfurada rapidamente, para que Cinderela pudesse descer com toda a calma que queria. Os homens do Príncipe olharam com horror à moça, que finalmente chegara à sala de entrada.
ㅤㅤ Cinderela jogou os pés no chão.
ㅤㅤ – Estes são as traidoras! Malditas que queriam me roubar meu príncipe! - Ela quase gritou, e aproximou-se do sapato de cristal repousado num travesseiro vermelho. Logo encaixando seu pé perfeitamente no calçado. Com um sorriso largo e sádico ela levantou os olhos. - Aqui estou, meu príncipe! Vamos, e me leva para teu castelo, mata as que moram nesta casa que me causaram tanta dor e tristeza, tenha a mim!
ㅤㅤ Cinderela olhou para seu amado príncipe que lhe tiraria dali, queria encontrar nele a imagem do homem salvador, de seu justiceiro. Mas não foi aquilo que encontrou nele. Também não foi horror pelos seus atos que o príncipe demonstrava, ele parecia nem ter notado a mulher com face sanguinária calçando a sapatilha. Seus olhos estavam vidrados naquela que descia a escada.
ㅤㅤ A madrasta vestira um vestido muito mais lindo do que o que usara no baile. Envolta num tom púrpuro e em bordados trabalhadíssimos, ela parecia uma moça de vinte anos, esbanjando beleza e sensualidade. Os lábios cobertos de uma cor vermelha fortíssima hipnotizavam o príncipe. Para os infernos com a moça do sapatilho de cristal! Aquela era muito mais linda, muito mais conquistadora. Seu perfume parecia ter vida, deixando até mesmo os serviçais e soldados do príncipe cativados pelo odor, era praticamente a luxúria em pessoa aquela mulher que os excitava apenas com o olhar. Era aquela a mulher que o Príncipe levaria nua para a cama. Era com ela que se casaria, aquela mulher pálida, de olhos e madeixas negras, de seios fartos e cintura arranjada.
ㅤㅤ Cinderela assistiu abismada à figura de sua Madrasta sendo envolta nos braços do príncipe. Quase sem notar a figura púrpura e endemoniada que a cercava e protegia. O demônio brincalhão e maldoso que amava gerar discórdia e mudava de lado sempre que bem lhe agradasse parecia rir da menina. Sua alma fora destruída naquele instante, tanto que nem notou quando os soldados do príncipe fincaram as lâminas em seu corpo. A louca sanguinária deveria morrer, o príncipe já escolhera sua dama. Viveriam juntos, felizes para sempre.
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sábado, 11 de setembro de 2010
O valor de Sapatilhas de Cristal
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Tadashi, vc tem uma imaginação nota mil hein!?
ResponderExcluirSuas estórias são muito legais e inspiradas.
Gosto muito da sua narrativa. Já te falei isso um monte de vezes, hahahaha.
Vc não pensa em publicar seus escritos?
Se não pensa, deveria.
Me desculpe não vir aqui mais frequentemente, é que a vida anda meio corrida.
Só estou tendo tempo de postar uma vez por semana no meu blog, hahahaha.
Atualizei hoje depois passe por lá!
Um abração e um bom final de semana.
coloquei um link do seu blog lá no meu.
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